Daniel Cariello**
Era
só um pedaço de pano, mais ou menos quadrado, acolhendo imagens vindas de um
projetor localizado a uma ou duas dezenas de metros. Na frente desse pedaço de
pano, centenas de pessoas, talvez pouco mais de um milhar, emprestavam sua
atenção à saga do cabeludo Vincent Vega e seu comparsa Jules Winnfield,
capangas de Marsellus Wallace, chefe da bandidagem e marido da bela Mia.
Era
só uma sessão de Pulp Fiction, aquele filme meio estranho daquele diretor
esquisito, você pode estar pensando. Acontece que, desta vez, a obra não era a
estrela da noite. Claro, os espectadores mais uma vez roeram as unhas na cena
da injeção de adrenalina no coração de Uma Thurman, como ocorre a cada exibição
do clássico de Quentin Tarantino. O público que lotou o gramado da 207 Norte em
uma noite de seca, porém, não estava lá apenas para acompanhar uma história
criada por um cineasta. Estava lá para escrever a própria: a récita da ocupação
do espaço público em Brasília.
Há
tempos sabemos que a lógica da cidade não favorece encontros nas ruas. Na
capital dos carros, os caminhantes são seres praticamente inexistentes. Tem
aquela história da criança nascida e crescida aqui que, pela janela do
automóvel, se espantou ao ver um homem a pé: “Mãe, cadê as rodas daquele
moço?”, perguntou. Quando escutou da progenitora que se tratava de um pedestre,
fez cara de choro e devolveu: “Tadinho. E tem cura?”. Infelizmente, a vocação
da capital não é sairmos andando a esmo até chegarmos a um café, um parque ou
uma loja que nos agrade, como ocorre no Rio de Janeiro ou em São Paulo,
aproveitando o caminho e os encontros inesperados.
A
vocação de Brasília, então, talvez seja ter seus enormes espaços vazios
ocupados criativamente, com a promoção de encontros das pessoas que aqui vivem.
Não falo de eventos oficiais, estes sempre existiram, mas de iniciativas dos
próprios habitantes da cidade. Desse heroico cinema ao ar livre, organizado por
jovens estudantes da UnB que correram atrás de apoio e patrocínio privados e
não tiveram vergonha de pedir a colaboração financeira dos espectadores no fim
da sessão. Do Picnik, nome autoexplicativo, que já reuniu milhares de pessoas
no calçadão do fim da Asa Norte, no gramadão do Eixo Monumental e no Parque da
Cidade. Ou das festas do Confronto Sound System, que com suas batidas ragga
inflamam em fins de semana esporádicos o até então silencioso Setor Comercial
Sul.
O
desejável é que iniciativas como essas se multipliquem a tal ponto que, daqui a
algum tempo, Brasília seja conhecida não pelos amplos vazios, mas pelas
soluções inovadoras que seus moradores elaboraram para preenchê-los.
Era
só uma cidade em busca de sua identidade. E um bando de gente com a cabeça
cheia de boas ideias e muita vontade de ajudar a construí-la.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br