quarta-feira, 22 de abril de 2015

ELA ACORDOU W3*




Daniel Cariello**
"No aniversário de Brasília, republico uma das minhas crônicas em homenagem à cidade".

– Bom dia, doutor.
– Bom dia, o que a traz aqui?
– Hoje eu acordei totalmente W3!
– Não me diga… Como isso começou?
– Não sei bem. Ontem, depois da segunda pinga de pequi, comecei a me sentir meio tesourinha. Aí, quando me olhei no espelho de manhã, notei que estava assim, W3.
– Você está se sentindo mais W3 Sul ou Norte?
– E tem isso?
– Tem, claro. É comum pacientes reclamarem de uma sensação de W3 Sul, um sentimento de se tornarem desimportantes depois de terem vivido uma época de glória.
– Talvez eu esteja mais W3 Norte, então. Tô me sentindo como alguém que tinha um grande vazio que foi preenchido desorganizadamente.
– Era disso que eu tinha medo!
– Por quê, doutor?
– Casos de W3 Sul são mais facilmente tratados. Uma volta de Grande Circular às 18 horas geralmente resolve. O sentimento de abandono desaparece completamente.
– Sério?
– É batata! O único efeito colateral possível é a síndrome de W3 Sul ser substituída por uma de Sudoeste Econômico, uma sensação horrível de aperto. Mas essa é temporária: basta descer do ônibus que passa.
– Mas então o meu caso de W3 Norte é grave, doutor?
– Não sei dizer. É um fenômeno relativamente novo. Tive poucos pacientes com esse diagnóstico.
– Você pode me ajudar? Por favor!
– Podemos tentar um tratamento alternativo. Há alguns meses, recebemos aqui um rapaz com os mesmos sintomas e receitamos uma grande dose de Conjunto Nacional. Nada como combater o caos com mais caos.
– Deu certo?
– Não sabemos, parece que ele se perdeu no shopping e não conseguiu mais encontrar a saída. Olhando pelo lado bom, não voltou para reclamar. Mas não se preocupe, vamos utilizar outra técnica com você. Só não posso garantir que vá funcionar.
– Topo qualquer coisa para me livrar disso.
Uma semana depois, ela retorna ao consultório.
– Que bom vê-la novamente! Seguiu o tratamento?
– Segui.
– Ficou uns dias em casa, quieta, sem contato com o mundo, só escutando Legião Urbana acústico e Renato Russo em italiano?
– Fiquei.
– Ainda está W3?
– Não.
– Eu sabia!!! Como se sente agora?
– Depois desse claustro? Agora me sinto Noroeste: totalmente vazia, subitamente desvalorizada, completamente empoeirada. Você precisa me ajudar, doutor!
– Ai, meu Dom Bosco...
*Publicada originalmente em Veja Brasília de 16.ago.2013.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

