quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

NOITES BRANCAS


Isaias Coelho Marques

Caras, bocas e almas,
painel azul modorrento.
A beleza e o antes dela.
Ah, meu deus!
Que bobagem tentar ser
                      (e somos!)

Somamos e engolimos os divisores.
            (Televisão: fórmulas únicas)
Como ser interessante
ou, ao menos plausível?
Despertar vocês que nem me enxergam
com migalhas de ouro baço?
Mas isso não vale.
Um grande poeta
já deitou em tal travesseiro
                        de nuvens...
Ficarei como,
nesse torvelinho?

Ah, meu Deus!
Sem exclamação, desta vez.
Perdi Deus,
encontrei Deus,
perdi Deus,
e de que me vale,
se não enxergo
nem as cinzas do próximo,
nem nada.
Tudo escuridão.
Perdão!
Tudo escuridão.
Perdão novamente!

Massacre de coisas leves
e muito interessantes.
Não sou interessante
                   nem leve.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A VAN DO ZÉ*


Daniel Cariello**

                Começou a cair um toró daqueles que só tem em Brasília. Dez minutos antes, o sol ardia tanto que os raros passantes da superquadra eram obrigados a procurar uma sombra. Agora o mundo está desabando e os pedestres foram buscar abrigo sob o sempre acolhedor pilotis.
                A chuva chegou trazendo trovões ensurdecedores, seguidos de latidos desesperados de cachorros da redondeza e de gritos rascantes do meu vizinho, que não precisa de desculpa para dar um berro na janela, nem perde uma chance quando ela se apresenta.
— Chega de água! Valham-me, Jesus, Maria e José!
                Vou ao parapeito observar o dilúvio e o desempenho vocal do habitante ao lado e me espanto: parada, em frente ao prédio, está a van da Escola Moraes Rêgo, onde fiz meu 1º grau (crianças, 1º grau era como chamávamos o ensino fundamental em uma época antiga, entre a queda de Constantinopla e o surgimento do iPhone). Se a antiga Kombi foi trocada por essa moderna van em algum momento desse passado quase cenozoico, o piloto ainda é o mesmo Zé da minha infância. As únicas diferenças são o cabelo mais grisalho e o bigode, então ostentoso, agora ausente.
                Apesar da chuva, dá para vê-lo sentado atrás do volante, em seu posto de sempre, com o sorriso e a paciência habituais. Olhando para o nada, o bravo motorista tamborila uma percussão no painel do automóvel enquanto aguarda o fim do aguaceiro e o embarque de uma criança que mora no meu prédio. Pelo horário, meio da tarde, ela deve ir a uma aula de judô, de dança ou de futebol.
                Nesse instante, lembro dos meus colegas por ele transportados. Se eram desbravadores, os primeiros a chegar à escola de manhã cedinho, invariavelmente com cara de sono, tinham o privilégio de ser liberados quinze minutos antes do fim da última aula, pois o prudente chofer queria escapar do engarrafamento de meio-dia. Por engarrafamento de meio-dia, na Brasília dos anos 80, entenda-se um sinal de trânsito de uma via que atravessava a W3 Sul e, por isso, ficava mais tempo vermelho que verde, formando uma fila de uma ou duas dezenas de carros. E aí me recordo também que, ao mudar de colégio, no fim da década, nunca mais tive notícias do Zé. Para dizer a verdade, nem imaginava que ele continuava no seu heroico e nobre batente de carregar crianças pela cidade.
                Quando dou por mim, a chuva já havia parado e uma pontinha de céu azul surgia atrás das nuvens ainda cinzentas. Nesse exato instante, um novo berratório vindo do apartamento contíguo me arranca imediatamente do mergulho na infância e me puxa de volta à realidade.
— Finalmente! No more rain! Viva o sol! Viva o céu! Valeu, Jesus, Maria e José!
Vejo a van virando calmamente a curva e digo a mim mesmo, em voz baixa.
— Valeu, Zé!
*Publicado originalmente em Veja Brasília de 17.dez,2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br


domingo, 14 de dezembro de 2014

ATROPELOS



Isaias coelho marques

Um Niágara
De emoções!

Tanto amara,
tanto empreendera,
e ver este amor
acabar desta maneira:
Corpo estendido
         esfacelado
     desmilinguido
ao chocar-se em tua pedreira

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

DIANTE DA TORRE*



Daniel Cariello**

“Esta é a Torre de TV, maravilha da arquitetura”. Não, ela não foi desenhada pelo Niemeyer. A dele é a Torre de TV Digital, perto de Sobradinho. E é Niemeyer, não Niemayer. Tem som de “a”, mas se escreve com “e”, muitos se confundem, assim como na hora de escrever Kubitschek, mais letra do que a gente pronuncia, coisa de louco, quem precisa de tanta consoante? Niemeyer morreu com cento e tantos anos, era mais velho do que a própria arquitetura, dizem. Mas o projeto é de outro notável, criador do Plano Piloto de Brasília. Lucio Costa, brasileiro nascido em Toulon, na França, pátria de Gustave Eiffel, projetista da torre que leva o seu nome, em Paris, inspiração desta aqui. Pois não, minha senhora? Olha, não sei dizer, ele nasceu lá mas era brasileiro, não entendo dessas questões. Esta dúvida você pode tirar com o meu colega ali, o Afobado, assessor de fofocas e babados. Já foi colunista social, hoje vive de contar causos e mexericos. A torre tem 224 metros e um mirante a 75 metros, de onde podemos observar o urbanismo e os monumentos da cidade, como o Memorial JK, o estádio Mané Garrincha, a Catedral, a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional. Pode falar mais alto, senhor? Não, não acho. Estou dizendo que o Congresso é belo, não me refiro ao que armam lá dentro. O Niemeyer fez a parte dele, desenhou uma obra de arte, e o Joaquim Cardoso, engenheiro e poeta, fez os cálculos, a cúpula da Câmara parece quase flutuar. Mas do que aconteceu depois eles não têm culpa. Niemeyer era mais velho do que a corrupção, dizem. Ali é a fonte musical, uma beleza. Os jatos d’água são sincronizados com a trilha sonora. Não me perguntem como fazem isso. Quero ver é se funciona com heavy metal. É bom para vir à noite, tem até pipoqueiro, coisa rara na cidade. Eu já disse antes, o termômetro do sucesso de um ponto turístico é a presença de pipoqueiro no lugar. Este painel aqui é novidade, “Eu amo Brasília”. Foi colocado na época da Copa do Mundo e ficou. Como? Sim, eu sei, tem um parecido em Amsterdã, mas não foram os holandeses que o deixaram aí após a disputa do terceiro lugar. Aliás, vamos mudar de assunto. Logo atrás é a feira. Antes, ela ficava no pé da torre, mas a transferiram para uma área um pouco mais afastada. É um pequeno retrato de Brasília, tem gente, comida e artesanato do país inteiro e o melhor tacacá do Distrito Federal. Tacacá, não vatapá. Gosto dos dois, e você? Quem já ouviu aquela música “por toda a plataforma você não vê a torre”? Sabem do que o cantor está falando? Da plataforma da rodoviária, logo ali. Já tentou ver a torre de lá? E você aí achando que ele estava cantando outra cidade, né? Não, essa música não é do Niemeyer com “e”, ele era mais velho do que o som, dizem. É do Renato Russo, que, por sua vez, era brasileiro. O Afobado ali explica melhor. Mas vamos subir no mirante, apreciar a vista. Lá em cima eu conto mais histórias. Por aqui, senhoras e senhores.”
*Originalmente publicado e Veja Brasília de03. dez.2014.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

terça-feira, 25 de novembro de 2014

ROMANA


Isaias Coelho Marques

Romana nos gestos
                 no porte
                 no olhar enternecido
                 na festa empolgante 

