quarta-feira, 30 de julho de 2014

AMOR CAPITAL*



Daniel Cariello**

Dois jovens namorados se escondem em um pilotis, debaixo do bloco. Ele tenta avançar nas carícias. Ela procura freá-las.
— Aí, não. Não pode atravessar fora da faixa.
— Mas não tem ninguém olhando!
— Não pode.
— É que eu te acho, assim, tão monumental. Saio do eixo quando te vejo.
— Você sabe bem: aqui está cerrado.
— Não é justo.
— Sinto muito, mas é assim. E o porteiro está logo ali, com olhos de lobo-guará pra cima da gente. Qualquer deslize, ele conta pros meus pais.
— Vamos pro bloco G, então. Estaremos mais protegidos.
— Não adianta, eles conhecem todo mundo aqui. E você sabe como são bravos.
— Sempre seus pais. Parece que estão em todo lugar. Vivemos à sombra desses dois candangos.
— Você sabia que seria assim quando começamos
a namorar. Não reclama.
— Mas, Sara…
— Vamos parar logo com esta discussão. Vem aqui, juntinho de mim.
— Tá bom.
— Ei, de onde surgiu esta mão?
— É meu abraço grande circular. Tão apertado e dá tantas voltas que deixa até tonto.
— Pois você pode tirá-la daí e voltar agora mesmo ao ponto de partida, Renato.
— Ai, ai, ai. Deu zebrinha.

terça-feira, 29 de julho de 2014

E O VENTO LEVOU...


Poncion Rodrigues*

            Vai começar novamente. A alegre revoada de novos candidatos e dos postulantes à reeleição, que há quatro anos prometiam a mudança do nosso dilapidado Brasil, volta a cobrir o céu de colorida esperança, ao som de jingles exaltantes das qualidades cívicas do deputado fulano ou do neocandidato sicrano. Sob a regência dos papas da publicidade nacional, brinda-se um novo comportamento de antigas e recidivantes raposas, que ao longo de múltiplos mandatos parlamentares jamais participaram de qualquer esforço no sentido de resgatar o país para seu povo, empenhados que estavam em postar-se ajoelhados à espera das determinações planaltinas. A passividade de suas presenças no “gloriosíssimo” congresso nacional, faz dessa, turma uma plateia absolutamente desinteressada pelo espetáculo sórdido do progressivo desmonte do estado brasileiro.
            O tripé, educação, saúde e segurança pública será, mais uma vez, o estandarte portado por aqueles muito “bem intencionados” senhores, como tem sido ao longo das décadas que o criador me tem permitido viver. A propósito, apesar do golpe de mestre denominado “programa mais médicos”, durante vistorias dos conselhos regionais de medicina no território brasileiro, de janeiro a maio deste ano, foi constatado que dentre os 365 postos de saúde visitados, 225 não possuem negatoscópio (para quem não sabe são aquelas caixinhas iluminadas onde se avalia radiografias), 89 não tinham aparelhos para medir pressão arterial e 72 estavam sem estetoscópios para adultos. Levantamentos com base em números oficiais apontam as coincidências entre as altas de investimentos em saúde e os períodos eleitorais que, de acordo com números do próprio governo, sobe em média 48%. Após a disputa ocorre a queda. Que bonitinho!
            Sobre o que aconteceu com os abundantes arsenais de promessas em eleições passadas, até nós eleitores, que somos portadores de infantil ingenuidade, sabemos: O vento levou...
            Nova “festa” de civismo se avizinha. E o cidadão brasileiro, de posse de sua arma que é o título de eleitor, atirará retumbantemente contra si próprio, como tem feito, desde sempre. Democraticamente, é claro.

*Poncion Rodrigues é médico

segunda-feira, 28 de julho de 2014

NOITES MORTAS




Isaias Coelho Marques

Nestas noites mortas
sem nada a fazer,
fecharam-me as portas.
Inútil é dizer.

Hoje
apenas sou leve bulício de mim,
ente incapaz, desastroso,
esmagado pelo próprio fim.
O que falar da vida?

Dentro
apenas essa ferida
                insípida
        do dia-a-dia,
não queria essa compreensão fria.
Cessou a espera da minha horta
Quando apenas há noites mortas.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

A SEMELHANÇA COM A REALIDADE ATUAL NÃO É MERA COINCIDÊNCIA...

