Daniel Cariello**
Começou
a cair um toró daqueles que só tem em Brasília. Dez minutos antes, o sol ardia
tanto que os raros passantes da superquadra eram obrigados a procurar uma
sombra. Agora o mundo está desabando e os pedestres foram buscar abrigo sob o sempre
acolhedor pilotis.
A
chuva chegou trazendo trovões ensurdecedores, seguidos de latidos desesperados
de cachorros da redondeza e de gritos rascantes do meu vizinho, que não precisa
de desculpa para dar um berro na janela, nem perde uma chance quando ela se
apresenta.
— Chega de água! Valham-me,
Jesus, Maria e José!
Vou
ao parapeito observar o dilúvio e o desempenho vocal do habitante ao lado e me
espanto: parada, em frente ao prédio, está a van da Escola Moraes Rêgo, onde
fiz meu 1º grau (crianças, 1º grau era como chamávamos o ensino fundamental em
uma época antiga, entre a queda de Constantinopla e o surgimento do iPhone). Se
a antiga Kombi foi trocada por essa moderna van em algum momento desse passado
quase cenozoico, o piloto ainda é o mesmo Zé da minha infância. As únicas
diferenças são o cabelo mais grisalho e o bigode, então ostentoso, agora
ausente.
Apesar
da chuva, dá para vê-lo sentado atrás do volante, em seu posto de sempre, com o
sorriso e a paciência habituais. Olhando para o nada, o bravo motorista
tamborila uma percussão no painel do automóvel enquanto aguarda o fim do
aguaceiro e o embarque de uma criança que mora no meu prédio. Pelo horário,
meio da tarde, ela deve ir a uma aula de judô, de dança ou de futebol.
Nesse
instante, lembro dos meus colegas por ele transportados. Se eram desbravadores,
os primeiros a chegar à escola de manhã cedinho, invariavelmente com cara de
sono, tinham o privilégio de ser liberados quinze minutos antes do fim da
última aula, pois o prudente chofer queria escapar do engarrafamento de
meio-dia. Por engarrafamento de meio-dia, na Brasília dos anos 80, entenda-se
um sinal de trânsito de uma via que atravessava a W3 Sul e, por isso, ficava
mais tempo vermelho que verde, formando uma fila de uma ou duas dezenas de
carros. E aí me recordo também que, ao mudar de colégio, no fim da década,
nunca mais tive notícias do Zé. Para dizer a verdade, nem imaginava que ele
continuava no seu heroico e nobre batente de carregar crianças pela cidade.
Quando
dou por mim, a chuva já havia parado e uma pontinha de céu azul surgia atrás
das nuvens ainda cinzentas. Nesse exato instante, um novo berratório vindo do
apartamento contíguo me arranca imediatamente do mergulho na infância e me puxa
de volta à realidade.
— Finalmente! No more rain! Viva
o sol! Viva o céu! Valeu, Jesus, Maria e José!
Vejo a van virando calmamente a
curva e digo a mim mesmo, em voz baixa.
— Valeu, Zé!
*Publicado originalmente em Veja
Brasília de 17.dez,2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br