quinta-feira, 29 de setembro de 2016

EU X ZIDANE*


Daniel Cariello**
               Primeiro sábado em Paris. Primeira festa. Atrasei-me, depois de passar um dia (infernal) na Ikea – megaloja que é uma espécie de Tok&Stok misturada com Makro – comprando coisas para a casa.
               Ao chegar, uma surpresa: dos alto-falantes saía música brasileira! “Essa moça tá diferente, já não me conhece mais...”, e os franceses, que adoram a canção, dançavam um samba meio frankenstein. Em seguida, mais Chico. E emendaram “O que será?”. Comecei a me sentir em casa.
               Na rua estava muito frio, mas no grande apartamento – uma coisa rara em Paris – estava bem quente. Tão quente que tive que tirar o sobretudo, o casaco, o cachecol e as luvas, apetrechos comuns aqui, apesar de pouco familiares para os tupiniquins.
               Charlotte foi me apresentando às pessoas. Meu francês não é lá essas coisas, mas dá pra bater um papinho aqui e ali.
— Esses são os donos da casa.
— Enchanté.
— Esses são meus amigos.
- Enchanté.
— Esses são um casal que mora no Senegal.
— Enchanté.
               Enchanté pra cá, cerveja aqui, enchanté pra lá, cerveja acolá. Música brasileira no som. Já me sentia totalmente enturmado.
               Aí me apresentaram pra um sujeito do qual não me lembro da cara. Só me lembro da camisa.
— Ça, c’est Daniel. Il vient du Brésil.
               E o rapaz, tal qual um Clark Kent, abriu o casaco e me revelou sua verdadeira identidade.
— Regarde. - E mostrou a estampa que ostentava, orgulhoso, do Zidane, enquanto cultivava uma expressão facial cínica.
               Isso mesmo, o Zidane, que marcou dois gols de cabeça em 1998 e deu um balão no Ronaldo em 2006, que nos impôs duas derrotas em Copas do Mundo. E que, na final de 2006, perdeu a cabeça. Ou melhor: meteu-a com gosto no peito do Materazzi, zagueiro italiano.
               Aí eu me enchi. Talvez pelas derrotas do nosso time. Ou pelo dia de cão na Ikea. Ou pela minha ascendência italiana. Ou simplesmente pelo excesso de cerveja. Achei que deveria fazer alguma coisa.
               E fiz.
               Na hora em que o rapaz exibiu a figura do careca em sua camisa, percebi que o orgulho nacional estava em jogo, ali, naquele momento. Era um tapa na cara. Um desafio para um duelo. E a hora da revanche.
               Senti o peso e a responsabilidade. Cento e noventa milhões de brasileiros e 60 milhões de italianos aguardavam ansiosos por alguma ação minha.
               Respirei fundo e, imitando o meio-campista francês, meti a testa no peito do cara, com mais força do que o previsto.
               Feita a lambança, merecia um cartão vermelho, mas o máximo que pude fazer foi exibir um sorriso amarelo.
— Pardon.
               No dia seguinte, acordei com uma baita dor de cabeça.

*Esse texto faz parte do livro Chéri à Paris, disponível agora apenas em ebook: www.amazon.com.br/Chéri-Paris-brasileiro-terra…/…/B00HFY2T7Q
**"Daniel Cariello - Escritor". Continuará abrigando as crônicas cariocas

terça-feira, 20 de setembro de 2016

UH LA LA*


Daniel Cariello**
               
                 Ding dong - Acusou a campainha, com seu carregado sotaque francês.
               Achei estranho. Pensei que era um vizinho pedindo açúcar, sei lá. Abri. Parado em frente à porta um homem grande, loiro, que suava pelas ventas. Uma mistura de Gérard Depardieu com o brother do Jim Carrey em Show de Truman, mas um pouco mais bizarro.
— Bonjour - Ele disse.
— Bonjour monsieur - Respondi, caprichando no sotaque e achando que arrasava.
Daí ele desembestou a falar, rápido, papel na mão. Entendi nada.
— Pardon?
                 Ele repetiu tudo de novo, na mesmíssima velocidade. Agora pesquei uma palavra aqui e outra ali. Pelo que saquei, era alguma coisa a ver com as férias.
— Posso ler? - Pedi, apontando para o papel. Ele se enfezou.
— Mas é a mesma coisa que acabei de falar duas vezes!!! - Isso eu entendi bem. E o suor passou a sair pelo nariz também, formando umas bolhas d’água.
          Aí começamos uma guerra de nervos. Ele suando cada vez mais e eu puxando o papel, tentando entender do que se tratava. Nossa relação não começava muito bem, pensei. Não deu para ler tudo. A coisa degringolou de vez quando empaquei em uma palavra.
—Qu'est-ce que c'est Pâques? - Nunca tinha visto isso antes, Pâques. Comecei a desconfiar que ele trabalhava no zoo, ia sair de férias e estava arrecadando dinheiro pra cuidar das pacas de lá.
               Não respondeu. O nível de tensão era alto. Pelo tanto que suava, deduzi que o cara estava prestes a implodir. Era melhor encerrar aquele papo o mais rápido possível. Fiz cara de mau e fiquei olhando para ele. Ele fez o mesmo, mas era mais feio e já estava encharcado.
—Pardon monsieur, não entendi bulhufas.
— Eu também não! - Senti meus cabelos voarem com o calor do seu bafo.
               O cara deu as costas e saiu pelo corredor, bufando. Antes que eu pudesse fechar a porta, deu tempo de ouvir um urro de “putain!”, algo equivalente ao nosso “puta merda!”.
               Dei duas voltas na chave, só pra garantir.
P.S.: Pâques é Páscoa. O sujeito devia querer uma ajuda para viajar no feriado. Ou não.
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*Esse texto faz parte do livro Chéri à Paris, disponível agora apenas em ebook: www.amazon.com.br/Chéri-Paris-brasileiro-terra…/…/B00HFY2T7Q
**"Daniel Cariello - Escritor". Continuará abrigando as crônicas cariocas

