domingo, 26 de julho de 2015

GRITO



Isaias Coelho Marques

Essa grande
Dor do vazio
Nada dentro
Do nada
Mão atada
Nó górdio
E esse ódio
Do finito
Desastre
E arte
Presos nesse
Grito.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

A QUEDA DOS CAMARGO*



Daniel Cariello**

O pai organizou tudo: verificou a meteorologia, escolheu um hotel na serra e com consumo liberado, reservou dois quartos colados — um pro casal e outro pros filhos, mandou o carro pra revisão, traçou as rotas no GPS, imprimiu-as por segurança (para o caso de a bateria acabar), planejou a hora da partida para não pegar engarrafamento e preparou a trilha sonora da estrada, não se esquecendo de incluir Zeca Baleiro, Arcade Fire, Agepê, Mozart e Ratos de Porão, uma seleção eclética e tolerante, a cara dos Camargo, que, não por acaso, haviam sido escolhidos “A família modelo” do ano na rua em que moram.
A mãe vestiu a camiseta “Mamãe da gatinha” e deu para a mais nova o modelo “Gatinha da mamãe”. Entregou a todos seus bonés “Camargo’s team” e fez uma preleção das férias, citando Bernardinho e o Papa Francisco, lembrando a força de uma equipe bem entrosada e a importância dos valores cristãos. Deu um beijo na testa de cada filho e disse: “aproveitem das férias”.
A pequena e a mãe correram para a piscina aquecida e coberta e não havia quem as tirasse de lá. O pai não entrou na água, mas ficou por perto, tomando cerveja sem álcool e verificando que tudo ia bem, enquanto lia um livro de autoajuda. O do meio também logo encontrou sua turma, outras crianças que preferiram o torneio de xadrez ao de futebol de salão.
Mas aí apareceu o Tio Pudim, o atlético animador do hotel, responsável por entreter os mais novos pela manhã e os adolescentes na matiné da boate. O nome dele não era Tio Pudim, claro, era Bruno. Tio Pudim era o apelido, dado pelo pai, dizendo que ele era um tiozão pra aqueles adolescentes. E tinha uma cara tão engraçada que se trabalhasse em circo certamente se chamaria Palhaço Pudim.
E aconteceu que a mais velha foi ao baile, encheu a cara de Coca com uma vodka que trouxe escondida, subiu na mesa, jogou pro alto o boné dos Camargo, se pendurou de surpresa no pescoço do Tio Pudim e começou a beijá-lo com tanta vontade que os dois caíram no chão. Três minutos depois, as fotos caíram no insta e no face. Uma hora mais tarde, os Camargo caíram fora do hotel. No dia seguinte, perderam o título de família modelo e caíram para a segunda divisão da rua, onde passaram a fazer companhia aos Ferreira, aqueles ateus comunistas.
Por via das dúvidas, a excursão da mais velha para a Disney já foi cancelada.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

quarta-feira, 22 de julho de 2015

HOJE, DIFERENTE


Isaias Coelho Marques

Não quero mais o novo
virou, há muito,
bem de consumo.

Novo
      velho
antes
      depois

Nada mais faz sentido.
pós-isso, pós-aquilo
não existem.
Fique tranquilo,
não farei à maneira
de Torquato ou
Walter Benjamin.

Não existem mais maneiras.
Ai de mim!
Cantarei o momento
através de meus olhos
                   minha alma
onde tudo será eterna chama calma 

UMA VISITA INESPERADA E QUEIXOSESCA...



Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira

Há muitos anos, quando adquiri, em Cajuína, um pedacinho de terra, onde, com minha mulher e meus filhos, construímos um paraíso para esquecer das atribulações da cidade grande, pois futebol, mulher e política eram assuntos proibidos, permitidos, apenas, a MPB, Jazz, Blues e história (do Mundo, de Trancoso, e de "causos", estes, sempre, inventados), em tertúlias regadas a uma cervejinha “véu de noiva”, com torresmos, pasteizinhos, castanhas de todos os tipos, e frequentadas por personagens que enfeitiçavam a quem as ouvia, tive o prazer de conhecer um vivente esquisito, tanto por suas indumentárias quanto por suas atividades, e cujo linguajar imitava o de um filósofo, perdido naquelas bandas. Não gostava de “ajuntamentos” e passou a nos visitar, com certa frequência, desdenhando a cerveja, mas indagando, sempre, se tínhamos uma boa pinga e se a minha mulher, “por acaso”, não, “guardara”, alguns de seus acepipes...
Ao se apresentar, em sua primeira visita, deu-se um nome em língua estranha, logo acrescentando ser mais conhecido como Mago Manu. Nossa educação, familiar por excelência, impediu que nossa curiosidade se manifestasse naquele momento. Preferimos aguardar sua confiança em nossa amizade, para que, quando lhe desse na veneta, nos contasse sua história. E não deu outra... Mago Manu, ciente de que era uma pessoa respeitada e querida, após algumas visitas a mais, cachacinha não rasgante, tira-gostos de encher a boca, abriu-se para nós, deixando-nos boquiabertos com suas venturas, aventuras e desventuras! Boca cheia, de algo mais gostoso que aquilo que lhe oferecíamos: ensinamentos, conselhos, profecias, e, finalmente, uma explicação de suas vestes e de seu apelido, leitura de mãos, interpretação do Tarô, conhecimento do caráter dos outros, analisado nas suas letras, e muitas outras “mandingas”, na realidade, rescaldo de culturas milenares, válidas para quem as conhece, como para quem nelas acredita. Morava numa casa de palha, em Cajuína, próxima de nosso sítio, e se alimentava do que lhe davam, ou daquilo que seus parcos ganhos lhe permitiam comprar, tudo fruto da alegria que dava aos seus consulentes, pois suas “adivinhações” não previam desgraças, porque, segundo ele, de desgraças o mundo já estava cheio! Passaram-se anos, e dele já nos havíamos esquecidos, quando, derrepentemente, a campainha de minha residência, em Teresina, toca, e, quando pergunto “quem é?”, ouço a resposta surpreendente, “o Mago Manu”!Apressei-me em abrir o portão para sua passagem, o que fez, com uma expressão sisuda no rosto, um bastão numa das mãos e uma folha de papel na outra, acompanhando-me até à varanda, onde se acomodou, ainda, de cara fechada. Minha mulher correu para cumprimentá-lo, e, apenas, um olhar, dele, recebeu ... Não esperando por minhas boas vindas, abruptamente, estendeu-me a folha de papel e me perguntou: "já viu isso"? Valha-me Deus, era o artigo, de meu amigo Monteiro, publicado no Facebook, com o título "Deu escocês no Samba", sacaneando com o velho Mago... E bombardeou: "mentiroso, incréu, quer me desmoralizar, não sei se lhe darei umas bastonadas ou se o denunciarei à polícia!" "Sei que é gente sua, e vim pedir-lhe um conselho sobre o que devo fazer, pois tudo é calúnia, difamação e injúria, e, como mago, não posso usar de minha magia em causa própria" Fiz-me de ignorante, "deve ter sido uma brincadeira do Monteirim, tenho certeza de que não teve intenção de ofendê-lo, Mago! mas, o que está neste papel?" Pior a emenda que o soneto: pediu-me que lesse o artigo e comentou: "Nunca estive numa escola de samba, nunca frequentei carnaval, nunca pedi dinheiro a ninguém, nunca recebi o dinheiro que diz que me deu, nunca saracoteei em minha vida, não uso bengala, uso o bastão dos magos, não levito, (quem faz isso são os mágicos, que fazem mágicas), eu barrete com pompom? (só se for do Sr. Lima), não sei quem é esse Fantasma que se eterniza por seus descendentes, você viu algum vento precursor na minha chegada? E eu, por acaso, tenho dois olhares concomitantes? Passada a catilinária, acalmou-se, tomou um providencial suco de maracujá, com os indefectíveis pastéis, (A Magda é uma mulher compreensível e admirável!) e, baixinho, confidenciou-me : “Os magos, como eu, somos imortais, pois só vivemos nas mentes humanas, especialmente das crianças, que acreditam em nós”. Meu amigo Merlin, ainda vive, para gáudio de todos nós, e, enquanto vocês crerem, a magia sobreviverá. Eu me corporifico quando quero, esse é um poder nosso" E, por último, (terá sido a propósito?) um fuxico: “será que tudo isso foi feito pra ele angariar dinheiro, em meu nome, pra comprar outro carro”?
Oh! Dúvida cruel!
E o Mago Manu, evaporou-se, ante mim, comprovando que aparecia e sumia quando quisesse...