Império persa 


Encaminhado por Manoel Andante

(Texto¹ inicial, retirado de uma conferência pronunciada pelo Des. Joaquim Vaz da Costa², em 1924, quando Juiz de Direito de S. João do Piauí, em benefício do "Patronato Agrícola" de S. Raimundo Nonato, dirigido pelo Pe. Horácio R. De Moraes, Sob o título de "A Escravidão na República" e publicada em seu livro "Arengas e Retalhos", 1924).                             

                    "Ao principiar este espectro de conferência, vejo estampar-se, em vossos semblantes um misto de admiração e de assombro, ao ouvirdes falar em escravidão, depois de 34 anos de República, e quando ainda nos chegam aos ouvidos as últimas vibrações dos hymnos e soam clangorosos os échos das trombetas que fizeram estremecer, de enthusiasmo e de alegria, o mais esquecido recanto de nossa querida Pátria, ante o primeiro centenário de nossa independência política.
                Se, entretanto, lançardes um olhar, não simplesmente contemplativo, porém, arguto e pers- crutador, das matas sombrias do Amazonas às verdejantes campinas do sul; do adormecimento de réptil dos Estados do Norte, atrasados e inertes, ao progresso estonteante e vertiginoso de S. Paulo admirável, conversar-vos-eis de que todo esse nababo, portentoso de esbanjamentos e de riquezas incalculáveis, não passa de uma grande senzala onde se move a massa immensa de milhões de escravos da ignorância e do analphabetismo, e milhões de letrados, escravos das conveniências mesquinhas, escravos dos interesses inconfessáveis, escravos da falta de sentimento do dever, escravos da miséria moral, finalmente...
                A nação às portas da bancarrota; os Estados entregues a uma politicalha baixa de cobras que comem cobras; os município, eternas satrapias, sem responsabilidades e sem escrúpulos perante os munícipes, mas, em compensação, sem independência e sem autonomia perante os Estados; os governantes preocupados com a satisfação exclusiva das conveniências individuais, em detrimento dos interesses do país, dos Estados e dos municípios; o legislativo fiel aos gestos, à vontade e aos caprichos do executivo; a justiça acanalhada, sem confiança, sem independência e sem autonomia, ou perseguida e desautorada, sem acatamento e sem garantias; os políticos, banais, sem ideal, sem programma, sem decoro e sem convicção; o correio e o telégrapho, sem sigilo e sem compostura; a imprensa amordaçada; a alma do povo “minada por um pessimismo canceroso e corrosivo"; eis o quadro horrível da horrenda escravidão que todos nós temos, na República, o dever de procurar combater, por todos os meios e com todas as forças a fim deque tenhamos, no mais próximo futuro, o gozo de ver essa immensa senzala transformada em nação livre, pujante, forte e grandiosa".
¹ Mantida a grafia original.
² Vaz da Costa, o tio Vaz, era irmão de minha avó Salustiana e primo de meu avô Manoel Carlos de Oliveira. Tive a felicidade de conviver com minha família paterna, durante os anos 1946/51, quando residi com meu avô, na "Terra Dura”. Propriedade de tio Vaz, enquanto fazia o curso cientifico, no Liceu e o 1º ano de Direito, na nossa Salamanca. Meu tio era professor de Introdução à Ciência do Direito e foi um dos criadores e fundadores daquela Faculdade. Muita saudade de todos, incluindo os primos de todos os graus! (Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira)

segunda-feira, 14 de julho de 2014

REVISTA




Isaias Coelho Marques

infinitamente sou levado a viajar
no que ficou além de mim.
Meu ranger de ossos,
meu trincar de dentes,
tudo isso foi
quando ainda era eu,
o que podia,
o que queria,
quase como um príncipe,
melhor que Teseu.

Abaixo da linha
onde não divisava
melhores dias
nem mulheres lindas,
fiquei acorrentado.

Sou todo infinito
e morto em mim.
Sorriso amarelado
de quem entendeu
e deixou p’ra depois...

Sou todo vida
e findo em meu próprio fim.

