sábado, 27 de junho de 2015

SÁBIOS DE OUTRO MUNDO



Isaias Coelho Marques

Queria tão somente
a compreensão total,
aquela
           de partir espelhos
           de rachar lenha. 
Mas como,
se em algum lugar
perdi a senha     

quinta-feira, 25 de junho de 2015

RIO, 19 GRAUS*


Daniel Cariello**

Andrezinho foi do sétimo ao térreo pela escada, acenou “e aê?” pro Seu Antônio, botou o nariz na rua, deu meia volta, justificou com “friaca, brother!”, voltou ao sétimo de elevador, vestiu casaco do Hard Rock Cafe, achou pouco e tacou jaqueta do Vasco por cima, catou a medalhinha de Nossa Senhora, trocou chinelo por tênis sem meia, desceu novamente a pé, soltou “agora eu fui!” e sumiu na multidão da Praça São Salvador.
Clément afastou a persiana, conferiu o Cristo nublado, checou doze sites meteorológicos, guardou o protetor solar na mala, colocou camiseta de 58, a 10 azul, combinou com calça Capri branca, estreou novo par de Havaianas, passou pela recepção, escutou “bom dia”, respondeu “obrigado”, caprichou no “r”, selecionou Jorge Ben, aumentou o volume, consultou o GPS e dobrou à direita depois dos arcos.
Lourdes mirou o espelho, empetecou-se de blush, ajeitou os cachos brancos, alcançou o sobretudo azul, abandonou pelo vermelho, preferiu o preto, pensou no bege, decidiu-se pelo marrom, o único sem cheiro de mofo, escolheu um cachecol de lã, um par de luvas de couro, o broche de Jesus, engoliu os dois remédios, reclamou do efeito do clima nos joelhos, disse tchau pro Byron, recebeu uma lambida de volta, abriu a porta de casa, fechou a grade da vila e pareceu pequena ao lado das palmeiras da Rua Paissandu.
Tati postou uma selfie, faturou cinquenta e seis likes, lamentou não inaugurar o biquini, ganhou mais trinta e sete, comentou três posts, compartilhou uma foto de gatinho, ignorou o ascensorista, marcou a Jana em texto sobre Miami, curtiu a página do Papa Francisco, saiu no segundo, percebeu tarde demais, pegou o próximo, deixou um “olá” sem resposta, mandou zapzap, ficou na garagem, tirou o casaco da Zara, escondeu a Victor Hugo no porta malas, ligou o Audi e furou o sinal no Aterro.
Jorge levantou-se do banco, ensaiou polichinelos, levou as mãos às costas, ergueu-as para os céus, tentou proteger os braços dentro da blusa, desistiu, procurou abrigo contra o vento, desviou de horda de pombos, invejou o pulôver da jovem, virou o último gole da garrafa, entrou na floricultura, espirrou de alergia ao pólen e distanciou-se do Largo do Machado.
Clément e Tati esbarraram-se na entrada da igreja, Andrezinho e Jorge estavam lá dentro, Lourdes subia lentamente a ladeira. Nenhum deles se conhecia. Todos foram ao Outeiro da Glória orar pelo fim do inverno carioca, que já durava três dias.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

sábado, 20 de junho de 2015

GLOSAS PARA CANTADORES DE VIOLAS - I


Manoel Emílio Burlamaqui de oliveira

1 - O Conhecimento me encanta
A Ignorância me espanta
2 - A realidade me espanta
O Sonho me encanta
3 - O Belo me embevece
O Feio me adoece
4 - A Tristeza me adoece
A Alegria me embevece
5 - A Bondade me enternece
A Maldade me entristece
6 - A Miséria me entristece
A Pobreza me enternece
7 - A Sinceridade me cativa
A Hipocrisia me distancia
8 - A Mentira me distancia
A Verdade me cativa
9 - A Injustiça me empobrece
O Arrependimento me enobrece
10 - O Amor me enobrece
11 - O Egoísmo me empobrece