terça-feira, 14 de julho de 2015

CONTOS DE FADA TWITTERIANOS*



Daniel Cariello**

Antigamente, os escritores dos contos de fada tinham muito, muito tempo para redigi-los. E, seus leitores, ainda mais para lê-los. Mas como seriam esses mesmos contos se tivessem sido criados nos apressados dias de hoje, por um usuário do Twitter?
CINDERELA — Moçoila chega ao baile na beca. Só que à meia-noite rola uma parada estranha: seus cavalos viram ratos e a carruagem, uma abóbora. Sinistro.
OS TRÊS PORQUINHOS — Lobo descontrolado derruba no sopro as casas de dois porquinhos. Mas falha na terceira. Especialistas atribuem fracasso à gripe suína.
BRANCA DE NEVE — Madrasta que fala com espelho envenena enteada que morava com anões. Homem vestido de príncipe a salva. Suspeita-se de consumo geral de LSD.
JOÃO E MARIA — Pobres, pais abandonam crianças no bosque. Bruxa as adota e as entope de doces. Elas fogem. Pais se dizem felizes. Dentista mais ainda.
CHAPEUZINHO VERMELHO — Menina de chapéu vermelho vai visitar avó, mas um lobo disfarçado a recebe. Polícia acredita ser o mesmo que atormentara os porquinhos.
A ROUPA NOVA DO IMPERADOR — Tirando onda de alfaiate, pilantra promete roupa nova ao rei. Este desfila peladão e perde trono, mas recebe proposta de revista masculina.
JOÃO E O PÉ DE FEIJÃO — Ao chegar ao céu subindo em pé de feijão, João rapela os bens de um gigante. Apesar de assumir o roubo, nega o uso de adubos transgênicos.
PEDRO E O LOBO — Marginal reincidente, lobo escapa da prisão e tenta rangar criança, mas só fatura um pato. Meliante é enfim encaminhado ao zoológico.

*Texto originalmente publicado no YouPix.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

sexta-feira, 10 de julho de 2015

EM TUA MEMÓRIA


Isaias Coelho Marques

Teu corpo mora
em curvas tristes de minha lembrança.
Hoje,
desejo, sem contentamento,
fluido no mar de dentro.
Palavras petrificadas
na cal cinza do cérebro.
Morto o tempo de antes,
ficou a paisagem de teu corpo
em meu silente vagar noturno.