Romana, sobretudo
na arte do amor
domina e sabe
deixar-se dominar

Ah, minha Romana!
Nunca foi a Roma
mas impera absoluta
um reinado infinito:
o infinito reinado
de meu coração

LIÇÃO DE BRASILIANÊS*



Daniel Cariello**

— Pedro, onde está o sujeito da frase “Enquanto os assaltantes arrombavam o banco, Nicolas tomava um suco na esquina”?
A pergunta pegou Pedro de surpresa. Do fundão, fixou os olhos na sentença escrita no quadro. Examinou cada palavra, coçou a cabeça, desviou o olhar, segurou o queixo e voltou a atenção para a lousa. Permaneceu semicatatônico por longos segundos. Depois, cheio de certeza, levantou-se, encheu o peito e soltou o veredicto.
— Não faço ideia de onde ele esteja.
— Então, é zero!
— Mas sei para onde deveria ter ido.
A professora já tinha vivido quase todo tipo de situação em sala de aula, mas aquela resposta era novidade até para ela.
— E para onde é?
— Para a prisão. Vê-se logo que Nicolas é um mentiroso. Certamente é parceiro dos bandidos. Não há esquina em Brasília, ele devia estar vigiando a rua para os criminosos. Não sei para quem ele contou essa cascata, mas o Nicolas não estava onde disse estar, tenho absoluta certeza. O álibi dele é falso.
Disse isso e sentou-se, recebendo tapinhas nas costas dos colegas, enquanto ostentava um sorriso de grande satisfação. Encafifada com a réplica inesperada e, ela precisava admitir, muito criativa, a professora resolveu conceder uma segunda tentativa ao aluno.
— Você merece zero em português, mas 10 em sofisma. Vou dar outra chance. Como ficaria a frase “Eu acelero meu carro pelas ruas da capital” com o verbo no pretérito mais que perfeito?
Dessa vez, Pedro nem precisou refletir. Retrucou de bate-pronto, com a segurança que só possuem os que têm absoluta certeza de suas convicções.
— Essa aí eu não vou poder responder.
— E por quê?
— Não tenho carteira, muito menos carro. Depois, se tivesse, jamais aceleraria. O pardal pega geral, fotografa sem pena. E você viu para quanto foram as multas, né? Aliás, muito me envergonha você estimulando racha, com todas essas campanhas de conscientização por aí.
A turma aplaudiu. Pedro acenou para todos. A professora se encheu.
— Se eu fosse você, andava na linha.
— Em Brasília, a gente anda é na faixa.
— Pois bem, seu espertinho. Então me diga quem é o sujeito da frase “O Pedro vai dar um grande circular na sala do diretor.
*Publicado originalmente em Veja Brasília de 19.nov.14
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

SEM TÍTULO



Isaias Coelho Marques

Estou só
sem palavras
solidão no peito
sem chaves

As palavras
tornaram-se avaras
e o coração
sem entender o enigma
silencia

É noite
agora 
e mudo
deixo que venha 
o açoite

Estou só
sem palavras

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

MALDITOS HEMÍPTEROS*


Daniel Cariello**

— Cuidado, tem um bicho feroz atrás de você!
— Ai, meu Deus. Onde?
— Na árvore, fingindo-se de morto. Sai de mansinho,
antes que ele ataque.
— !
— Isso, devagar. Pronto.
— Ufa, obrigada por avisar! Deixa eu ver agora o
tamanho da fera.
— Ali, ó, no tronco.
— Mas que exagero! É só uma casca de cigarra.
— Cigarra? Daqui parece um minimonstro.
— É melhor você se acostumar, a cidade fica cheia desses insetos nesta época do ano.
— Onde é que fui amarrar meu jegue...
— Aliás, você sabia que as cigarras ficam até dezessete anos debaixo da terra? Só no fim desse ciclo é que se transformam em adultas e saem voando por aí, buscando um par.
— Me impressiona muito que consigam encontrar, esquisitas desse jeito.
— Essa casca nas árvores é o exoesqueleto das bichinhas. Vão deixando pelo caminho à medida que crescem. As crianças adoram brincar com isso. Pega ela aqui, ó.
— Avemariatiraessetreconojentodaquijesusamado!
— Mas deixa disso, rapaz. Elas podem não ser bonitas, mas são inofensivas.
— Inofensivas? Meu ouvido vai explodir com esse interminável coral de insetos.
— O canto é dos machos atraindo as fêmeas para a reprodução.
— E eles se calam quando elas aparecem ou é aí que a gritaria aumenta?
— E o mais incrível é que elas morrem depois da cópula
e da postura dos ovos que darão origem a novas cigarras.
— Seria tão melhor se elas se fossem antes de se multiplicarem...
— Mas você tá rabugento hoje, hein?
— Desculpa, é que eu não sou daqui e esses bichinhos me levam à loucura. Outro dia entrou um lá em casa e foi um deus nos acuda. Minha mulher levou um susto tão grande que subiu na estante.
— E por que você não afastou o inseto de lá?
— Porque eu estava no colo dela.
— Ai, ai, ai. Além de reclamão, é medroso. Vem, vamos tomar um sorvete de cajuzinho do cerrado. Vai ajudar
a esfriar suas ideias.
— Ok...
— Peraí, caiu alguma coisa no meu cabelo.
— Eita, é uma cigarra.
— Uma cigarra?
— E tá enganchada.
— Enganchada?
— É, sai não.
— Tira! Tira! Tira!
— Não dá.
— Ahhhhhh! Tira esse monstro! Socooooorrooo!!!

*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 05.nov.14
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

PARA MÁRIO QUINTANA


Isaias Coelho Marques

Por quais estrelas andarás?
dá-me um pouco de tua loucura,
                               de tua verdade,
                               de teu amor pelo outro,
                               de tua poesia maior,
maior que o medo,
do tamanho do mar-oceano.