quinta-feira, 18 de junho de 2015

ASSIM COMO PILATOS*


A. J. de O. Monteiro
             
               Minhas primeiras férias, após um ano de serviço e quase 18 meses desde que sai de Teresina rumo a Brasília.  Nesse tempo fui acumulando saudades... Da família, dos amigos... Da Cidade, dos seus sabores e odores. Nunca estive tão ansioso e 18 meses nunca levaram tanto tempo para passar, mas passaram.
               Horas antes do embarque, já estava no aeroporto, pois era minha primeira viagem aérea e não queria correr riscos de sobressaltos com a burocracia de viajar naqueles tempos bicudos. A toda hora conferia documentos e bilhete de embarque. Era a insegurança dos sem costume. Mas o aeroporto de Bsb era bem sinalizado e cheguei à sala de embarque sem dificuldades. Ali esperei pouco tempo, até um funcionário da companhia aérea aparecer para nos conduzir ao avião, no pátio, antes informando as prioridades de embarque: pessoas com problemas de locomoção; idosos; gestantes; e passageiros com crianças de colo. Justo, achei.
               No pátio, na fila, meu coração estava disparado. Devia estar tão pálido e assustado, que o funcionário que fazia a checagem ao pé da escada, perguntou: - “está tudo bem, senhor”?... Respondi que sim. Conferiu o bilhete, o RG e, protocolarmente, desejou-me boa viagem, liberando a escada com um gesto. Acomodei-me lá no fundão, naqueles acentos do “Electra II” em forma de “U” – quem viajou nesse tipo de aeronave conhece. Fiquei ali, sentado, com olhos e ouvidos atentos a todos os sons, barulhos e movimentos, quando uma voz metálica invadiu a cabine: - “Senhoras e senhores, boa tarde, aqui fala o Comandante Douglas (clássico, não?), a VARIG lhes dá boas vindas e lhes deseja boa viagem... Solicito observarem os avisos luminosos de afivelar os cintos de segurança e não fumar... Esta aeronave possui três saídas de emergência e em caso de despressurização súbita da cabine, máscaras de oxigênio cairão sobre os assentos”. Enquanto ele falava, as comissárias, com gestos robotizados, indicavam as saídas e o uso correto das máscaras. Em seguida o comando para a tripulação se preparar para a decolagem. Os motores a toda força, o avião sacolejando e estalando enquanto eu, de olhos cerrados, agarrado aos braços do assento, nem queria pensar. De repente tudo cessa: os estalos; o barulho dos motores suavizados e alguns suspiros profundos e aliviados... Arrisco abrir os olhos e vejo chão distante e tudo passando velozmente. Estava voando! Pouco depois comissários e aeromoças empurrando carrinhos começaram a servir bebidas e salgadinhos, abundantemente. Constatei o que muitos me falaram: o serviço de bordo da VARIG era excelente. As duas horas e meia de voo transcorram tranquilas, exceto pelo choro incessante de um bebê e a acirrada disputa pelo toalete (resultado de tanta bebida servida).
               Novamente a voz metálica do Comandante Douglas ecoou pelo recinto: “Senhoras e senhores estamos nos aproximando do aeroporto de Teresina, onde o tempo apresenta-se bom e a temperatura é 35 graus centígrados” (uuuuhhhh!). Essa exclamação me intrigou, pois a quase totalidade dos passageiros era de nordestinos, portanto acostumados às altas temperaturas.

OLHARES*


Daniel Cariello**

O piloto
“Essa chegada sempre mexeu comigo: passar sobre o Maracanã, ver o Cristo Redentor, sobrevoar a Baía de Guanabara e pousar de frente para o Pão de Açúcar. Já tem 22 anos que piloto aviões e 15 que não venho aqui. Nesse tempo, fiz milhares de decolagens e aterrissagens, conheci aeroportos do mundo inteiro, sobrevoei campos de arroz chineses, desertos africanos, cordilheiras esbranquiçadas de neve. Vi muita coisa, mas voltar ao Rio pelo Santos Dumont é mais forte que tudo. Dá um frio na barriga da porra, ainda mais nessas circunstâncias. Engraçado, daqui de cima sou capaz de jurar que meu olhar cruzou com um dos sujeitos daquela varanda.”
O escritor
Nunca havia sentado nessa varanda. Diria que é escondida, mas, a julgar pela ocupação de todas as mesas, acho que era segredo apenas para mim. Um casal na mesa da frente alterna beijos na boca e goles de uma bebida indecifrável, saída de uma garrafa térmica. Levanto o olhar e vejo o Castelinho do Flamengo, construção eclética de gosto duvidoso, porém de valor histórico indiscutível. Mais atrás, vejo um avião sobrevoando a Baía de Guanabara. Por um segundo, sou transportado para a cabine do piloto. Esse tipo de coisa às vezes acontece comigo, desligo-me do meu corpo e viajo instantaneamente, já nem esquento mais. O que é estranho é perceber gente como aquele senhor do prédio ao lado, me observando pela janela e agora me mostrando com a câmera do celular.
O observador
“Não, não vou. Eu sei, seria bom, mas não consigo. Além do mais, preciso limpar a casa, está horrível… Já limpei ontem, mas e daí? A poeira entra todos os dias pela janela, a fuligem dos carros sobe e o chão fica numa sujeira de dar dó. Não tem nada de obsessão, que conversa é essa? Queria mesmo era não ter que encarar essa situação toda, como aquele carinha de camiseta do Luiz Gonzaga sentado na varanda daquele centro cultural, rabiscando num bloco de notas, olhar distante, despreocupado da vida. O quê? Não quis te deixar falando sozinho. Desculpe, tava com a cabeça meio longe. Não, não sei quem é o cara de camiseta do Luiz Gonzaga. Peraí, vou virar a câmara pra você ver se conhece. Conhece?”
O interlocutor
“Mas, você precisa vir. A casa está brilhando, dá pra ver daqui. E você já faxinou ontem. Que obsessão por limpeza! Tem coisa mais importante nesse momento do que passar pano, e você sabe disso. Já tô aqui, ele chega daqui a pouco, e você sabe como é importante te ver. Ei, tá escutando? Tô falando sozinho… Não entendi nada, o que tem a ver esse escritor com camiseta do Luiz Gonzaga? Você o conhece? Pela câmera não dá pra ver bem, mas a cara dele me é familiar. E agora parece que ele olhou bem no fundo dos meus olhos, uma sensação meio incômoda. Olha, preciso desligar, o avião aterrissou.”
O piloto
Aterrissamos. Tantos anos sem pisar aqui. Tantas coisas inacabadas por…
O escritor
Ok, não funcionou. Vou arrancar essa folha e começar uma nova crônica. Vamos lá. O que o piloto daquele avião poderia estar pensando? E outro, por que continua a me observar da janela? Talvez seja melhor trocar os personagens. Ou talvez o personagem seja eu.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