terça-feira, 21 de abril de 2015

INFERNAIS F.C.*



Daniel Cariello**

Naquele dia, estávamos infernais. Nosso time jogava por música, talvez por causa do entrosamento do André e do Daniel, os gêmeos laterais e violinistas. Tínhamos também o Vander, armador, craque da equipe, e uma dupla de atacantes ligeiros: Fábio e o meu irmão, Pedro. Além de uma retaguarda com o sólido zagueiro Rafael e o goleiro Mingau. Até eu, glorioso perna de pau, tinha meu papel: ocupar espaços vazios, o que fazia com competência, pois fugia sempre da bola. Ao menos, puxava a marcação.
Passávamos as tardes treinando, imaginando uma final contra a Argentina. Mas não foram os hermanos que apareceram aquele dia, e sim uma parte da temida Turma do Parquinho:
– Duda mandou dizer que vocês vão jogar contra nós.
– Quem é Duda?
– Sou eu mesmo!
Aceitamos. Podíamos ser menores e mais fracos, mas não éramos covardes. No entanto, o embate que se anunciava duro foi interrompido quando ganhávamos de 3 a 0.
– Duda declarou o fim do treino. Às 16 horas, ele voltaria com o time completo.
Estávamos lascados! Eles tinham o Bode, assim batizado graças à habilidade em chifrar o que aparecesse pela frente; o Max, professor de capoeira; e Suíno, Perdigueiro e Salame, trupe de carniceiros conhecida como Trio Ternura. Nosso objetivo já não era ganhar a partida, mas sobreviver a ela. Às 16 horas em ponto, a Turma do Parquinho chegou.
– Duda definiu: time dos fracotes de camisa. Nós, sem. E a bola começa com a gente.
Ninguém se opôs. Duda deu a saída tocando para o Bode, que avançou derrubando os gêmeos, o Rafael e o Mingau. Entrou com bola e tudo. Recomeçamos o jogo, mas Max interceptou um passe e acertou uma bomba de longe, no cantinho. Um massacre se anunciava.
Porém, tal qual um Didi de 58, Vander caminhou com a bola até o meio do campo. Na primeira jogada, cruzou para o André, que tocou para o Pedro. Livre, nosso atacante driblou o goleiro e diminuiu a diferença. No lance seguinte, Rafael armou um contra-ataque e lançou Fábio, que empatou.
A Turma do Parquinho veio com tudo, mas Mingau não tava para moleza. Depois de espetacular defesa, deuum chutão para a frente e a pelota veio na minha direção. Tentei tocar para o lado, mas ela bateu no meu joelho e encobriu o goleiro adversário. Estávamos na frente.
A cinco minutos do fim, Max deu nova saída, tocou para Suíno, que passou para Salame, que lançou Perdigueiro. Rafael dividiu, mas levou a pior e precisou sair para se recuperar. Duda enxergou o buraco na defesa e entrou ali para empatar novamente o jogo.
Mesmo com um a menos, sentíamos que podíamos ganhar. E o que aconteceu foi a mais espetacular jogada da história da 712 Sul: Vander driblou dois e passou para o André, que tocou para o Daniel. Este segurou a bola, atraindo a marcação. Lançou para mim, que furei, enganando o marcador. Fábio recuperou, fintou o zagueiro e cruzou certeiro para o Pedro, que cabeceou para baixo. Gol! Não havia tempo para mais nada. Celebramos loucamente a vitória e, sem saber ainda, nosso rito de passagem para a adolescência.
Como eu dizia, naquele dia, estávamos infernais.
*Publicado originalmente em Veja Brasília de 22.abr.2015
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

ESCURIDÃO




Isaias Coelho Marques

A consciência subindo
zune no infinito azul
de nenhuma luz

sexta-feira, 17 de abril de 2015

ABRAM ALAS PARA O REI



Daniel Cariello*

O ônibus lotado que levava os passageiros do avião até o terminal do Santos Dumont deu uma parada para deixar passar um carrão de filme, escoltado por duas viaturas policiais. Encucado, perguntei ao condutor.
- Quem vai ali? A presidente?
- Enta.
- O quê?
- É presidenta, o certo.
- Que seja. É a presidenta ali, seu motoristo?
- Não, é o rei.
- Rei de onde?
- Daqui mesmo. É o nosso Rei Roberto Carlos.
- Ele desce antes dos outros passageiros?
- Você tá brincando, né? Ele não pega vôo comercial. O cara tem o próprio avião particular, aquele ali, ó.
- Gente coisa é outra fina...
- E quando ele vai viajar, o motorista pára o carrão na entrada da pista e a escolta logo chega para acompanhá-lo até o jatinho.
- E toda vez a gente tem que parar para que ele passe?
- Ué, e não tem sido assim há mais de 50 anos?
Concordei com o raciocínio, tem mesmo sido assim há muito tempo, minha avó já parava para olhar quando o cantor aparecia na TV em preto e branco, e alardeava um suposto e distante parentesco: “Ele é de Cachoeiro de Itapemirim, cidade vizinha à minha Castelo.” Mas desconcordei do fato de sermos obrigados a aguardar a travessia real para seguirmos adiante.
- Ainda mais levando em consideração a produção musical dele dos últimos 30 anos, uma verdadeira tristeza.
Mas o chofer nem ouviu, estava entretido assoviando Detalhes, no que acompanhei quando chegou o refrão.


