sábado, 25 de junho de 2016

CONSTATAÇÃO


Isaias Coelho Marques

Do escuro deste dia ressacado,
salta fora pela órbita alvo olho duro.
Novamente a quadratura do erro diário,
displicente amanhecer ordinário,
na campa desse instante acachapado,
foi-se tudo que antes era puro.

PEQUI OR NOT PEQUI?*


Daniel Cariello**

Na mesa do bar, enquanto Joca dava beijinhos do seu pescoço, a Flávia anunciou que ia preparar um jantar romântico na casa dela.
— Galinhada e arroz com pequi.
O Joca se assustou e parou com os beijos.
— Pequi? Por quê?
A Flávia, viciada no fruto, nem se ligou. E empurrou o rosto do Joca de volta ao seu pescoço.
— Porque é bom, oras. Continua.
O Joca nunca tocara no assunto, mas não suportava pequi, nem o cheiro, nada. Culpa do Tio Onofre, dizia.
— Flávia, pequi não dá.
— Dá, sim, tá na época.
— Tá na época de alguém fazer algo contra essa ameaça e bani-la do Sistema Solar. Não como nem amarrado. Pequi ainda não está pronto, veja bem, os espinhos nem tiveram tempo de sair do fruto. Daqui a mil anos, talvez. Darwin, entende? Enquanto isso, vamos deixá-lo quieto.
A Flávia nunca pensara que o Joca tivesse inclinações radicais, e conclamou uma assembleia à mesa, com direito a voto de todos os amigos. O que eles decidissem seria aceito pelo casal.
— Então, pequi or not pequi?
— Pequi, disse a Marlene. O Joca tem que aceitá-la como você é.
— Protesto, interrompeu o Bigode. Se isso o incomoda, não custa fazer um esforço. Not pequi.

domingo, 12 de junho de 2016

LIBERDADE, NOME DE MULHER.


Ananda Sampaio

               O que fazemos com a vida que recebemos? Alguns viram trapezistas, outros bailarinos, mas a maioria assume posições um tanto quanto insossas a meu ver. Tornam-se pessoas de negócios — preocupadas com o marketing, em ampliar seus negócios, em figurarem as capas de revistas divulgando fórmulas para quem deseja alcançar o tal sucesso. Há gente que apenas sonha com uma mais tranquila, com mais coisas gostosas pra comer e outras mais divinas para ler. Essa pessoa sou eu.
               Admito que sinto muitas vezes que me acovardo para a vida. Que assim é que o mundo nos quer, mudos e sonolentos sacolejando dentro do ônibus ou de carros próprios. Continuamente temendo as dívidas que costumam se multiplicar numa ligeireza tenaz e tão pouco solícita. Tenho impressão que tornar-se adulto não é desabrochar, mas estar apto a calcular seus dividendos e diluí-los em mais coisas, que frequentemente não temos mais onde guardar.
               Procuramos uma vida mais estável, com um emprego mais seguro e um relacionamento menos indolor, mesmo que seja à base de pílulas. Invenções científicas que nos deixam mais plastificados do que os manequins de loja. Compra-se na farmácia sono, sossego e um pouco de cegueira. Não queremos ver, porque ver é sentir e sentir dói. Como faca amolada a entrar na carne sem dó nem piedade. Definitivamente a existência não nos poupa, nos tritura. Sulcos e socos.
               Economizamos porque o futuro é incerto e temos que nos precaver. Sempre pensando que podemos estar preparados para as desconexões que acontecem — as rupturas que nos solapam e mostram que nossos planos nunca foram previsíveis. Acreditar que a vida é previsível é atestar sua própria loucura.
               No entanto, a insanidade nos persegue, mas costuma ter ares disfarçados pela cirurgia plástica, pelo aparente equilíbrio, pela aparente vida que vendemos aos outros, mas que, de fato, não vivemos. Envergonhamo-nos do coração de louça que temos. E isso, pra mim, é nosso maior devaneio e injúria. Organizemos então um atentado ao pudor, que nos despudore de nossa mais tenra humanidade.
               Sou covarde quando me acostumo com uma vida que não me satisfaz. É como se abrigar debaixo de um teto cheio de goteiras porque não quero me molhar na chuva. Tenho medo de ser criança e compassadamente rejeito a criança que existe em mim todos os dias, ponho meus acessórios e finjo que sou um adulto que tem tudo sob controle. Quando tudo que eu queria era andar descalça, como um moleque a soltar pipa.
               Não controlo minha tristeza, nem minhas frustrações, não consigo prender em minhas mãos a minha própria liberdade, porque tenho a leve concepção de que nunca a concebi realmente. Ela está presa e junto a ela estou eu também. Liberdade, nome feminino, mas tinha que ser nome de mulher.
*Jornalista, estudante de Letras, leitora e aspirante (suspirante) escritora. Integrante do@coletivoleituras


ENCAIXANDO SONHOS*


Daniel Cariello**
             
                       Louise está brincando no quarto. Filha única, ao menos por enquanto, acostumou-se a se divertir-se sozinha, embora prefira acompanhada. Muitas vezes participo de seus jogos, seja desenhando, lendo histórias ou organizando o casamento da Polly, com a presença certa das Ever After High, personagens de uma realidade a que somente mães e pais de meninas têm acesso. Mas também gosto de apenas observá-la mergulhada em seu universo infantil, sem ela perceber que estou ali, enquanto rememoro a criança que um dia fui.
               Da porta, vejo-a sentada no chão, distraindo-se com seu supermercado de Lego. Um Playmobil enchia o carrinho com miniaturas de cenouras, laranjas, garrafas de leite e caixas de cereal. Estava prestes a passar pelo caixa e pagar com o dinheiro que sua mão não podia segurar, pois é representante de um mundo de encaixes diferentes. Apesar do contratempo, realizou as compras, embarcou na carruagem da Cinderela e finalmente foi para a casa, preparar o jantar para seus iguais.
               Nunca brinquei muito com Playmobil. Se bem me lembro, só tive um, encontrado na areia de um parquinho perto de casa. Cuidei dele como um filho, até o dia em que se revoltou, perdeu os cabelos (e revelou sua cabeça oca) e desapareceu nesse mundão. Nunca mais nos vimos.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

O QUE PASSOU, PASSOU ? III


Manoel Emilio Burlamaqui de Oliveira
               
                 Em meu último texto, deixei umas interrogações no ar, sobre o crescimento da pobreza, em nosso planeta, ou, como diz Francisco, em nossa casa...
               Ainda que venha a falar muito neste assunto, nos palcos do teatro humano, hoje, prefiro, e me permito, citar algumas frases do Papa Francisco, dirigidas às crianças do mundo inteiro, respondendo a elas, que, em cartas, testemunharam as palavras de Jesus “deixai vir a mim as criancinhas porque, delas, é o Reino dos Céus". Vamos extrair os parágrafos do livrinho "Querido Papa Francisco" que, julgo eu, por sua simplicidade, clareza e objetividade, tornarão mais compreensível o que chamo de Era do Humanismo. Senão, vejamos:
               Respondendo a Mohammed, da Síria - "No mundo, agora, há muito sofrimento e, infelizmente, você sabe bem disso. Há pessoas que fabricam armas para que outras lutem e façam guerra. Há pessoas que têm ódio no coração. Há pessoas que estão interessadas somente no dinheiro e, por dinheiro, vendem tudo, inclusive, outras pessoas. Isso é terrível. Isso é sofrimento."
               Thierry, 7 anos, da Austrália, pergunta: "Querido Papa Francisco, por que há pessoas tão pobres e sem comida? Deus não pode dar comida para essas pessoas pobres como ele fez quando alimentou 5.000?" A resposta: "Sim, sim! Ele pode fazer isso, Thierry! E Ele continua fazendo isso. Naquela época, Jesus deu pão aos seus discípulos para que eles distribuíssem a todas as pessoas. Se os discípulos de Jesus não tivessem distribuído o pão, as pessoas continuariam famintas. Veja: há pão! E há o suficiente para todos! O problema é que aqueles que têm muito não querem dividir com os outros. O problema não é Jesus, mas as pessoas más e egoístas que querem guardar o que têm e não dividir com ninguém. Com essas pessoas, Jesus é muito severo. Precisamos aprender a compartilhar nossas riquezas e nossos alimentos." E, para Michael, 9 anos, da Nigéria, que pergunta: "Como o senhor pode solucionar os conflitos que existem no mundo?" - "Temos de ajudar as pessoas de boa vontade a falar da guerra como algo ruim. As pessoas querem fazer guerra para ter mais poder e mais dinheiro. A guerra é somente fruto do egoísmo e da avareza. Não posso resolver todos os conflitos do mundo, mas você e eu podemos fazer desta terra um mundo melhor. As pessoas sofrem e seu desenho também mostra tristeza. Você conhece o conflito, pelo que vejo. Mas não existe uma varinha mágica. É preciso convencer a todos de que o melhor modo para ganhar a guerra é não fazê-la. Não é fácil, eu sei. Mas estou tentando. Peço-lhe que tente também"
               Nada nos custa ler e ouvir Francisco; e refletir, em cima do significado de suas palavras. A sua luta é nossa, também. Ajudemo-nos, e teremos um mundo cada vez melhor!