NAQUELA NOITE*




Daniel Cariello**
                Se naquela noite os alienígenas chegassem à cidade pela primeira vez, veriam um lugar silencioso, sem pessoas na rua, apenas carros zanzando para um lado e para o outro, sem destino, sem pressa, sem ruídos. Perceberiam algo estranho no ar, mas não seriam capazes de dizer o quê.
                Pensariam, então, que os automóveis eram os habitantes do local e tentariam comunicar-se com eles. Primeiro, por meio de sons e luzes. Depois, usando o idioma das máquinas. Como não haveria resposta, imaginariam tratar-se de uma raça muito diferente, cuja linguagem eles não eram capazes de decifrar.
                Consultariam seus mapas estelares para ter certeza de que estavam no planeta exato, no país correto, na data precisa. Verificariam diversas vezes até não restar mais nenhuma dúvida de que, sim, haviam chegado aonde queriam. E então estranhariam as instruções recebidas de fontes tidas como confiáveis nos altos planos galácticos: “Não há lugar mais feliz no universo neste momento. Entendam o que é esse sentimento e tentem trazer um pouco para nosso mundo tão desenvolvido, mas tão frio de emoções, que se perdeu à medida que avançamos tecnologicamente.”
                Então, eles se aproximariam um pouco mais, e mais, e mais ainda, no limite de não serem vistos, e apontariam suas câmeras para uma região de casas, para a qual dezenas de carros haviam se dirigido algum tempo antes. Ali devia estar acontecendo algo, deduziriam corretamente.
                Pelo zoom, observariam finalmente pessoas, grandes e de alguma maneira semelhantes a eles. Elas estariam silenciosas, desoladas, atônitas, o contrário do que esperavam ver. Já na preparação da viagem de volta ao planeta deles, sem nada para relatar aos superiores, olhariam uma última vez e veriam um outro ser, bem pequeno, aproximar-se de um dos grandes, tão desorientado quanto os demais presentes. Com seus potentes microfones, captariam o áudio do momento.
– Pai, por que você está chorando?
– Perdemos o jogo.
– Você que perdeu?
– Não, o nosso time. Levamos muitos gols.
– Não fica triste. Vamos jogar bola. Eu deixo você fazer mais gols em mim.
                E naquela noite, naquela casa, naquela cidade, naquele país, naquele planeta tão distante, os alienígenas encontrariam o que buscavam: um sorriso alto e de cumplicidade entre pai e filho contagiou os humanos que ali estavam, e eles se organizaram em times para disputar a partida que realmente valeria. Os dois lados eram o Brasil. Que venceu no fim.
*Originalmente publicado em Veja Brasília de 11/07/2014.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

sexta-feira, 4 de julho de 2014

DE COMO O SPICA SALVOU A COPA




A. J. de O. Monteiro

                A copa já passando das oitavas de final e nada, nenhuma ideiazinha para colocar no papel. Espremi o cérebro o quanto pude e nada saia, até que numa de minhas incursões diárias pela internet deparo com uma crônica do Ruy Castro, com o título “Em torno do Spica” (Folha de S. Paulo). Pronto, eis o mote: O nome Spica desencadeou uma enxurrada de lembranças já quase esmaecidas, pelos 44 anos passados. As lembranças da copa do mundo de 1970, disputada no México, a qual assisti do alto dos meus 19 anos.
                Havia um clima de ufanismo promovido pela ditadura militar, que no ritmo da providencial música “Prá Frente Brasil” de Miguel Gustavo, aproveitava a paixão brasileira pelo futebol para abafar os gritos de dor que vinham dos porões dos quartéis. Esses gritos não mais nos importunavam. “Éramos 90 milhões em ação... Todos juntos na mesma emoção” provocada pelos lançamentos de Gérson, pelos geniais toques de Rivelino, pelos deslocamentos de Tostão, pelos dribles de Pelé, pelas botinadas de Brito e pelo pesadelo de que, a qualquer momento o Félix engolisse um frango... Ninguém confiava no pobre goleiro.
                Mas, relembremos a Copa: No primeiro jogo da primeira fase saímos perdendo para a Tchecoslováquia (gol de Petrás, aquele do sinal da cruz), mas logo viramos para 4 x 1, com gols de Rivelino, Pelé e Jairzinho que fez dois. O segundo jogo foi contra a temida Inglaterra, então campeã mundial de 1966. Daquele jogo ficou indelevelmente marcado na minha memória, o lance do único gol da partida: Tostão tromba com um adversário, toma a bola, gira o corpo e, quase caindo, cruza para Pelé que mata no peito e rola para Jairzinho desferir o petardo para o fundo das redes do grande guarda metas inglês, Gordon Banks (desculpem o excesso de futebolês, inspirado no legendário Carlos Said, o magro de aço). Em seguida, vencemos a Romênia por 3 x 2 e, nas quartas de final, ganhamos do Peru por 4 x 2.
                Nas semifinais, o fantasma do “Maracanazo” veio nos assombrar. Teríamos pela frente o Uruguai, que em 1950, em pleno estádio do Maracanã, tomou do Brasil o título mundial que antecipadamente nos foi outorgado pela imprensa ufanista e pelo oportunismo dos políticos. Daquele jogo de 16 de julho de 1950, restou uma frustração que se sedimentou na mente de todos os brasileiros que vivenciaram a tragédia e que se transmitiu para as gerações posteriores como um gene maldito.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