BOLA PRA FRENTE*



Daniel Cariello (1)**

Não, não deixa entrar. Esse cantor tá dando azar pra todo mundo por quem torce. E parece que hoje tá querendo apoiar nosso time. Não importa que ele tenha ingresso, filho brasileiro ou que a gente adore suas músicas, ele é pé frio, todo mundo sabe. O jogo eu vou ver na minha poltrona preferida, a verde, que posiciono bem em frente à TV. Não a movo um milímetro, até marquei o lugar dela no chão, com fita adesiva. Fico ali, sentado, em silêncio, comendo pistache e vestindo a camiseta amarela de sempre. Sem lavar, claro, pra não limpar as energias positivas das vitórias acumuladas. Até agora, tem dado certo, estamos passando. É verdade que meio aos trancos e barrancos, mas o importante é que eu tenho feito a minha parte. O Neymar machucou, mas em 62 ganhamos sem o Pelé. “Neymar tá dodói” tem 13 letras. “Alemanha perde” também. O caneco é nosso! O jogo é no Mineirão e Belo Horizonte dá sorte, todo mundo se lembra da disputa com o Chile, que ganhamos nos pênaltis. Em 62, também batemos os chilenos e fomos campeões. Se eu prefiro a Argentina ou a Holanda na final? Pra mim, tanto faz, sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor, e essa taça vai ficar no nosso país. Eu vi aquele repórter, aquele jogador e aquele vidente dizendo que dessa vez não tem pra ninguém. O quê, o jogo já acabou? Levamos quantos gols? Tudo isso? Cacete! A culpa foi minha, fiquei tagarelando e distraí da hora da partida. Não vesti minha camiseta amarela, não comi pistache e não estava na cadeira da sorte. E parece que o tal cantor foi visto na torcida brasileira. Ele não podia ter apoiado a Alemanha, só hoje? Bom, vai ficar pra próxima. “Rússia é bem ali” tem 13 letras. Bola pra frente, o hexa é nosso!

(1) Esse texto foi escrito logo depois do 7x1.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

terça-feira, 7 de julho de 2015

PINGA DE PEQUI*



Daniel Cariello**

O Pancho chegou ao Beirute já gritando.
- Desce a pinga de pequi!
Quando o Pancho pede a aguardente de pequi todo mundo já espera algo de extraordinário. Da última vez ele subiu na mesa e recitou Baudelaire em francês, sem nunca ter falado o idioma. É verdade que ninguém sabe se declamou direito, pois o único a entender de França era o Otacílio, que foi fã do Jordy. Como o Otacílio não contestou, a história entrou para o rol das clássicas da Turma do Escorpião.
Outro episódio memorável foi quando o Pancho subiu na mesa de sempre e anunciou estar montando uma chapa para disputar a presidência. Já tinha dois nomes: Otacílio para chanceler, “pela vasta cultura internacional”, e Ferreirinha para presidente. Ele, Pancho, seria o marqueteiro e eventualmente cuidaria do caixa 2, se não aparecesse ninguém melhor. O trio começou ali mesmo a traçar a plataforma de governo, mas foi interrompido pelo telefonema da mulher do Ferreirinha, dizendo que tava na hora de ele voltar pra casa e que passasse em um mercado pra comprar mortadela. Os planos de chegar ao poder foram substituídos pelos de chegar voando em casa, pois a mulher do Ferreirinha não era mole.
Mas o Pancho chegou ao Beirute gritando pela sua pinga e todo mundo ficou na expectativa de ver o que ele ia aprontar. “Hoje tem história”, pensou Leroi, esfregando as mãos.
Só que aquele dia ele estava estranho. Bebia com a mesma voracidade, mas seu comportamento não era afetado pelo álcool. Meia garrafa depois, estágio em que costuma ir à cozinha pedir um queijo bola pra equilibrar na cabeça, parecia completamente sóbrio.
- Não é possível! – Pensou o Ferreirinha.
- O que será que houve? – Indagava-se a Aretuza.
- Abusou muito, agora não sente mais nada. – Vaticinou o Otacílio.
Pancho já emendara a segunda garrafa e não demonstrava sinal de embriaguez. A Turma do Escorpião estava inquieta. Se havia algum problema, eram eles, os amigos mais próximos, que deviam fazer algo.
O Otacílio puxou conversa.
- Tá tudo bem? Cê tá precisando de alguma coisa? - Agora que você perguntou, acho que estou sim. - Do quê? - Uma caixa de fósforos, palitos longos.
Todo mundo estranhou, mas a solução era providenciá-la. O Leroi fez um bate e volta em tempo recorde ao supermercado.
- Aqui a caixa.
Pancho matou a segunda garrafa de cachaça, subiu na mesa, deu três saltos, acendeu um fósforo e o engoliu, causando uma explosão daquelas.
- Ó, agora eu sei voar, agora eu sei voar. – Gritava, enquanto subia tão alto que nem conseguia escutar os aplausos da Turma do Escorpião, emocionada como nunca.

