domingo, 28 de setembro de 2014

OCUPANDO OS ESPAÇOS*



Daniel Cariello**

                Era só um pedaço de pano, mais ou menos quadrado, acolhendo imagens vindas de um projetor localizado a uma ou duas dezenas de metros. Na frente desse pedaço de pano, centenas de pessoas, talvez pouco mais de um milhar, emprestavam sua atenção à saga do cabeludo Vincent Vega e seu comparsa Jules Winnfield, capangas de Marsellus Wallace, chefe da bandidagem e marido da bela Mia.
                Era só uma sessão de Pulp Fiction, aquele filme meio estranho daquele diretor esquisito, você pode estar pensando. Acontece que, desta vez, a obra não era a estrela da noite. Claro, os espectadores mais uma vez roeram as unhas na cena da injeção de adrenalina no coração de Uma Thurman, como ocorre a cada exibição do clássico de Quentin Tarantino. O público que lotou o gramado da 207 Norte em uma noite de seca, porém, não estava lá apenas para acompanhar uma história criada por um cineasta. Estava lá para escrever a própria: a récita da ocupação do espaço público em Brasília.
                Há tempos sabemos que a lógica da cidade não favorece encontros nas ruas. Na capital dos carros, os caminhantes são seres praticamente inexistentes. Tem aquela história da criança nascida e crescida aqui que, pela janela do automóvel, se espantou ao ver um homem a pé: “Mãe, cadê as rodas daquele moço?”, perguntou. Quando escutou da progenitora que se tratava de um pedestre, fez cara de choro e devolveu: “Tadinho. E tem cura?”. Infelizmente, a vocação da capital não é sairmos andando a esmo até chegarmos a um café, um parque ou uma loja que nos agrade, como ocorre no Rio de Janeiro ou em São Paulo, aproveitando o caminho e os encontros inesperados.
                A vocação de Brasília, então, talvez seja ter seus enormes espaços vazios ocupados criativamente, com a promoção de encontros das pessoas que aqui vivem. Não falo de eventos oficiais, estes sempre existiram, mas de iniciativas dos próprios habitantes da cidade. Desse heroico cinema ao ar livre, organizado por jovens estudantes da UnB que correram atrás de apoio e patrocínio privados e não tiveram vergonha de pedir a colaboração financeira dos espectadores no fim da sessão. Do Picnik, nome autoexplicativo, que já reuniu milhares de pessoas no calçadão do fim da Asa Norte, no gramadão do Eixo Monumental e no Parque da Cidade. Ou das festas do Confronto Sound System, que com suas batidas ragga inflamam em fins de semana esporádicos o até então silencioso Setor Comercial Sul.
                O desejável é que iniciativas como essas se multipliquem a tal ponto que, daqui a algum tempo, Brasília seja conhecida não pelos amplos vazios, mas pelas soluções inovadoras que seus moradores elaboraram para preenchê-los.
                Era só uma cidade em busca de sua identidade. E um bando de gente com a cabeça cheia de boas ideias e muita vontade de ajudar a construí-la.
*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 17.set.2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