Atira daí a luz-vida,
                               luz-felicidade,
banha com tua magia
este corpo adormecido,
desce, desce,
vem brincar comigo
no faz-de-conta
das palavras.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A ESPERANÇA VESTE PRETO*


Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
                
               Votei no Lula, enquanto ele foi candidato, até sua eleição. Fui, muitas vezes, criticado por preferir um “torneiro mecânico semianalfabeto”, a um doutor, ou qualquer letrado. Respondia, sempre que estava “cheio” de generais que não conheciam o significado de povo, que não gostavam nem do seu cheiro, que arrenegavam das senzalas, que tinham os aposentados como estorvo, que, gente era, apenas, números, que serviam, estatisticamente, para fins eleitoreiros.
                Veio o “mensalão”. Arreneguei do Lula. E, além de outros artigos, em jornais locais, escrevi o que segue, com o titulo “A Esperança veste preto”:
                Dias, anos, décadas, séculos, ela acompanha os sonhadores, os utópicos, os éticos, os que lutam pelo respeito à dignidade humana, os que clamam por justiça, os pacifistas, os generosos, os homens de boa vontade. Também, ela é encontrada no coração dos pobres, dos abandonados, dos excluídos, dos que querem ser gente, tratados como gente, respeitados como pessoas.
                Não sei quem é, ou quem são, o pai ou os pais, mas, de vez em quando, ela emprenha e pari filhos, talvez, nossos, que a temos em nossas vidas, frutos de nosso amor à criação e ao próximo... É fato, porém, que eles, parece, têm vida curta, vêm e se vão, deixando, todos nós, desconsolados!
                Uns, morrem como heróis, outros, como santos. Alguns se tornam mártires. Todos, como a mãe que os gerou, irremediavelmente, ligados a historia da humanidade...
                Mas, há aqueles, que depois de adultos, desconhecem a sua origem, os seus pais. Ignorantes, procuram atribuir sua existência a outrem, que deles se utilizam para fins iníquos.
                Heróis, santos, mártires, ainda que tenham sofrido, e nos feito sofrer, serão, sempre, motivos de jubilo para quem os reconhecem como lutadores por uma vida melhor, por um povo menos sofrido. Entretanto, os que traíram a nossa amada, a nossa Esperança, os que nos envergonharam por os termos gerado, esses, que nos fazem chorar, deixam a Esperança de luto (pois, também, não são filhos?), mas não acabam com ela, eterna que é, enquanto existirem os homens.
                Por isso, minha gente, deixemos o Lula de mão e saímos pra outra. Decepcionados? Sem duvida, porém, com a Esperança vestida de verde, mais uma vez!
                Está aí a D. Dilma, sacaneada por tudo o que não presta, nesse inacreditável Congresso Nacional, sem contar com os peixes miúdos, dos estados brasileiros. Cuidado, Presidenta, eles estão querendo mais PRIVATARIAS e MENSALÕES...

*Escolhi esse texto do meu livro "De Corpo Inteiro", quando a Presidenta Dilma foi eleita. Ela, talvez, pensando na reeleição, aguentou tudo o que não prestava, fruto do maquiavelismo do Lula e do Zé Dirceu, inclusive as uniões com as figuras mais amorais de nosso Brasil e as coligações espúrias, com partidos que, antes, e durante, apoiaram o Golpe Militar! Agora, está de volta, reeleita, com um discurso democrático, prometendo acabar com a corrupção, plebiscito para fazer as reformas política e tributária, imprescindíveis ao desenvolvimento social e econômico do país, e dando uma entrevista impecável ao Jornal da Globo ANULEI O MEU VOTO, NOS DOIS TURNOS. Mas sou obrigado a desejar que D. Dilma cumpra as promessas feitas, após sua reeleição, para o bem do povo brasileiro. Entretanto, como um pobre Quixote, inimigo do pragmatismo, queria alertá-la e aos que amam a nossa terra, LULA, NUNCA MAIS!).

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O BARALHO DO MICKEY*



Daniel Cariello**

Naquele dia, acordei todo embaralhado.
— Vó, vó, vó, vó, vó.
— O que foi, Daniel?
— A gente precisa sair para comprar o baralho do Mickey. Eu quero, quero sim, quero muito, quero agora. É lindo, cheio de cartas com números e figuras. Em algumas está o Mickey, em outras o Pato Donald, a Margarida, o…
— Pateta!
— É você, vó!
— O quê?
— Pateta.
— Estou falando do baralho. Deve ter até carta do Pateta, o meu personagem preferido. Vai ali colocar uma roupa, vamos sair para comprar.
— Mas, vó, eu não trouxe nenhuma. Só tenho este pijama de bolinhas.
— Bem, vamos assim mesmo. Veste este casaco por cima.
— Vó, esse casaco é seu. Vai ficar grandão e muito, muito feio.
— Prefere não ir?
Nesse momento, colocou-se diante de mim a situação mais complicada dos meus incompletos 6 anos: para divertir-me por toda a eternidade com o baralho do camundongo era preciso dar o vexame de desfilar em roupas de dormir de bolinhas, com um casaco verde por cima. Dificilmente poderia haver algo menos adequado para ir à rua.
Depois de breve ponderação, suspirei e vesti o enorme paletó, já que não tinha mesmo escolha. Antes de sair de casa, olhei para ambos os lados, para ver se havia algum vizinho. Ninguém. Pelo menos ali o caminho estava livre. Paramos o primeiro táxi que passou.
— Para o Conjunto Nacional! — disse, decidida, minha avó.
O taxista nem se mexeu. Pedi para acelerar. Ele respondeu:
— Garoto, você se esqueceu de vestir uma roupa. Vai lá se trocar, eu espero.
— Eu vou assim mesmo… — respondi, com um fio de voz.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DESCUIDO*


João José de Andrade Ferraz

                Advogado de Ofício (como então era designado o cargo), o... patrocinava cada demanda cabeluda...
                Detestava injustiça, por princípio; secundariamente abominava agiota, banco, penhorista, receptador e senhorio. Ai daquele que um miserável qualquer lhe batesse à porta solicitando arrimo: Comia fogo, porque fazia pouca ou nenhuma distinção entre expedientes legais e inortodoxos para assegurar e/ou resguardar direitos dos seus constituintes.
                “Aprenda, rapaz! O que realmente interessa é o resultado, não os meios” – gostava de dizer.
                Considerado o ângulo de tais peculiaridades, era querido e odiado; não exigia recompensas de agradecidos, e nem se abalava com carantonhas de incidentais desafetos. Peitudo, ele.
                Instantânea e recíproca simpatia servira para nos aproximar, apesar da marcante diferença de idade. Tínhamos, evidentemente, conformidade nos gostos; e, logo descobri, nutria por mim algo parecido com sentimento fraterno – talvez até paternal. Fique claro que demonstrei agradecimento e retribuição à boa amizade até a morte dele, que infelizmente assisti.
                Noite de domingo, pouco antes do carnaval de 1970. Depois do horário de noivado atravessei a Senador Pacheco a fim de bater papo habitual na porta da casa dele: espreguiçadeiras na calçada, cervejinha, prato com ovos cozidos.
                Daí avistamos casal que vinha descendo pela rua, na altura da Barroso.
                 - A moça ali não é..., filha do...? O galego, quem é?
                 - Ela mesma; não conheço o camarada, não.
                Quando emparelharam, a jovem parou e disse:
                - Boa noite. Doutor..., Ferraz. Quero lhes apresentar o Engenheiro que está trabalhando no asfaltamento da rodovia que liga Teresina e Picos.
                Tendo levantado primeiro, cumprimentei:
                - Como vai? – estirando a mão.
                À vontade, afundado na cadeira e meio caneado, o  ... bufou para se erguer. Ao conseguir deu-se o vexame: desamarrada, obedecendo à gravitação a calça do pijama caiu-lhe aos pés.
                Se estivesse de cuecas, menos mal: mas estava em pelo!...
* Do livro Apanhados do Cotidiano