*Texto originalmente publicado na revista Meiaum.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br


domingo, 5 de julho de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DO TÍMIDO TELERCINHO E SUA AVÓ DESVAIRADA*



A. J. de O. Monteiro
               
           Nelson Rodrigues, dramaturgo e cronista do cotidiano do futebol carioca, criou um personagem – o Sobrenatural de Almeida – ao qual atribuía influência nos gols e vitórias do Fluminense. Quando o Fluminense não vencia, Nelson costumava dizer que Sobrenatural de Almeida o enganara... Mas, coisas acontecem na vida que só podem ser atribuídas ao sobrenatural, seja ele de Almeida, da Silva ou de Oliveira e algo assim aconteceu comigo...
Cheguei ao bar, ainda cedo para um sábado, portanto o ambiente ainda estava vazio. Pedi uma cerveja e fiquei a divagar na espera dos meus amigos dos papos sabatinos, quando alguém que passava entre as mesas falou: - “bom dia, Telércio”. Só então percebi que não estava sozinho. Em uma mesa, a minha direita, havia um rapaz, também tomando cerveja e, igualmente, com ares meditativos. O nome mencionado pelo passante – Telércio – imediatamente trouxe a minha memória um incidente ocorrido comigo, no aeroporto de Teresina, quando uma simpática, mas impertinente velhinha tomou-me por algum jogador de futebol e me pediu um autógrafo que seria para seu neto, Telercinho, segundo ela, muito tímido. Ao descobrir que eu não era jogador, tão pouco famoso, passou a me hostilizar.
Os bares são lugares ideais para se conversar, mesmo com estranhos. Normalmente a conversa se inicia com comentários sobre o tempo: se está chovendo, se está calor... E assim aconteceu. Falamos sobre a brisa agradável que naquele momento embalava as folhas dos oitizeiros em torno do bar... Daí ele levantou-se veio a mim, e pediu licença para sentar-se, com o que concordei. Após três o quatro cervejas compartilhadas, já éramos velhos conhecidos. A certa altura do bate papo, não segurando mais a curiosidade, resolvi tocar no incidente do aeroporto. Ele calou e percebi certo desconforto, o que me fez imediatamente, mudar de assunto, mas ele me interrompeu e disse com a voz quase embargada: - “Creio se tratar de minha avó Emerecilda, essas coisas eram típicas dela. Fui criado por ela após uma série de infortúnios se abaterem sobre mim – não só sobre mim, mas sobre ela também. Fui criado por minha avó desde os seis anos de idade e ela foi responsável por tudo de bom e de ruim na minha vida, desde então. Morávamos em povoado perdido no meio do Maranhão – o lugar é pequeno e pobre até hoje, imagine há vinte e cinco anos... Aos quatro anos perdi meu pai, único filho dela, baleado acidentalmente por um companheiro de caçada, dizem. Dois anos depois, minha mãe casou com o causador da morte de meu pai e se mudou para São Paulo, segundo dizem. Isso causou certa desconfiança sobre a acidentalidade da morte, mas, naquela localidade sem nada, tudo se perde no tempo, até a desconfiança. Minha avó atribui tudo ao destino e proibiu tocar-se no assunto em minha presença...
               — Nesse ponto parou e respirou profundamente... Temi que não fosse continuar. Tomou um grande gole de cerveja, novamente respirou e prosseguiu:
...Minha avó era muito religiosa e cria que qualquer ato contrário aos ensinamentos da religião merecia castigo severo. Na sua concepção, o pecado devia ser purgado em vida para evitar castigo mais severo na eternidade. A cada peraltice minha, mesmo aquelas próprias da idade, me punia com o maior rigor. Às vezes me fazia ajoelhar, por horas, sobre caroços de milho, com a cara voltada para a parede. Por vezes, quando precisava sair para cumprir alguma obrigação, para que não tomasse a rua em sua ausência, me vestia com roupas de menina, o que me causava revolta e dor. Mas não tinha forças para enfrentar a velha...
               — Àquela altura da narrativa, já me sentia angustiado, com sentimento de culpa por levar o pobre rapaz a reviver fatos tão marcantemente tristes da sua vida, mas procurei não deixar transparecer ao Telercinho, digo, Telércio. Minha preocupação, aquela altura era que ele não interrompesse a narrativa, pois, apesar da angústia, minha curiosidade só aumentava. ... Tomou mais um gole e continuou:

sexta-feira, 3 de julho de 2015

SEM TÍTULO


Isaias Coelho Marques

Sou tão fácil de ser feliz
que, às vezes, tenho pena de mim.

