segunda-feira, 30 de novembro de 2015

MENGÃO À MEIA-LUZ*


Daniel Cariello**

Outro dia, inventei de arrumar o armário ao lado da porta de entrada. De organizar tudo que ali estava entulhado: papéis, notas fiscais, chaves, clipes, pilhas novas e velhas, DVDs, guarda-chuvas, revistas antigas, cartões de 2 bombeiros hidráulicos, 3 chaveiros, 4 eletricistas, 2 especialistas em gás e de uma loja de suprimentos agrícolas, que nem imagino foi parar ali. No meio das tralhas, escondidos lá no fundo, havia 5 benjamins, aquele aparelho em forma de T de onde saem 3 tomadas, e 6 extensões elétricas. Seis!
Faço aqui uma confissão: tenho certa fixação por extensões elétricas. Sempre que vou a uma loja onde tem de tudo dou uma paradinha na seção das extensões, pra checar se tem novidade na área, mesmo que o setor não tenha visto muitas evoluções nos últimos, digamos, 50 anos.
Essa obsessão vem possivelmente do tempo em que minha banda de rock da adolescência ensaiava lá em casa e precisávamos ligar quatro amplificadores, uma mesa de som, um teclado e um gravador de fita cassete na única tomada disponível. Fazíamos uma gambiarra de dar inveja à rede de energia carioca, juntando extensões, anexando benjamins e plugando tudo até formar algo parecido com uma instalação, não elétrica, mas de arte contemporânea. Aquilo tinha tudo pra dar ruim, porém incrivelmente nunca deu, pra tristeza dos vizinhos que nos aguentavam transformar nossos hormônios pubescentes em algo parecido com música, nas tardes de sábado.
Mas então eu encontrei todos esses benjamins e extensões e, apesar de surpreso com a quantidade, arrumei uma caixa e guardei-os bem guardados, pois um dia poderiam ser úteis. E foram, antes do que poderia imaginar.
Naquela noite, a chuva forte fez cair a luz de metade da minha casa. Um desses fatos inexplicáveis do Rio de Janeiro que, no entanto, não choca os cariocas nativos. A cozinha, a área de serviço e um banheiro tinham energia. A sala, os quartos e o outro banheiro, não. Comentei com vizinhos e amigos e tudo o que diziam era “fica tranquilo, logo volta ao normal”. Ficaria tranquilo, caso não houvesse um jogo decisivo do Flamengo em 15 minutos.
Aí me lembrei das extensões. Peguei todas e montei uma gambiarra digna do Daniel adolescente. Saía da cozinha, entrava pela sala e passava por detrás da estante, onde incluí um benjamim para religar o aparelho de som, caso quisesse escutar uma musiquinha no intervalo. A fiação seguia inabalável seu rumo até o quarto de TV, passando pelo sofá, duas poltronas e uma mesa de centro. Chegou à porta do cômodo, mas não até o aparelho (se eu tivesse mais uma extensão…), que fui obrigado a empurrar até que os fios se alcançassem.
Liguei e tudo funcionou às mil maravilhas. O jogo havia acabado de começar. Pra comemorar o êxito da empreitada, fui buscar uma cerveja na geladeira. O Flamengo levou um gol. Puto da vida, levantei novamente, pra pegar amendoim. O rubro-negro encaçapou o segundo. Puxei aquela cobra de fios da tomada e fui dormir. Não era só a casa que estava às escuras.
* https://www.facebook.com/cartasdaguanabara
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

MANHÃS INQUIETAS


Isaias Coelho Marques

Todas essas palavras
silenciosas
sem término...

Manhãs que atravessam
outras manhãs
Apitos de trens
no infinito
inquietação deste corpo
plantado no pórtico
de possibilidades

PINTOU SUJEIRA*


Daniel Cariello**

- Lavanderia Lava Lento, boa tarde.
- Tô ligando pra reclamar de um serviço.
- Mas o que houve?
- A capa do meu sofá foi mal lavada.
- Jura? Qual a ordem de serviço?
- 3921.
- Xovê. 3921. Achei.
- Então, gostaria que você viessem buscá-la aqui em casa, pra lavar de novo.
- Com certeza. Custa sessenta reais.
- Já foi pago. Pode verificar aí.
- Xovê. Achei. Verdade, foi pago, sim.
- Vocês podem vir buscá-la?
- Claro. Custa sessenta reais.
- Você não está entendendo. Eu já paguei pra lavar.
- Ué, não foi lavado?
- Foi.
- Qual a reclamação?
- Foi mal lavada.
- Então... Precisa lavar outra vez.
- É exatamente o que estou tentando te dizer desde o começo.
- A gente realiza esse tipo de serviço aqui. Podemos ajudá-lo?
- Jesus! Vocês não entendem nada? Só preciso que venham buscar essa capa.
- Ele saiu de férias.
- Ele quem, pelamor?
- Jesus, nosso entregador. Tem o Fábio, pode ser?
- Pode ser até o diabo, mas enviem alguém!
- Esse aí não dá. Vou mandar o Fábio mesmo.
- Não tenho que pagar mais nada?
- Dessa vez, não. Fui com a sua cara, mesmo sem te ver.
- Valha-me...

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

NA RUA DAS LARANJEIRAS*


Daniel Cariello**

Na Rua das Laranjeiras tem o Mercado São José, um lugar cheio de bares e restaurantes que não tem nada de mercado. Não adianta passar ali de manhã, você não vai encontrar frutas, verduras ou ervas, carne de vaca, de porco, de frango ou peixe, tapioca, queijo ou café, temperos, pimentas ou flores. Exceção feita aos dias em que fica um senhor português na porta, vendendo legumes geralmente murchos.
Na Rua das Laranjeiras tem o Instituto Nacional de Educação de Surdos, um lindo prédio antigo localizado em um dos seus pontos mais movimentados, em frente a um sinal e uma bifurcação, com constantes engarrafamentos e buzinas se sobrepondo umas às outras, causando um barulho infernal que, ouvi dizer, não atrapalha as aulas.
Na Rua das Laranjeiras tem uma loja de suco cujos proprietários são chineses que não falam direito português quando você pede pra trocar o tomate do sanduíche por mais queijo, mas tornam-se incrivelmente fluentes na hora de apresentar a conta.
Na Rua das Laranjeiras tem uma nova ciclovia que os ciclistas muitas vezes não podem usar porque está bloqueada por algum carro que estacionou ali só pra ir à farmácia, coisa rápida, nem tá atrapalhando, veja bem.
Na Rua das Laranjeiras tem bancas de jornais e revistas que vendem suco, refrigerante, pipoca, chocolate, amendoim, chiclete, salgado, sorvete, capa de chuva, cigarro, chinelo Havaianas, chip de celular e cada vez menos jornais e revistas.
Na Rua das Laranjeiras tem uma churrascaria instalada em um casarão antigo que nas noites de fim de semana serve cantores passados e grupos requentados, acompanhados de chope.
Na Rua das Laranjeiras, bem no início, tem o Largo do Machado. Uma praça larga, é verdade, mas onde nunca vi alguém segurando um machado. Aliás, se visse, mudava de calçada e ia pra longe da Rua das Laranjeiras.
Na Rua das Laranjeiras não tem pé de laranja. Nenhum.
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                **Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br