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

SEM TÍTULO


Isaias Coelho Marques

Uma curva em tuas flores de morta
recendia a miséria minimamente vivida.
No final daquela curva,
quantas ainda restarão?

Não contarão os dias infernais sem significados
nem aqueles em que teu sexo foi exposto à carnificina

Restam, porém,
você e o que virá após aquelas flores. 

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

SOPA DE PEDRAS


 Adaptação de A. J. de O. Monteiro
                Naqueles tempos sem televisão, sem jogos eletrônicos, sem celulares, sem computadores ou tablets e congêneres, a grande diversão da gurizada, principalmente nas noites, era ouvir histórias de trancoso. Sentávamos no chão, em volta de um adulto – no meu caso uma tia, a Tia Santana, que era exímia nessa arte. Contasse ela dez vezes a mesma história, sempre prendia nossa atenção, pois, criativa como ela só, reinventava as narrativas inserindo “cacos” e até novos personagens e situações inusitadas.
                Dentre as histórias do imenso repertório da titia, as que eu mais gostava eram as do Pedro Malasartes. Para quem não sabe, Pedro Malasartes é um personagem do folclore português e que foi incorporado ao brasileiro com se nativo fosse. Pedro Malasartes encarna o malandro astucioso e cínico que sobrevive de aplicar golpes às pessoas que por azar cruzem seu caminho. Caracteriza-se, também, pela total falta de escrúpulos ou remorsos. Das aventuras do malandro, uma agradava sobremaneira a “plateia” da nossa contadora de histórias: A SOPA DE PEDRAS. É assim:
                “Num final de dia, cansado e faminto, Pedro Malasartes avistou um casal sentado à porta de casa e resolveu pedir alguma coisa para matar a fome. Aproximou-se dos dois e fez uma breve narrativa de suas desditas. Acontece que o casal não era dado à caridade e despachou recomendando-lhe que fosse procurar trabalho. O espertalhão não se deu por vencido e choramingou: ‘Oh, cristãos, há dias não como, estou faminto. Deem-me uma panela, um pouco d’água e me deixem usar seu fogo para fazer uma sopa com umas pedras que trago nesta sacola.
                - Sopa de pedras? Que interessante e é muito barato, como se faz?
                Pedro então perguntou: nunca tomaram sopa de pedras? Não sabem o que estão perdendo. Garanto-lhes que é uma delícia.
                Os dois, já pensando em passar a perna em Pedro, logo o fizeram entrar, levaram-no até a cozinha, onde acenderam o fogo e deram a ele panela e água. Ele tirou da sacola duas pedras bem polidas e redondas, lavou-as cuidadosamente e as colocou na água já em estado de fervura.
                Observando o interesse o casal, Pedro disse que a sopa ficaria bem mais saborosa adicionando-se alguns temperos. O casal providenciou cebola, tomate, pimentão, sal e pimenta do reino, os quais Pedro colocou na panela, mexendo um pouco com uma colher de pau, dizendo que, com um pouco de toucinho e linguiça, a sopa ficaria irresistível. Prontamente o casal atendeu ao pedido. Pedro esperou o cozimento da sopa, então tirou da sacola um prato de alumínio e uma colher. O cheiro da sopa estava maravilhoso. Pedro sentou-se e tomou a sopa com muito gosto enquanto o casal observava. Ao fim, lavou os apetrechos e as pedras, colocando tudo na sacola. Os dois então perguntaram: ‘Vai levar as pedras’? Pedro então respondeu: ‘Vou, é claro, para fazer outras saborosas sopas de pedras onde me recusarem comida’”.
                Agora me diga: Pedro Malasartes não simboliza bem o caráter do brasileiro, principalmente dos políticos brasileiros?      

domingo, 12 de outubro de 2014

AQUI NESSE LUGAR...



Isaias Coelho Marques

Aqui nesse lugar
Do fim do mundo
Aqui é o começo
Para mim
Às vezes
Até esqueço
Que  o sofrimento
Tem pousada longa
 E a felicidade
 É aquela onda que quebra
Pra nunca mais
Aqui nesse lugar
Viver e não viver
Tanto faz

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

ERA SÓ ABRIR A PORTA*




Daniel Cariello**
               
               Era só abrir a porta e entrar. As pessoas na sala de jantar estavam ocupadas em compartilhar comida e conversa e, geralmente, nem notavam a presença de uma criança. Elas entravam para pegar um copo d’água, ir ao banheiro ou apenas passar da frente para os fundos da casa, em busca de uma rota de fuga rápida no pique-esconde.
            Um dia, a porta estava trancada. Não só daquela, mas de todas as moradas da rua. Sem entendermos bem o motivo daquilo, precisamos tocar a campainha apressadamente, porque o Nilton estava quase terminando a contagem alta até cinquenta e logo sairia para nos procurar. Atento à nossa aflição, seu Élbio deu dois giros ágeis na chave e nos deixou passar, como sempre.
        Tempos depois, um dos vizinhos colocou uma corrente com cadeado. “Para reforçar a segurança. Há muita gente estranha passando por aqui, não podemos bobear”, afirmou. Em um encontro fortuito no gramado central, desses que aconteciam toda hora, o assunto veio à tona e todos decidiram que não dava mesmo para bobear. Logo, as casas passaram a exibir um pingente de cadeado, ornando as grades de entrada. Para sair, já não bastava mais girar a maçaneta, agora era preciso duas chaves, o que obrigou os adeptos do pique-esconde a inventar outras rotas de fuga.
             Até chegar o dia em que alguém deu um basta, pois a situação estava “quase insustentável”, e levantou a primeira cerca, de ferro, de uns 2 metros, cheia de lanças em cima. Para as crianças, que ficavam o dia inteiro na rua e nunca haviam presenciado um episódio de violência, aquele encastelamento de um vizinho parecia muito desproporcional, mesmo que não soubéssemos o significado de desproporcional. E o pior é que alguns dos nossos amigos moravam ali e, às vezes, não conseguiam sair, porque ninguém sabia onde estavam todas as chaves necessárias.
            Como uma praga, a iniciativa contagiou os moradores. Não demorou muito, a casa da esquina subiu uma grande cerca. A da frente fez o mesmo e ainda instalou um interfone. Uma outra aproveitou as laterais já erguidas pelos vizinhos e só fechou a parte da frente. Rapidamente, todas estavam escondidas pelas enormes barreiras.
             Tão protegidas que já não sabíamos mais quem morava atrás daqueles muros. Tão invioláveis que ninguém mais passava por aquelas portas. Tão surreais que não mais se compartilhou conversa. E muito menos comida. Tão invencíveis que nunca mais brincamos de pique-esconde.
*Publicado originalmente em Veja Brasília de 08.out.2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