Tenho veias túgidas,
             voz e vento soltos.
Tenho pena,
asco dos grandes e dos pequeninos.
Não cabem
nem suportam suas próprias medidas.

Tenho medo
medo de ficar parado,
o mesmo medo que não me move.

Nada me comove.
Tudo antes da satisfação
mostra-me caminhos obscuros.

Não sei da luz
nem das estradas
rumo, fórmulas, felicidades...

Onde estamos
que não somos?
Onde foi aquilo
que gostaríamos de ser?
Será mais fácil desaparecer?
Difícil ser simples,
compreensível diante de tamanha mansidão.

Não partirei antes da minha dor.
Não fugirei.

Músicas são belos finais...

quinta-feira, 2 de julho de 2015

LA MAISON DES EX-RICHES*


Daniel Cariello**

Da janela do meu apartamento, vejo dois dos velhos casarões que dominavam Laranjeiras há algumas décadas. Ambos estão agora tombados. Um deles virou um misto de churrascaria e casa de shows e oferece picanhas e apresentações de gosto duvidoso. O outro, me contou um amigo, transformou-se em um asilo para ex-milionários, que reúnem-se ali, semanalmente, para se consolarem mutuamente e lamentar os passados dias de glória. Fiquei imaginando como seria um encontro de dois desses falidos.
- Ei, Paulo! Quanto tempo!
- Paul, por favor, é Paul. Não me chame pelo meu nome de…
- De batismo?
- Não! Sim, de batismo, mas não é o que quero dizer. Esse era meu nome de…
- De pobre?
- Não diga palavras como essa! Me dão alergia. Já começo até a espirrar. Atchim!
- Quer um lenço?
- De papel? Só consigo assoar em um mouchoir Simonnot-Godard! Atchim!
- Désolé, é o que temos pra hoje. E é o último. Vou te dar metade, caso eu precise do resto. A minha situação também não está das melhores, desde meu último divórcio.
- Aquela jararaca deliciosa e 30 anos mais nova levou o que havia sobrado, né?
- É. E justamente agora, quando começava a me convencer de que a felicidade estava nas pequenas coisas. Na minha pequena casa de Paraty, meu pequeno iate em Búzios…
- Tout est parti!
- Tudo. Fiquei na miséria.
- Atchim!
- Desculpe.
- Tudo bem. Não consigo me acostumar a esse universo da pindaíba.
- Mas, afinal, o que aconteceu com seu dinheiro?
- Investi tudo no Eike.
- Ai, que furada!
- Furada mesmo, assim como a minha calça Hugo Boss, bem aqui atrás.
- Deixa eu ver… Olha, na minha opinião, trata-se de um furo de muita classe.
- Obrigado.
- De nada. Na falta de algo melhor pra fazer, estamos aqui pra preencher o vazio uns dos outros, n’est-ce pas?
Nesse momento, o orelhão da rua começa a tocar sem parar. Um dos ex-milionários se levanta para atender. É o antigo sócio de Paulo, avisando que os móveis do escritório serão leiloados para pagar as dívidas restantes.
- Ai, meus sais.
- Tá mais pobre?
- Atchim! Olha o palavreado!
- Pardon.
- Agora quebrei de vez. Preciso urgentemente de uma taça de Dom Pérignon e de um bom foie gras.
- Tô olhando aqui no armário e só sobrou uma Fanta e meio pacote de Piraquê.
- Desce.
- A Fanta é uva, d’accord?
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br