terça-feira, 14 de abril de 2015

AS AGRURAS DE UM ENVELHESCENTE*


A. J. de O. Monteiro
               Quando criança imaginava que as pessoas haviam nascido assim como as conheci, ou seja: os velhos nasceram velhos; os adultos nasceram adultos e as crianças nasceram assim e assim permaneceriam para todo o sempre. Não tinha, então, ideia do fenômeno da vida como concepção, nascimento, crescimento (no meu caso, não muito) e morte. Não sei exatamente a que altura da vida tomei consciência da realidade. Talvez com o nascimento de novos membros na família, principalmente sobrinhos, muitos dos quais nasceram na casa de meus pais e acompanhei o processo, mesmo com as restrições impostas às crianças, àquela época. Bem, deixem-me explicar: Família grande, dezesseis irmãos e eu, o penúltimo da prole, tenho sobrinhos com minha mesma idade.
               Fui então passando pelas fases naturais da vida sem maiores problemas e sem me preocupar com a etapa derradeira dessa jornada perigosa chamada vida. A tomada de consciência do processo, não me causou nenhum temor achando que chegaria à velhice – algo sempre muito distante para mim – sem os achaques frequentemente relatados por aqueles que já viviam essa fase. E com essa convicção fui ultrapassando as décadas cumprindo os rituais próprios de cada uma, sem perceber as alterações que o tempo vinha impondo ao meu organismo. O embranquecimento precoce dos cabelos, encarei como de caráter hereditário, assim como o concomitante início da calvície, prenunciada pelo avanço das famosas “entradas” – como se diz, “comendo pelas beiradas”.
               E lá ia eu, tranquilo, jogando meu futebol de fim de semana, tomando minha cervejinha dia sim, outro também, até que minha permanência em campo foi diminuindo de tempo, enquanto o intervalo entre as corvejadas e outras atividades, foi aumentando...

segunda-feira, 13 de abril de 2015

DIREITA, VOLVER! DERAM O GOLPE EM TERESINA E ACABARAM COM MINHAS ANDANÇAS!



Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira

Confesso que sou esquerdista de nascimento. Quando descobriram que eu era canhoto, minhas queridas professoras e meus amados pais não permitiram que me forçassem a ser direitista, e, muito menos ambidestro, “pois poderia", tal intervenção, "prejudicar meu caráter, quando adulto". Crendice popular, ou não, continuei esquerdista, até hoje, sem provar do gosto de uma criancinha, e sempre respeitado no meu direito de ir e vir, com exceção de uns dias que passei no 25º BC, por minha postura, de nascença, teimosa, escrevendo, comendo, dormindo, sempre com a esquerda...
Agora, infelizmente, o bicho pegou! Pois não é que, que enquanto se discutia, e se discute, quem rouba mais no nosso Brasil, se os da "direita" ou os da "esquerda" (e como tem ladrões!), as nossas autoridades municipais, legítimos neoliberais peessedebistas, anteciparam-se e deram um golpe mortal nas esquerdas? e, até, no centristas, onde os inocentes costumam admirar o belo da natureza? Credo!, só podemos andar na direita, dobrar., só pra direita, tornando as coisas mais difíceis pros nossos bolsos, pelo preço que nos custará mudando nossos caminhos, das esquerdas pra direitas, e, por cima de tudo, ainda sendo punido se não aderirmos ao golpe...
E o pobre véio, como é fica? Já guardei o meu fusquinha, tão acostumado que estava, em andar na esquerda, pra não cair em tentação, e correr o risco de ser preso, de novo. Dizem, que, na minha idade, não corro, mais, esse perigo, mas, por via das dúvidas...
Há um consolo, pra enganar os tolos, como eu: no entanto, a pé, poderemos ir por qualquer caminho, até pelas esquerdas!
Ainda bem, não serve pra ir longe, mas, nas madrugadas, e escondido, farei minhas caminhadas, recomendadas por meu médico... Vôte !
Faz isso não, minha gente, poupem, ao menos, os canteiros centrais da Getúlio Vargas e as carnaubeiras da J K, ou a birra, também, é com os nomes?
Como Galileu, continuo dizendo, baixinho, mas eu sou canhoto, sou canhoto, sou canhoto!