terça-feira, 7 de outubro de 2014

SEM TÍTULO


Isaias Coelho Marques

Vida
em amplidões
de margaridas.
Vida
apertada em garrote vil
desencontrada
em outras mil.
Vida
de antes da vida,
sem dor.
Multiplicidade incolor.
Vida
passando
escorregando
entre dedos divinos...

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O DISCURSO DOS “JOVENS HERDEIROS”

fuxiqueiro.viajeblog.com.br


Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
               
           A ganância pelo poder tornou os mestres da politicagem piauiense, esquecidos e despudorados. Não pensam o que falam, da mesma maneira que não falam o que pensam... Não falam do que praticam, como não praticam o que falam. Contradizem-se com a maior tranquilidade, na convicção de que continuarão convencendo o povo de que eles serão, ainda, o santo remédio para os males do Piauí.
                Recomeçou o discurso da “reconstrução do Estado”... No próprio discurso, admitem que o Piauí transformou-se em escombros, porque não se reconstrói o nada. Reconhecem, insensatos como eles o são, que a deterioração do Estado deve-se às más administrações, aos maus políticos que têm dirigido essas administrações. E, tentam dar a entender ao povo, que eles nada têm com isso, como se estivessem ausentes, como se não existissem, como se não fossem, eles próprios, os donos do poder, os “representantes do povo”, os dirigentes do Estado, nestas longas décadas.
                Os Jovens Herdeiros, dos velhos “Coronéis” (alguns deles bem que merecem, ainda, o titulo de ‘coronel’), estarão renegando o seu passado? Estarão maldizendo o antigo (e atual) domínio do latifúndio, que impediu o desenvolvimento do Piauí, e que lhes entregou, como se fosse herança, o comando do Estado? Ou estarão fazendo um mea-culpa dos seus atos e omissões, que conduziram nossa terra à derrocada?
                De 4 em 4 anos, uns falam como oposição, outros defendem o governo. Depois, quase sempre, há um revezamento. Mas, o analfabetismo continua, a mortalidade infantil continua, o êxodo rural continua, o desemprego continua, as favelas continuam, e, eles, os políticos de sempre, continuam a falar que vão reconstruir o Piauí.
                Cícero, o tribuno romano, haveria de clamar, em linguagem atual, “até quando, minha gente, irão, esses demagogos, abusar de nossa paciência?”
                Não, os Jovens Herdeiros não estão arrependidos do que fizeram e do que fazem. Não estão maldizendo um passado que os colocou no Poder. Não estão insatisfeitos com os empregos de seus familiares. Não estão querendo devolver os cargos públicos por que tanto brigaram. Não torcem pela anulação dos contratos de serviços, de que tanto se beneficiam. Não estão pedindo para prestarem conta dos dinheiros públicos recebidos. Estão, isso sim, é querendo mais...
                Políticos profissionais, querem continuar a viver à custa do povo, a mandar à custa do povo, a gozar à custa do povo!
                Exploram, quando estão na oposição os salários de miséria do funcionalismo público, mas, os seus, estão sempre aumentando. E, tão profissionais eles são que já criaram aposentadorias para si próprios. Só falta a carteira do Ministério do Trabalho para nem precisarem mais de eleições nem de votos populares, pois se considerariam com estabilidade nesse emprego “representantes do povo”. Belos representantes!
                O discurso da “reconstrução” não vai mudar. O discurso da “moralização” não vai mudar. As promessas de sempre, nunca cumpridas, não vão mudar. Do mesmo jeito, com esses, “profissionais”, o Piauí, também, não vai mudar.
                Que tal mudarmos eles?
                Gente, isto foi escrito há 22 anos! E, tudo, continua sem mudar... Credo! Acho que vou deixar de malhar em ferro frio...

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

PROPAGANDISTA



A. J. de O. Monteiro

                Era mais ou menos assim, o tipo: chapéu de massa marrom ou preto, de abas largas, para proteger da canícula, calça e camisa de linho branco, bem passadas e engomadas; cinturão e sapatos mocassim também brancos, afinal o propagandista, como se auto intitulava, era um profissional da saúde e para os profissionais dessa área, as vestes brancas eram e são, ainda, marca registrada e símbolo de status.  Ele usava óculos tipo “ray ban”, de lentes escuras, cultivava um fino e bem aparado bigodinho e, quando falava ou sorria, deixava à mostra pelo menos um reluzente dente de ouro.
                Nos dias de feira ele chegava muito cedo as Praças da Bandeira ou Rio branco, escolhidas, creio, pela proximidade com o mercado central e com o centro comercial da cidade, pontos de convergência de seu “público alvo”: Pequenos produtores rurais que vinham à cidade em dia certo da semana, vender os produtos de suas roças e hortas e, ainda, animais de pequeno porte tais como suínos, caprinos e ovinos, bem como aves (galinhas, capões e perus).
                Os pequenos produtores logo vendiam seus produtos para os atravessadores de plantão e, com o apurado, faziam compras de gêneros alimentícios no próprio mercado e se dirigiam ao centro para adquirir outros produtos de loja, como peças de chita para a confecção de vestuário.  
                No trajeto entre o mercado e centro, os simplórios agricultores, que se deslocavam em grupo, encontravam, já devidamente instalado, o “propagandista”. Um pedaço grande lona estendido no chão, onde depositava vidros de todos os tamanhos e formas, arrolhados, com rótulos escritos à mão e envolvidos em papel celofane. Ao seu lado, também no chão,  o “propagandista” colocava uma cobra empalhada, com um cigarro na boca... O apelo era: “DAQUI A POUCO A COBRA VAI FUMAR”.