VAI TER CÓPIA*




Daniel Cariello**

                Quem acompanha a Copa lamentou a ausência por contusão de craques como Ribéry, Falcao García e Montolivo. Já eu estou sentindo falta deles e de mais 48 jogadores que ainda não pintaram no meu álbum de figurinhas, apesar da fortuna que já gastei com pacotinhos. Se dependesse da minha escalação, não teria Copa. Ou talvez tivesse, mas num nível que faria Íbis x Mutunópolis parecer a final da Libertadores da América.
                Para suprir essas lacunas e não deixar a minha filha de 4 anos ser humilhada (suas colegas Alice e Pietra desfilam garbosas pela escola com o álbum devidamente preenchido, e o Nicolas já partiu para o segundo), decidi me mexer. Consultei amigos e fiquei sabendo de uma banca de revistas que junta um bando de fanáticos pela coleção. Se eu não resolvesse ali, poderia desistir, eles me disseram.
                O que eu só descobri no local é que alguns chegam lá com objetivos nobres, tipo completar seu álbum e fazer amizades. Mas outros vão apenas para humilhar pessoas como eu, necessitadas de pedaços de papel autocolantes com a fotografia de jogadores de futebol. Esse era o caso de um menino de uns 8 anos, com camisa do Brasil e cabelo à Neymar, que ostentava uma pilha enorme de cromos, o Ribéry no topo. Fui falar com ele.
                — Ô, garoto, quanto você quer pelo francês?
                — Não está à venda. É para trocar. Deixa eu ver o que você tem.
                Passou a vista com desprezo pelo meu magro acervo e o devolveu esticando o braço, sem olhar para mim. Não havia nada que o interessasse, anunciou, com ar superior. Enquanto eu buscava um argumento para reabrir as negociações, alguém do outro lado subiu em um banquinho e gritou:
                — Quem quer o Neymar? É do primeiro que chegar.
                O anúncio, feito por um senhor de bigode monárquico, causou frenesi entre os mais de quarenta técnicos presentes. Todos queriam o atacante brasileiro. Mas quem o levou foi o pirralho, que partiu em disparada e aproveitou-se da agilidade e da baixa estatura para driblar os marmanjos aglomerados e chegar na frente.
                — E o Peyes? Tenho um sobrando aqui — bradou uma adolescente.
                Eu precisava do zagueiro colombiano, mas o insaciável moleque gritou antes de mim, atrapalhando pela terceira vez meu desempenho de colecionador. Pensei em tomar as figurinhas da mão dele e sair correndo, mas ali tinha tanto galalau maior do que os zagueiros da Costa do Marfim que minhas chances de escapar com vida eram inferiores às de o Irã ser campeão mundial.
                Voltei para casa disposto a resolver a situação de qualquer maneira. À noite, enquanto minha filha dormia, baixei na internet, imprimi e colei as figurinhas faltantes. Senti-me um falsário ideológico, mas não havia outra solução a não ser fabricar um pastiche das estampas, uma cópia da Copa.
                De manhã, ela guardou o álbum na mochila da escola, muito satisfeita pela coleção completa. Fiquei aliviado, mas ainda estou pensando no que vou dizer quando ela notar aquele Balotelli quase albino, impresso no fim do cartucho.

*Publicado originalmente em Veja Brasília de 27/06/2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br