sexta-feira, 10 de abril de 2015

ÚLTIMA ESPERANÇA



Isaias Coelho Marques

Estourei minha boca,
explodi minha vida,
virei tudo:
sentido,
contramão,
trânsito.
Você não me quis.

Estourei meus olhos,
             meu coração
Você não me quis.

Hoje,
no reguinho de sua bunda,
estourei minha última esperança.

O BASTIÃO DA MORALIDADE*



Daniel Cariello**

Um deputado chega à chapelaria da Câmara e pede uma informação ao atendente.
— Então, queria saber onde fica o Setor das Propinas. Tem uma aí que não pude pegar.
— Não pôde, é?
— É, tinha designado o meu suplente para cuidar desse tipo de assunto, mas o cara foi cassado.
— Puxa, que chato.
— Nem me diga. Aí fica essa dor de cabeça. Eu mesmo preciso vir. Despenquei da minha cidade só para isso.
— Um transtorno.
— Enorme, enorme. Vou até perder a festa de aniversário da sobrinha do vizinho da minha ex-sogra.
— Lamento por Vossa Excelência.
— Obrigado. Em trinta anos nesta casa, é a primeira vez que uma situação dessas me acontece. Já foi mais simples. Tinha uma época que a gente recebia em cheque, num lindo envelope, fechado com cera quente. Coisa fina, de muito bom gosto.
— Lembro bem. Tempos de ouro.
— Muito ouro. Tudo funcionava direitinho. Eu chegava ao aeroporto, entrava em um táxi, buscava o envelope, tomava um café, fazia um discurso inflamado para a TV e voltava a tempo de pegar o penúltimo voo, porque o último sai muito tarde e eu gosto de dormir e acordar cedo.
— No que Vossa Excelência faz muito bem, senhor deputado. Deus ajuda...
— ...a quem cedo madruga.
— É o que diz a sabedoria popular.
— E aí veio a época do depósito direto. Funcionou bem até aquele assessor dar com a língua nos dentes e obrigar todo mundo a abrir contas secretas em paraísos fiscais. A minha, por exemplo, está em Liechtenstein. Nem sei onde fica no mapa.
— Ninguém é obrigado a saber, senhor deputado.
— É o que eu sempre digo por aí. E é melhor assim. Se der zebra (bate na madeira três vezes, gesto repetido pelo atendente), ninguém poderá me obrigar a ir ao banco retirar o dinheiro.
— Muito sábio de vossa parte.
— Aí, tiveram essa ideia de criar o Setor das Propinas. É boa, admito. Escancarando a coisa, ninguém percebe. Quando fazíamos tudo escondido, sempre havia aqueles jornalistas que não tinham nada melhor para fazer e ficavam procurando informações confidenciais, pistas, conexões secretas.
— Esses jornalistas...
— O inconveniente é que agora alguém precisa passar para encher a maleta e assinar o recibo em três vias.
— Para que tanta burocracia, Vossa Excelência?
— Pois é, para... Ai, meu Deus!
— O que houve, senhor deputado?
— Ficamos aqui nesse papo bom e esqueci que tenho um pronunciamento agora, no plenário. Aproveitei que vinha e marquei na agenda.
— Posso perguntar qual o assunto do discurso de Vossa Excelência?
— Pode, claro. Vou esbravejar contra a corrupção que assola o nosso Brasil.
— Bravo! É gente como o senhor que constrói um país melhor.

*Publicado originalmente em Veja Brasília de08.abr.2015
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br