quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

HAPPY END



Isaias Coelho Marques

Eu era infeliz
eu sabia

Hoje feliz
desconfio

O CADERNO*










Daniel Cariello**

Encontrei na casa da minha avó uma caixa de papelão com várias revistas da minha adolescência. Não sei como foram parar lá as coleções de Bizz, a mais bacana publicação musical já editada no país; de Casseta Popular, que de pornográfica só tinha o nome, para meu desespero pueril; de Chiclete com Banana, capitaneada pelo então jovem cartunista Angeli; e de diversos periódicos sobre linguagens de programação, assunto que me fascinava tanto quanto os outros.
Fiquei ali, folheando por horas as páginas bolorentas. Cada publicação aberta me levava um pouco mais longe nessa viagem rumo aos meus 15 anos. Recordei-me do sonho de figurar em uma revista de música. Se não fosse como artista em destaque, poderia ser como jornalista ou crítico, tudo bem. Do desejo de escrever textos e quadrinhos de humor, alternando sem preconceito o escracho total e a sutileza absoluta. Ou ainda da vontade de me tornar um programador de computador, a “profissão do futuro”, segundo a mesma avó.
Quando minha psique já havia retornado à puberdade, encontrei, no fundo da caixa, um caderno cuja capa — com uma bota amarela e vermelha de motoqueiro em destaque — eu reconheceria de longe. Era um dos que eu usava para registrar ideias livres. Em suas páginas, diversas notas que um dia foram importantes para mim, como uma lista com sugestões de nome para minha recém-formada banda. Ela alternava a pseudointelectualidade de Prometeu e Escaramaças (o que diabos é uma escaramaça?), a crítica ao sistema e a todo o resto, com O PC e a Coca-Cola (hein?) e Lenin, Stalin e Trotsky, além das denominações em um tão pobre quanto inevitável inglês, dando origem a pérolas como Shaman’s Feelings e Jumping Flyers.
Havia também letras manuscritas de canções que ainda hoje adoro, como The Killing Moon, Highway Star, Proteção e Faroeste Caboclo. Com cifras para guitarra sempre que possível e uma tentativa de tradução macarrônica quando o idioma original não era o português. No fim das dez folhas dedicadas à música da Legião Urbana, ainda resistia uma declaração de amor a Priscilla, que jamais tive coragem de entregar.
Avancei mais um pouco e, entre rabiscos sem nexo, desenhos de rodapé, frases de efeito, palavras curiosas e suas definições, pensamentos conexos ou não, trechos e acordes de músicas e anotações incompreensíveis, encontrei um par de folhas inexplicavelmente deixadas em branco. Feliz por me reconhecer inteiramente naqueles textos até então perdidos, peguei uma caneta, escrevi “O caderno” na primeira linha e comecei a redigir esta crônica, completando, enfim, a obra iniciada tantos anos antes.

Publicado originalmente em Veja Brasília de
11.fev.2015
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

À QUEIMA-ROUPA




Não retiro:
Teu olhar foi um tiro!


Isaias Coelho Marques

CAMELANDO*




Daniel Cariello**

— Então, tá. A gente se encontra lá. Tô indo de camelo.
— De camelo?!
— Isso, um amarelo, acabei de comprar. Lindão. Leva o seu. A gente dá um rolê.
Camila tinha chegado à cidade havia pouco e estava achando tudo muito bonito, porém um tanto estranho. Superquadra, pilotis, Eixão, Eixinho, Eixo Monumental, cidades-satélite, balão, tesourinha, QI, QL, QNM, SSU, L2, W3, rua das farmácias, das elétricas, das torcidas, tudo isso ela já conseguia entender. Mas, apesar de ter ouvido inúmeras histórias sobre os temidos e inevitáveis três meses anuais de seca, nunca soube que os brasilienses se deslocavam montados em camelos particulares. Muito menos que era possível pintar o artiodáctilo da cor preferida. Fingindo naturalidade para fazer bonito com o paquera, concordou com o proposto.
— Não tenho camelo, mas vou dar um jeito de conseguir um.
— Massa, véi!
Quando desligou o telefone, meio cabreira com essa história de véi (“Pô, só tenho 22 anos”, pensou), é que se deu conta do tamanho da encrenca. Ligou para a melhor amiga, do outro lado do país.
— Tô lascada, Maria. Me meti numa confusão. Preciso da sua ajuda.
— Ahn, miguxa, você pode sempre contar comigo. Quando te deixei na mão? Quando não te ajudei a resolver seus pepinos? Quando eu vacilei na hora de...
— Preciso arrumar um camelo!
— Fala de novo? A ligação está ruim. Entendi você dizer que precisava de um camelo, veja só.
— É isso mesmo. Tenho de conseguir um camelo!
— Mascetádoida? Para que alguém pode querer um bicho desses?
— Ideia do Fabinho, aquele garoto de quem falei. Quando finalmente marcamos um encontro, inventa essa história. Ele é meio exótico, mas eu estou tão apaixonada...
— E você já viu outros camelos pela rua por aí?
— Nunca.
— Já googou atrás de um serviço de aluguel desses bichos? Tenho certeza de que deve haver vários em Brasília. Ouvi falar da seca da cidade...
— Já. Não tem nada. Pedi ajuda até no Face. Ganhei muitos likes e dois emoticons de risadinha, mas continuo sem pista.
— Então, lascou. Vai ter de improvisar. Tenho uma ideia, miguxa…
Camila anotou a sugestão da amiga. Tão logo desligou, pegou sua bicicleta, duas almofadas, uns panos velhos e partiu para a execução do plano. Chegou ao local marcado um pouquinho antes do Fabinho, que, para decepção da menina, veio pedalando. Ela já ia reclamar da ausência da montaria do pretendente, mas ele falou primeiro.
— Caraca, véi. Você usou seu camelinho para montar uma estrutura de camelo de verdade. Tem até as carcovas.
— Corcovas — ela emendou, entendendo em um clique a gíria local. — Ficou bonito?
— Bonito? Ficou cabuloso, maluca! Bora mostrar pra galera. Geral vai pirar.
E saíram os dois, pedalando lado a lado, assoviando em uníssono aquela da Legião. Ela pensando que maluca tinha mais a ver do que véi.
*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 13.jan.15
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br