sábado, 27 de setembro de 2014

quarta-feira, 10 de setembro de 2014


NOITES DE PRATA*
Daniel cariello**
Não, sério, corra. Pare tudo e vá ver a lua. É a maior dos últimos tempos, e falam que a próxima assim só daqui a 73 anos. Eu sei, teve outra parecida há quatro meses e disseram que igual só meus bisnetos veriam, mas essa é diferente, juram. É a lua azul. É verdade que ela não está azul, porque a lua nunca é azul realmente. Ela é no máximo amarela quando nasce e logo fica branquinha, passa muito longe do azul. Blue moon, em inglês. Se não chega nunca a esse tom, pelo menos serviu de inspiração para grandes músicas, o que não é pouco. Under blue moon I saw you. Mas essa não é a lua azul? É só cheia mesmo? A próxima azul é daqui a quanto tempo? Não tem problema, está linda, vá lá ver. Ora (direis) ouvir estrelas, declamava um Bilac apaixonado, olhando pela janela. Eu sei, não estamos falando de estrelas, e sim da lua, mas elas compartilham o mesmo céu. E, se você é capaz de ouvir aquelas, que estão longe, certamente captará o que esta diz, pois é nossa vizinha. Aproveite esse brilho todo, tome um banho do astro ao som dos Mutantes e me diga uma coisa: você vê o quê, São Jorge ou o dragão? Tenho um amigo que vê um rosto de mulher. Sabe o que eu vejo? Um coelho. Sério, olhe bem, aproveite que ela está bela e cheia. Repare ali: as orelhas, o corpo, um coelho. Não estou mentindo. Mente quem diz que a lua é velha. Você acredita que o homem já pisou lá? E por que não voltou mais? Talvez porque a solidão ali seja insuportável. Deve ser o lugar mais solitário do universo, não temos a lua para contemplar e para nos confessar. Mas, vá, confesse, já viu uma desse tamanho? Está linda. Foi uma assim que a Nereide, a menina mais bonita da escola, pediu de presente para o Fonchito, na história do Vargas Llosa. Lua, lua, lua, lua, por um momento meu canto contigo compactua. A gente observa desde sempre e nunca se cansa. O que haverá lá do lado de lá dela? Enquanto imagino, coloco Pink Floyd para girar a 33 rotações por minuto. Paro em frente à janela e olho para o céu. É incrível como ela está especialmente bela hoje. Conheço um poeta que tomaria um conhaque e ficaria comovido como o diabo.

*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 10.set.14
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

REPUGNÂNCIA*


João José de Andrade Ferraz
                Estabelecimento original, aquele, pertencente ao Xavier; ficava na Rua São Pedro, entre Magalhães Filho e Coelho de Resende. De frente à São Pedro, mercearia onde (em pé, encostados no balcão) eminentes tomavam umas e discutiam ordem do obedecendo prioridades como futebol, mercado financeiro, piranha e política.
                Desses papos o proprietário fazia absoluta questão de manter distância, assim como não permitia encostar peru: ali pontificava elite dos frequentadores.
                À esquerda, estreito corredor dava acesso à residência da família; nos fundos, palhoça que reunia a mais fina flor da pilantragem – no bom sentido, claro.
                Entre os clientes, tabaréu de modos asselvajados que segundo comentários transava coisas de agiotagem, explorava comércio da fachada e tinha outras rendas. Mas o que amolava o Xavier eram outros motivos: o cara dizia pilhérias a domésticas da vizinhança, enfiava a mão nos tira-gostos, só contava piadas obscenas. Enfim, enchendo a freguesia, intrometia-se em conversas particulares; nas comuns, correntes, apenas ele tinha razão. Não dava lucro: exigia gelo, levava a própria bebida, quebrava copos, saía sem agradecer, desculpar-se ou se despedir. Um cricri!
                A respeito, afamado e gastador juris consulto dera parte do procedimento.
                Certa feita, lá atrás, sentado sobre a mesa e pés descansando num tambores, gritou:
                - Xavier! Manda aí esse teu moleque trazer gelo, pô!
                O adolescente – envergando uniforme do diocesano – demorou, ressentido, mas levou o gelo; pouco, mas levou.
                Então o leguelhé se serviu do litro (agitando o líquido com os dedos sujos), e aproveitou para entrar de sola no papo da roda. Já com opinião definida: contrária, lógico. Em assunto que nem lhe dizia respeito!
                Reforçada a dose, viu mosca que se debatia dentro do copo. A solução que encontrou para minimizar o prejuízo foi repugnante: retirou o inseto, deu-lhe duas chupadas – slurp! Slurp!, Jogou-o no chão e pisou-lhe em cima. Contente disse:
                - Vá beber uísque no inferno!...

*Do livro Apanhados do Cotidiano.

SEM TÍTULO


Isaias Coelho Marques

Rasga a cara
nesse destempero matinal,
puxa tua bílis,
soma tuas frustrações,
abocanha essa matilha.