domingo, 28 de setembro de 2014

OCUPANDO OS ESPAÇOS*



Daniel Cariello**

                Era só um pedaço de pano, mais ou menos quadrado, acolhendo imagens vindas de um projetor localizado a uma ou duas dezenas de metros. Na frente desse pedaço de pano, centenas de pessoas, talvez pouco mais de um milhar, emprestavam sua atenção à saga do cabeludo Vincent Vega e seu comparsa Jules Winnfield, capangas de Marsellus Wallace, chefe da bandidagem e marido da bela Mia.
                Era só uma sessão de Pulp Fiction, aquele filme meio estranho daquele diretor esquisito, você pode estar pensando. Acontece que, desta vez, a obra não era a estrela da noite. Claro, os espectadores mais uma vez roeram as unhas na cena da injeção de adrenalina no coração de Uma Thurman, como ocorre a cada exibição do clássico de Quentin Tarantino. O público que lotou o gramado da 207 Norte em uma noite de seca, porém, não estava lá apenas para acompanhar uma história criada por um cineasta. Estava lá para escrever a própria: a récita da ocupação do espaço público em Brasília.
                Há tempos sabemos que a lógica da cidade não favorece encontros nas ruas. Na capital dos carros, os caminhantes são seres praticamente inexistentes. Tem aquela história da criança nascida e crescida aqui que, pela janela do automóvel, se espantou ao ver um homem a pé: “Mãe, cadê as rodas daquele moço?”, perguntou. Quando escutou da progenitora que se tratava de um pedestre, fez cara de choro e devolveu: “Tadinho. E tem cura?”. Infelizmente, a vocação da capital não é sairmos andando a esmo até chegarmos a um café, um parque ou uma loja que nos agrade, como ocorre no Rio de Janeiro ou em São Paulo, aproveitando o caminho e os encontros inesperados.
                A vocação de Brasília, então, talvez seja ter seus enormes espaços vazios ocupados criativamente, com a promoção de encontros das pessoas que aqui vivem. Não falo de eventos oficiais, estes sempre existiram, mas de iniciativas dos próprios habitantes da cidade. Desse heroico cinema ao ar livre, organizado por jovens estudantes da UnB que correram atrás de apoio e patrocínio privados e não tiveram vergonha de pedir a colaboração financeira dos espectadores no fim da sessão. Do Picnik, nome autoexplicativo, que já reuniu milhares de pessoas no calçadão do fim da Asa Norte, no gramadão do Eixo Monumental e no Parque da Cidade. Ou das festas do Confronto Sound System, que com suas batidas ragga inflamam em fins de semana esporádicos o até então silencioso Setor Comercial Sul.
                O desejável é que iniciativas como essas se multipliquem a tal ponto que, daqui a algum tempo, Brasília seja conhecida não pelos amplos vazios, mas pelas soluções inovadoras que seus moradores elaboraram para preenchê-los.
                Era só uma cidade em busca de sua identidade. E um bando de gente com a cabeça cheia de boas ideias e muita vontade de ajudar a construí-la.
*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 17.set.2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

sábado, 27 de setembro de 2014

quarta-feira, 10 de setembro de 2014


NOITES DE PRATA*
Daniel cariello**
Não, sério, corra. Pare tudo e vá ver a lua. É a maior dos últimos tempos, e falam que a próxima assim só daqui a 73 anos. Eu sei, teve outra parecida há quatro meses e disseram que igual só meus bisnetos veriam, mas essa é diferente, juram. É a lua azul. É verdade que ela não está azul, porque a lua nunca é azul realmente. Ela é no máximo amarela quando nasce e logo fica branquinha, passa muito longe do azul. Blue moon, em inglês. Se não chega nunca a esse tom, pelo menos serviu de inspiração para grandes músicas, o que não é pouco. Under blue moon I saw you. Mas essa não é a lua azul? É só cheia mesmo? A próxima azul é daqui a quanto tempo? Não tem problema, está linda, vá lá ver. Ora (direis) ouvir estrelas, declamava um Bilac apaixonado, olhando pela janela. Eu sei, não estamos falando de estrelas, e sim da lua, mas elas compartilham o mesmo céu. E, se você é capaz de ouvir aquelas, que estão longe, certamente captará o que esta diz, pois é nossa vizinha. Aproveite esse brilho todo, tome um banho do astro ao som dos Mutantes e me diga uma coisa: você vê o quê, São Jorge ou o dragão? Tenho um amigo que vê um rosto de mulher. Sabe o que eu vejo? Um coelho. Sério, olhe bem, aproveite que ela está bela e cheia. Repare ali: as orelhas, o corpo, um coelho. Não estou mentindo. Mente quem diz que a lua é velha. Você acredita que o homem já pisou lá? E por que não voltou mais? Talvez porque a solidão ali seja insuportável. Deve ser o lugar mais solitário do universo, não temos a lua para contemplar e para nos confessar. Mas, vá, confesse, já viu uma desse tamanho? Está linda. Foi uma assim que a Nereide, a menina mais bonita da escola, pediu de presente para o Fonchito, na história do Vargas Llosa. Lua, lua, lua, lua, por um momento meu canto contigo compactua. A gente observa desde sempre e nunca se cansa. O que haverá lá do lado de lá dela? Enquanto imagino, coloco Pink Floyd para girar a 33 rotações por minuto. Paro em frente à janela e olho para o céu. É incrível como ela está especialmente bela hoje. Conheço um poeta que tomaria um conhaque e ficaria comovido como o diabo.

*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 10.set.14
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

REPUGNÂNCIA*


João José de Andrade Ferraz
                Estabelecimento original, aquele, pertencente ao Xavier; ficava na Rua São Pedro, entre Magalhães Filho e Coelho de Resende. De frente à São Pedro, mercearia onde (em pé, encostados no balcão) eminentes tomavam umas e discutiam ordem do obedecendo prioridades como futebol, mercado financeiro, piranha e política.
                Desses papos o proprietário fazia absoluta questão de manter distância, assim como não permitia encostar peru: ali pontificava elite dos frequentadores.
                À esquerda, estreito corredor dava acesso à residência da família; nos fundos, palhoça que reunia a mais fina flor da pilantragem – no bom sentido, claro.
                Entre os clientes, tabaréu de modos asselvajados que segundo comentários transava coisas de agiotagem, explorava comércio da fachada e tinha outras rendas. Mas o que amolava o Xavier eram outros motivos: o cara dizia pilhérias a domésticas da vizinhança, enfiava a mão nos tira-gostos, só contava piadas obscenas. Enfim, enchendo a freguesia, intrometia-se em conversas particulares; nas comuns, correntes, apenas ele tinha razão. Não dava lucro: exigia gelo, levava a própria bebida, quebrava copos, saía sem agradecer, desculpar-se ou se despedir. Um cricri!
                A respeito, afamado e gastador juris consulto dera parte do procedimento.
                Certa feita, lá atrás, sentado sobre a mesa e pés descansando num tambores, gritou:
                - Xavier! Manda aí esse teu moleque trazer gelo, pô!
                O adolescente – envergando uniforme do diocesano – demorou, ressentido, mas levou o gelo; pouco, mas levou.
                Então o leguelhé se serviu do litro (agitando o líquido com os dedos sujos), e aproveitou para entrar de sola no papo da roda. Já com opinião definida: contrária, lógico. Em assunto que nem lhe dizia respeito!
                Reforçada a dose, viu mosca que se debatia dentro do copo. A solução que encontrou para minimizar o prejuízo foi repugnante: retirou o inseto, deu-lhe duas chupadas – slurp! Slurp!, Jogou-o no chão e pisou-lhe em cima. Contente disse:
                - Vá beber uísque no inferno!...

*Do livro Apanhados do Cotidiano.

SEM TÍTULO


Isaias Coelho Marques

Rasga a cara
nesse destempero matinal,
puxa tua bílis,
soma tuas frustrações,
abocanha essa matilha.

Já não existe trilha,
o céu é fosco.

Deixa de lado essas crianças,
volta para teu útero.

Já não existe vida.

AS ÁGUAS VÃO ROLAR*




Daniel Cariello**

A Louise entrou na sala como uma tempestade.
— Pai, pai, tenho uma ideia muito boa. Vamos encher meu quarto de neve! Vamos, pai?
Engasguei com o copo d’água.
— Neve? Não tem neve no Brasil.
— Ué. A gente viaja para um lugar frio, bota a neve em um potinho e traz para nossa casa.
— Não dá, Louise, vai derreter.
— Ah, pai, você não sabe de nada. A gente pega muita, muita neve. O que derreter joga fora. O resto, coloca no meu quarto. Vai ficar lindo.
Já ia começar uma explicação chata sobre estados da água, transferência de calor e outras bobagens de gente grande quando me lembrei dos meus 4 anos e da minha inconformidade com o fato de não haver praia em Brasília.
Na época, propus aos adultos uma solução muito simples.
— É só a gente fazer um caminho do mar do Rio de Janeiro até aqui.
— Mas como, Daniel?
— Ué, cavando, com um trator daqueles bem grandes. Aí a água passa por ali e chega até Brasília.
Estava tudo muito claro na minha cabeça: não existia praia na cidade porque ninguém havia pensado em uma maneira de fazer uma. Agora, com o projeto idealizado, bastava chamar o moço do trator para ele começar a cavar. Eu era um garoto razoável, e refleti que, como já estava de noite, convinha esperar a manhã seguinte. Assim, o moço do trator poderia dormir bem e iniciar o trabalho logo cedo, para dar tempo de terminar antes do anoitecer.
Pacientemente, disseram-me que não era possível; nem dez moços do trator poderiam me ajudar. O mar não chegaria aqui e jamais teríamos praia com água salgada, biscoito Globo e teco-tecos puxando faixas de publicidade no Planalto Central. Escutei atentamente a explanação sobre a impossibilidade de realização do meu projeto, mas fiquei pensando que a verdade residia no fato de os grandes não saberem como executá-lo.
Estava mergulhado em minhas lembranças quando a Louise me chamou novamente.
— Pai, você pode me ajudar com a neve?
Fiz uma contraproposta.
— Só se, depois, você pensar comigo em uma maneira de trazermos a praia para Brasília.
— Eba! Penso, sim!
Abri o congelador, raspei a mão no gelo das paredes até encher um copo e levei-o para o quarto da minha filha. Ainda não era a nevasca desejada, mas tínhamos o suficiente para espalhar pelo chão e fazer suas bonecas esquiar. No canto e de biquíni, uma delas já aguardava a iminente chegada do verão.
*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 27.ago.2014

**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

terça-feira, 2 de setembro de 2014

COLOCANDO OS PINGOS NOS III... VI - A DEMOCRACIA NOSSA DE CADA DIA



Manoel Emílio Burlamaquui de Oliveira
                O nosso sistema de poder, do "quero, posso e mando", resultado de um processo de manipulação de nossas leis, principalmente, de nossa legislação politico-eleitoral, a que deram o nome de governo democrático de direito, criou outra aberração político- ideológica, permitindo todos os tipos de coligações partidárias, por absurdas que possam parecer... Acredito que nem seja necessário apontá-las, pois são encontradas, antes, e depois, das eleições, em todo o território nacional, nos níveis nacional, estadual e municipal. Não por pensarem, os partidos coligados, semelhantemente, mas, tão somente, para gozarem de benefícios pecuniários e/ou da participação no poder, sem quaisquer programas, projetos, ou simples propostas, justificadas racionalmente. Que visem o bem comum ou o bem estar do povo brasileiro. E haja partidos, criados sem ver de que, 34, atualmente! Sabem como os políticos e seus partidos justificam mais essa sacanagem? Apelidaram-na de inerente à Governabilidade!
                Transcreverei, em seguida, um texto, que, salvo melhor juízo, procura esclarecer esse tema:

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

NO DOS OUTROS, É REFRESCO


Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
                Um conceituado ortopedista atendeu a um caminhoneiro, vítima de um desastre em seu caminhão, com tamanhas dedicação e competência, que seu paciente, completamente restabelecido, sempre que passava por Teresina, visitava-o, trazendo-lhe presentes, de agradecimento e de amizade...
                Um dia, chega ele no consultório de seu amigo médico para consultar-se. O médico, constrangido, diz-lhe "desculpe, meu amigo, mas sua doença precisa de um urologista, e eu sou um ortopedista!" Resposta: "não interessa, o Senhor é médico e eu só me trato se for com o senhor”! Conhecendo uma cabeça dura de longe, afinal, há quantos anos clinicava, retrucou: "pois baixe as calças, sente, ali, naquele tamborete furado, que vou lhe examinar”... Desconfiado, o bruto de um caminhoneiro, com mais de 90 kg, obedeceu ao amigo, pois amigo, é amigo...
                Quando levou a dedada, estremeceu-se todo, mas aguentou calado! Aí, falou o médico, "estou achando uma coisa muito estranha aqui dentro, que não sei explicar, vou ser obrigado a chamar um especialista, meu amigo, para saber o que você, tem e passar os remédios"... O negão arregalou os olhos, mas, não titubeou, calado continuou...
                Dito e feito, chega o novo médico, especialista de renome, e vai, logo, calçando a luva. E, tome dedada, dessa vez, vasculhando tudo o que seu dedo, comprido e meio grosso, podia alcançar! - Obrigado, Fulano, por me chamar, esse, me parece, é um caso médico raríssimo, e merece um comunicado dessa ocorrência aos órgãos de saúde públicas federais e, possivelmente, à Organização Mundial da Saúde, dado haver surgido no nordeste brasileiro. Chamarei Sicrano (outro urologista de fama), para ouvir sua opinião, e redigirmos, juntos, esse comunicado. E ligou o telefone, enquanto o pobre paciente nem água pedia...
                Chega o novo "provador", também de jaleco branco, (estavam em seus consultórios) e o dedão enluvado, que, olhado, de esguelha, pelo sem calças, parecia mais grosso que os outros, entrou onde devia, sem "tugido, nem mungido" do paciente (e haja paciência...), a não ser um pequeno pulo, para melhor acomodação naquele assento furado,
                Realizada a NOVA INSPEÇÃO, os doutores iniciaram uma conversa animada, momento em que chegou um irmão do médico amigo do caminhoneiro, que, mesmo sendo advogado, não relaxava uma camisa branca... A conversa animou mais ainda, até que o negão falou grosso "ei, você aí, vem logo meter seu dedo no meu rabo, que isso aqui é mermo do gunverno"!
                Conto esse "causo”‘ pra mostrar como o povo encarava o Governo, as amizades, o respeito, a solidariedade, e, ainda hoje, em sua grande maioria, o fazem, excluídos do processo educativo e do acesso ao conhecimento geral...

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

COLOCANDO OS PINGOS NOS III... V - A DEMOCRACIA NOSSA DE CADA DIA





Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
                A nossa legislação eleitoral, elaborada, aprovada e obedecida por nossos congressistas, estabelece o voto majoritário para as eleições do poder executivo, enquanto impõe o voto proporcional para a eleição dos candidatos a deputados federais. E, os nossos "representantes", dão o golpe final, criando o voto de legenda! Resultado, os que pensam que votam nos candidatos que julgam como os melhores, estão, na verdade, votando nos partidos políticos e elegendo quem não pretendiam, aqueles que, de maneira espúria, (quase todos), conseguiram, pelo voto de legenda, se classificarem a frente dos que tiveram mais votos que eles, mas os seus partidos não obtiveram a legenda necessária para inclui-los entre os eleitos! Ilustrando, a candidata Luciana Genro foi a mais votada para deputado federal, no RS, mas não foi eleita, por seu partido não haver obtidido os votos de legenda suficientes, conforme a legislação eleitoral...Já o Tiririca, com mais de 1.400.000 votos de protesto, que obteve em SP, levou, com ele, mais três deputados federais, que não se elegeriam, caso inexistisse o voto de legenda. Aqui, no Piauí, temos a informação do meu amigo, Luiz Brandão, do PT, que, segundo suas declarações, no Facebook, foi candidato para servir de escadinha aos seus colegas de partido...
                Pois bem, tem gente que prega que devemos votar nos melhores, mesmo sabendo que se eles estiverem em partidos pequenos (principalmente de esquerda), nunca se elegerão, por falta da suficiência eleitoral de seus partidos.
                Além de engolirmos todas essas distorções, ainda validamos essa farsa, com nosso voto, na esperança de uma mudança de representantes no Congresso, que deveriam nos servir, e, não, se servirem!
                Hoje, vésperas de eleições, falam, prometem, exigem, a Reforma Política (Incluem, aí, a reforma da legislação eleitoral) como se fossem legislar contra seus próprios interesses e os dos Partidos a que pertencem! Mais uma farsa...
                O resultado de tudo isso, é a falência dos serviços públicos, da política social, da representatividade democrática, com a comercialização da educação, da saúde, da segurança, do transporte de massa, da mobilidade urbana, da preservação do meio ambiente, que enriquece nossos conhecidos falcatruantes, em detrimento da uma população pobre, sem recursos para obter o que lhe é assegurado, gratuitamente, por nossa Constituição e pelos chamados Direitos Humanos.
                E, nós, o povo, ainda sustentamos, pagando de nossos bolsos, os que deveriam nos servir e que pregam que os culpados disso tudo somos nós mesmos, que os elegemos! (eles próprios não o dizem, abertamente, mas os seus seguidores, sim. ignorantemente ou de má-fé...).

Continua

terça-feira, 26 de agosto de 2014

O NÃO-AMOR NO DIA SEGUINTE



Isaias Coelho Marques

Não emprestarei ao dia seguinte
as cores que nunca teve

Saberei agora que a beleza rui
antes mesmo do alvorecer de teus sentidos.
Eras exatamente o não sonhado,
Eros transmudado em repulsa.

Não emprestarei ao dia seguinte
as cores que nunca teve.

Darei a ele o pulsar frio da mão.
descarnada no aviltamento de tocá-la.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

COLOCANDO OS PINGOS NOS III... IV - A DEMOCRACIA NOSSA DE CADA DIA



Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
                Permitam-me ser enfático: para mim, Governo do povo, pelo povo, para o povo, quer dizer, exatamente, que o governo é nosso, somos nós, (ou os nossos representantes), quem governa, e tem, como objetivo, o nosso bem comum. Esse entendimento da Democracia é que me leva a afirmar que, em nosso país, nosso sistema de governo, se caminha em busca desse ideal, ainda está muito longe de alcançá-lo. Explico: Temos uma "democracia representativa" em que "escolhemos" nossos representantes dos poderes executivo e legislativo, enquanto que o poder judiciário é "governado" por 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, indicados e nomeados pelo chefe do poder executivo após a aprovação de seus nomes pelo poder legislativo.
                Acontece que os "nossos" representantes se apresentam, como candidatos a nos representarem, através de partidos políticos que se formam para "nos" aglutinarem em torno de suas legendas e de seus projetos e planos de governo, "apoiando-os" e "aceitando" uma lista de nomes, apontados nas suas convenções, e nos seus congressos, que deverão concorrer à eleição, conforme o estabelecido na legislação eleitoral vigente, e nos estatutos partidários. E, aqui, inicia-se uma farsa que culmina com uma frase que justifica os maus governos, os maus governantes, e nos acusam de maus eleitores: "o povo tem o governo que merece"!
                Vejamos: o Brasil, hoje, possui cerca de 142 milhões de eleitores; filiados em 34 (!) partidos políticos, que, teoricamente, deveriam escolher os candidatos, nas eleições para o exercício de cargos executivos e legislativos, cerca de 15 milhões e 300 mil, isto é, apenas 10,6% daqueles eleitores, maiores de 16 anos... Entretanto, nas convenções partidárias (cuja principal é a municipal) a obrigação do comparecimento dos filiados, para validá-las, seria de 50% + 1(maioria absoluta), não fosse uma cláusula que permite uma segunda chamada, se aquele número não for alcançado, quando, então, poderiam ser realizadas com qualquer número! Rapidamente, aqueles 10,6% cairiam para menos de 1%, os verdadeiros e “escolhedores" dos nomes dos candidatos de seus partidos. Absurdo? Que nada, nem isso é verdadeiro, pois os nomes, a serem votados pelos convencionais já lhes são apresentados numa lista, elaborada pelos dirigentes dos partidos, que nunca são modificadas, mesmo que alguém quisesse, também, ser candidato, pois seu nome teria que ser votado pelos presentes, quase todos participantes dessa farsa "democrática” (conhecidos como "eleitores de cabresto") Mas, tem mais, e, piores são as consequências...

Continua...