sexta-feira, 3 de junho de 2016

RELAÇÃO PREMIADA*


Daniel Cariello*

               Fiquei imaginando como será a cadeia (com trocadilho, por favor) de fatos que podem ligar um cidadão aparentemente comum à teia de delações de Sérgio Machado, o novo terror da república. Tudo pode vir à tona a partir de um encontro casual.
— Ei, você não é aquele amigo do Sérgio?
— Sérgio?
— Machado, esse aí que gravou todo mundo e tá delatando e tocando o pânico no Congresso. Vocês iam jogar pôquer lá em casa, uns anos atrás. Aliás, não te chamavam “o rei dos ases”?
— Era mago, “o mago dos ases”.
— Isso, você era bom, sempre cheio de ases, incrível. Teve aquela vez que botou uma quadra deles em cima de uma outra que tinha acabado de ser jogada. Um verdadeiro milagre da multiplicação dos ases, 8 em um jogo, première mundial, naquela partida que valia o apê de Ipanema. Se você perdesse, entregava a chave na hora!
— O baralho veio com defeito, já falamos sobre isso.
— Nunca te contei, né, mas no dia seguinte descobri meu outro baralho. E adivinha: sem os ases!
— Então foi isso, os dois vieram com problema. Ó, vou ligar agora pra fábrica, exigir que mandem outros, isso é um absurdo!
— Deixa pra lá, foi bobagem, nem lembro direito dessa história.
— É, vamos mudar de assunto.
— Melhor, mesmo. Me conta aí, como anda a Claudinha, aquela sua filha secreta fora do casamento? Já deve ter o quê, 13 anos, 14? Sua esposa já sabe dela?
— Ei, ei, fala baixo, fala baixo! Qual é a sua?

SEM TÍTULO


Isaias Coelho Marques

Sou tão fácil de ser feliz
que às vezes, tenho pena de mim.

Tenho veias túrgidas,
             voz e vento soltos.
Tenho pena,
asco dos grandes e dos pequeninhos.
Não cabem
nem suportam suas próprias medidas.

Tenho medo
medo de ficar parado,
o mesmo medo que não me move.

Nada me comove.
Tudo antes da satisfação
mostra-me caminhos obscuros.

Não sei da luz
nem das estrelas
rumo, fórmulas, felicidades...

Onde estamos
que não somos?
Onde foi aquilo
que gostaríamos de ser?
Será mais fácil desaparecer?
Difícil ser simples,
compreensível diante de tamanha mansidão.

Não partirei antes da minha dor.
Não fugirei.
Músicas são belos finais...