Já não existe trilha,
o céu é fosco.

Deixa de lado essas crianças,
volta para teu útero.

Já não existe vida.

AS ÁGUAS VÃO ROLAR*




Daniel Cariello**

A Louise entrou na sala como uma tempestade.
— Pai, pai, tenho uma ideia muito boa. Vamos encher meu quarto de neve! Vamos, pai?
Engasguei com o copo d’água.
— Neve? Não tem neve no Brasil.
— Ué. A gente viaja para um lugar frio, bota a neve em um potinho e traz para nossa casa.
— Não dá, Louise, vai derreter.
— Ah, pai, você não sabe de nada. A gente pega muita, muita neve. O que derreter joga fora. O resto, coloca no meu quarto. Vai ficar lindo.
Já ia começar uma explicação chata sobre estados da água, transferência de calor e outras bobagens de gente grande quando me lembrei dos meus 4 anos e da minha inconformidade com o fato de não haver praia em Brasília.
Na época, propus aos adultos uma solução muito simples.
— É só a gente fazer um caminho do mar do Rio de Janeiro até aqui.
— Mas como, Daniel?
— Ué, cavando, com um trator daqueles bem grandes. Aí a água passa por ali e chega até Brasília.
Estava tudo muito claro na minha cabeça: não existia praia na cidade porque ninguém havia pensado em uma maneira de fazer uma. Agora, com o projeto idealizado, bastava chamar o moço do trator para ele começar a cavar. Eu era um garoto razoável, e refleti que, como já estava de noite, convinha esperar a manhã seguinte. Assim, o moço do trator poderia dormir bem e iniciar o trabalho logo cedo, para dar tempo de terminar antes do anoitecer.
Pacientemente, disseram-me que não era possível; nem dez moços do trator poderiam me ajudar. O mar não chegaria aqui e jamais teríamos praia com água salgada, biscoito Globo e teco-tecos puxando faixas de publicidade no Planalto Central. Escutei atentamente a explanação sobre a impossibilidade de realização do meu projeto, mas fiquei pensando que a verdade residia no fato de os grandes não saberem como executá-lo.
Estava mergulhado em minhas lembranças quando a Louise me chamou novamente.
— Pai, você pode me ajudar com a neve?
Fiz uma contraproposta.
— Só se, depois, você pensar comigo em uma maneira de trazermos a praia para Brasília.
— Eba! Penso, sim!
Abri o congelador, raspei a mão no gelo das paredes até encher um copo e levei-o para o quarto da minha filha. Ainda não era a nevasca desejada, mas tínhamos o suficiente para espalhar pelo chão e fazer suas bonecas esquiar. No canto e de biquíni, uma delas já aguardava a iminente chegada do verão.
*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 27.ago.2014

**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

terça-feira, 2 de setembro de 2014

COLOCANDO OS PINGOS NOS III... VI - A DEMOCRACIA NOSSA DE CADA DIA



Manoel Emílio Burlamaquui de Oliveira
                O nosso sistema de poder, do "quero, posso e mando", resultado de um processo de manipulação de nossas leis, principalmente, de nossa legislação politico-eleitoral, a que deram o nome de governo democrático de direito, criou outra aberração político- ideológica, permitindo todos os tipos de coligações partidárias, por absurdas que possam parecer... Acredito que nem seja necessário apontá-las, pois são encontradas, antes, e depois, das eleições, em todo o território nacional, nos níveis nacional, estadual e municipal. Não por pensarem, os partidos coligados, semelhantemente, mas, tão somente, para gozarem de benefícios pecuniários e/ou da participação no poder, sem quaisquer programas, projetos, ou simples propostas, justificadas racionalmente. Que visem o bem comum ou o bem estar do povo brasileiro. E haja partidos, criados sem ver de que, 34, atualmente! Sabem como os políticos e seus partidos justificam mais essa sacanagem? Apelidaram-na de inerente à Governabilidade!
                Transcreverei, em seguida, um texto, que, salvo melhor juízo, procura esclarecer esse tema: