quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

NOITES BRANCAS


Isaias Coelho Marques

Caras, bocas e almas,
painel azul modorrento.
A beleza e o antes dela.
Ah, meu deus!
Que bobagem tentar ser
                      (e somos!)

Somamos e engolimos os divisores.
            (Televisão: fórmulas únicas)
Como ser interessante
ou, ao menos plausível?
Despertar vocês que nem me enxergam
com migalhas de ouro baço?
Mas isso não vale.
Um grande poeta
já deitou em tal travesseiro
                        de nuvens...
Ficarei como,
nesse torvelinho?

Ah, meu Deus!
Sem exclamação, desta vez.
Perdi Deus,
encontrei Deus,
perdi Deus,
e de que me vale,
se não enxergo
nem as cinzas do próximo,
nem nada.
Tudo escuridão.
Perdão!
Tudo escuridão.
Perdão novamente!

Massacre de coisas leves
e muito interessantes.
Não sou interessante
                   nem leve.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A VAN DO ZÉ*


Daniel Cariello**

                Começou a cair um toró daqueles que só tem em Brasília. Dez minutos antes, o sol ardia tanto que os raros passantes da superquadra eram obrigados a procurar uma sombra. Agora o mundo está desabando e os pedestres foram buscar abrigo sob o sempre acolhedor pilotis.
                A chuva chegou trazendo trovões ensurdecedores, seguidos de latidos desesperados de cachorros da redondeza e de gritos rascantes do meu vizinho, que não precisa de desculpa para dar um berro na janela, nem perde uma chance quando ela se apresenta.
— Chega de água! Valham-me, Jesus, Maria e José!
                Vou ao parapeito observar o dilúvio e o desempenho vocal do habitante ao lado e me espanto: parada, em frente ao prédio, está a van da Escola Moraes Rêgo, onde fiz meu 1º grau (crianças, 1º grau era como chamávamos o ensino fundamental em uma época antiga, entre a queda de Constantinopla e o surgimento do iPhone). Se a antiga Kombi foi trocada por essa moderna van em algum momento desse passado quase cenozoico, o piloto ainda é o mesmo Zé da minha infância. As únicas diferenças são o cabelo mais grisalho e o bigode, então ostentoso, agora ausente.
                Apesar da chuva, dá para vê-lo sentado atrás do volante, em seu posto de sempre, com o sorriso e a paciência habituais. Olhando para o nada, o bravo motorista tamborila uma percussão no painel do automóvel enquanto aguarda o fim do aguaceiro e o embarque de uma criança que mora no meu prédio. Pelo horário, meio da tarde, ela deve ir a uma aula de judô, de dança ou de futebol.
                Nesse instante, lembro dos meus colegas por ele transportados. Se eram desbravadores, os primeiros a chegar à escola de manhã cedinho, invariavelmente com cara de sono, tinham o privilégio de ser liberados quinze minutos antes do fim da última aula, pois o prudente chofer queria escapar do engarrafamento de meio-dia. Por engarrafamento de meio-dia, na Brasília dos anos 80, entenda-se um sinal de trânsito de uma via que atravessava a W3 Sul e, por isso, ficava mais tempo vermelho que verde, formando uma fila de uma ou duas dezenas de carros. E aí me recordo também que, ao mudar de colégio, no fim da década, nunca mais tive notícias do Zé. Para dizer a verdade, nem imaginava que ele continuava no seu heroico e nobre batente de carregar crianças pela cidade.
                Quando dou por mim, a chuva já havia parado e uma pontinha de céu azul surgia atrás das nuvens ainda cinzentas. Nesse exato instante, um novo berratório vindo do apartamento contíguo me arranca imediatamente do mergulho na infância e me puxa de volta à realidade.
— Finalmente! No more rain! Viva o sol! Viva o céu! Valeu, Jesus, Maria e José!
Vejo a van virando calmamente a curva e digo a mim mesmo, em voz baixa.
— Valeu, Zé!
*Publicado originalmente em Veja Brasília de 17.dez,2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br


domingo, 14 de dezembro de 2014

ATROPELOS



Isaias coelho marques

Um Niágara
De emoções!

Tanto amara,
tanto empreendera,
e ver este amor
acabar desta maneira:
Corpo estendido
         esfacelado
     desmilinguido
ao chocar-se em tua pedreira

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

DIANTE DA TORRE*



Daniel Cariello**

“Esta é a Torre de TV, maravilha da arquitetura”. Não, ela não foi desenhada pelo Niemeyer. A dele é a Torre de TV Digital, perto de Sobradinho. E é Niemeyer, não Niemayer. Tem som de “a”, mas se escreve com “e”, muitos se confundem, assim como na hora de escrever Kubitschek, mais letra do que a gente pronuncia, coisa de louco, quem precisa de tanta consoante? Niemeyer morreu com cento e tantos anos, era mais velho do que a própria arquitetura, dizem. Mas o projeto é de outro notável, criador do Plano Piloto de Brasília. Lucio Costa, brasileiro nascido em Toulon, na França, pátria de Gustave Eiffel, projetista da torre que leva o seu nome, em Paris, inspiração desta aqui. Pois não, minha senhora? Olha, não sei dizer, ele nasceu lá mas era brasileiro, não entendo dessas questões. Esta dúvida você pode tirar com o meu colega ali, o Afobado, assessor de fofocas e babados. Já foi colunista social, hoje vive de contar causos e mexericos. A torre tem 224 metros e um mirante a 75 metros, de onde podemos observar o urbanismo e os monumentos da cidade, como o Memorial JK, o estádio Mané Garrincha, a Catedral, a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional. Pode falar mais alto, senhor? Não, não acho. Estou dizendo que o Congresso é belo, não me refiro ao que armam lá dentro. O Niemeyer fez a parte dele, desenhou uma obra de arte, e o Joaquim Cardoso, engenheiro e poeta, fez os cálculos, a cúpula da Câmara parece quase flutuar. Mas do que aconteceu depois eles não têm culpa. Niemeyer era mais velho do que a corrupção, dizem. Ali é a fonte musical, uma beleza. Os jatos d’água são sincronizados com a trilha sonora. Não me perguntem como fazem isso. Quero ver é se funciona com heavy metal. É bom para vir à noite, tem até pipoqueiro, coisa rara na cidade. Eu já disse antes, o termômetro do sucesso de um ponto turístico é a presença de pipoqueiro no lugar. Este painel aqui é novidade, “Eu amo Brasília”. Foi colocado na época da Copa do Mundo e ficou. Como? Sim, eu sei, tem um parecido em Amsterdã, mas não foram os holandeses que o deixaram aí após a disputa do terceiro lugar. Aliás, vamos mudar de assunto. Logo atrás é a feira. Antes, ela ficava no pé da torre, mas a transferiram para uma área um pouco mais afastada. É um pequeno retrato de Brasília, tem gente, comida e artesanato do país inteiro e o melhor tacacá do Distrito Federal. Tacacá, não vatapá. Gosto dos dois, e você? Quem já ouviu aquela música “por toda a plataforma você não vê a torre”? Sabem do que o cantor está falando? Da plataforma da rodoviária, logo ali. Já tentou ver a torre de lá? E você aí achando que ele estava cantando outra cidade, né? Não, essa música não é do Niemeyer com “e”, ele era mais velho do que o som, dizem. É do Renato Russo, que, por sua vez, era brasileiro. O Afobado ali explica melhor. Mas vamos subir no mirante, apreciar a vista. Lá em cima eu conto mais histórias. Por aqui, senhoras e senhores.”
*Originalmente publicado e Veja Brasília de03. dez.2014.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br