quarta-feira, 17 de junho de 2015

terça-feira, 9 de junho de 2015

REGISTRO


Isaias Coelho Marques

Nascido
entre dois rios
sou de espírito
líquido & incerto

DELÍRIO DE JANEIRO*


Daniel Cariello**

Caraca, hoje o sol está de lascar. E o pior é que tem essa reunião importante aqui no centro e me disseram pra vir de terno. De terno, fala muito sério! Só uso em formatura e casamento. Acontece que já faz uma era que nenhum amigo meu se forma ou se casa. E agora muitos deles têm preferido é se descasar, o que pode justificar uma grande festa, mas jamais um terno.
Como alguém pode vestir um treco desses no calor do Rio de Janeiro? É cruel. O astro rei fritando impiedosamente as ideias causa alucinações. Não entendo como os cariocas podiam se vestir assim em outros tempos. Outro dia vi umas fotos da cidade no início do século passado e lá estava todo mundo de gravata e paletó. Aliás, como aquele carinha ali na frente. E o outro ali ao lado, que até chapéu está usando. São loucos, como eu devo ser.
A Rio Branco está diferente ou é impressão minha? Deve ser impressão, esse sol irrogando miragens. Preciso respirar um pouco. Vou me abrigar debaixo daquela árvore o tempo de secar o suor.
- Ei, olha pra frente! Se causa um acidente quem vai preso sou eu!
- Perdão, perdão.
O condutor do bonde tinha razão, afinal era eu quem cruzava desatento a avenida Central. Mas, pudera, agora as ruas estão sempre cheias. Não bastassem os bondes, as charretes e os cavalos, agora também há os automóveis a infestá-las. Leva tempo para se avezar aos novos costumes…
Novos como esse deslumbrante Palácio Monroe. Que exemplo de architectura! A nossa cidade está se embelezando a olhos vistos. Será mesmo a Paris dos trópicos. Uma constucção commo esta há de durar para sempre. Os hommens que virão saberão admirar e cuidar do nosso património, pensando apenas no bem-commum.
Ocorre-me agora observar também os demais transeuntes da praça. Ao longe, destaca-se um senhor encatarrhoado, coberto por um capote, pigarreando alto e deitando seus escarros na rua. Embuçado assim, com um calor dêsses, só pode mesmo estar doente, o pobre. E aquellas mulheres de ordem, com seus hábitos a se lhe cobrirem inteiras, se ainda não o estiverem, estarão muito em breve.
Um sorteiro sob a árvore ao lado tenta adivinhar o futuro das damas que lho pagam muitos reis. A sorte dellas eu não saberia vos informar, mas garanto-lhes que suas economias terminarão no bolso delle.
Enquanto isso, próximo ao Theatro, um ajuntamento observa um protervo sênhor desfilar seus desafôros a um outro. O motivo, parece, é que êste passou a mão próximo das ventas daquêle, que revidou atirando-lhe o chapéo. Nenhum passante parece desejoso de estremar a situação. Todos preferem assistir ao espectáculo, enquanto um sorveteiro comercializa suas gulozeimas.
Fatigado e com calôr, decido voltar a casa. Subo no primeiro bond que passa e procuro moedinhas no meu bôlso, mas não as encontro. Continuo as procurando, com certa vagareza, até sentir uma cutucada nas costas.
- Aê, doido. Dá pra dar uma licencinha? Vou descer na próxima e ainda tenho que pagar.
- Claro. É que estou meio perturbado com essa quentura toda.
- A parada tá mesmo sinistra. Também tô derretendo, maluco.
Sento no banco da frente do ônibus, tiro o paletó, afrouxo a gravata e abro a janela. Estou mesmo precisando tomar um ar. Ao virar a esquina, vejo o Palácio Monroe. Esfrego os olhos e ele já não mais está.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br