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

“A ERA DO HUMANISMO”


Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira

Eta livrinho difícil de sair
               Quando pensei em escrevê-lo, a intenção (ainda é) era demonstrar, passeando pela história do homem, via as chamadas “Idades” (Pré-história, Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna, e Idade Contemporânea, descritas, identificadas, caracterizadas, pelos mais diversos historiadores, e encontradas, até, no Google...) para demonstrar que os milênios de guerras, de horrores, de genocídios, de escravidões, (a pesar das descobertas, das invenções, do crescimento populacional, do crescimento econômico, etc.) estão chegando ao fim, como resultante da velocidade do acesso ao conhecimento que nos foi proporcionado pela Internet.
               Contei os anos de duração de cada Idade, ainda de acordo com os historiadores, e, comprovei que tal durabilidade tinha por base a cobiça, a ganância, do Poder e da Riqueza, sempre gêmeos inseparáveis, que, como o canto das sereias, atraia os que preferiam ter, que ser. Mas, recontar a história das dominações e dizer que, brevemente, essa história mudará, seria acrescentar pouca coisa ao que já se encontra nos livros Além disso, fica-me, sempre, a impressão de que os critérios para distinguir o começo e o fim dessas “Idades” não foram bem justificados, daí, podendo, cada um de nós, contestá-los, suprimindo, emendando ou acrescentando Idades...
               Foi nesse ponto que “descobri a pólvora”! Ousadia minha, botar mais lenha na fogueira da humanidade, catando e utilizando termos e definições, nos admiráveis homens novos, (perdoe-me o Huxley) filósofos e historiadores, para uma nova classificação dos tempos das ações humanas, desta vez, agrupadas por temas presentes em toda a sua existência!
               Passarei a enumerá-las, sem compromisso com a(s) época(s) em que existiram ou existem: 1 – Tempos da Sobrevivência 2 – Tempos das Descobertas 3 – Tempos das Organizações 4 - Tempos do Crescimento 5 - Tempos das Dominações 6 - Tempos da Politização 7 - Tempos das contestações 8 - Tempos das Ideologias 9 - Tempos das Rebeliões 10- Tempos da Informação 11- Tempos das Mudanças 12- Tempos da Participação 13- Tempos Novos (A Era do Humanismo - Democracia e Desenvolvimento do, para o, e pelo homem).

Uma dica: Os enumerados 10, 11, 12 e 13 já começaram em alguns países nórdicos.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O ABOMINÁVEL NICOLAU


A. J. de O. Monteiro

               Sobreira era um sujeito estranho, retraído – tomavam-no por tímido. Sua postura tornava-o mais estranho ainda: magro, estatura mediana, corpo encurvado para frente, rosto encovado e com marcas de acne, talvez. Não se integrava plenamente ao ambiente de trabalho. Não participava das manifestações sociais do grupo (festinhas de aniversários ou as indefectíveis confraternizações de final de ano, etc.) – amigos? Nem ocultos nem declarados. Por várias vezes tentaram fazê-lo participar de tais reuniões, sem sucesso. Nunca faltava ao serviço, exceto por razões médicas e em raras ocasiões, é que o diziam. Assinava o ponto de entrada e saída nas horas exatas, cumpria sua carga horária com rigor. Não cumprimentava ninguém e se alguém o cumprimentava, respondia com um murmúrio ininteligível e rumava para sua sala, de onde pouco saia – era responsável pelo “arquivo morto”. Era o último “ao” dos processos que chegavam a termo: “Ao Sr. Sobreira para registro e arquivamento” – era o despacho. Recebia os processos, conferia-os meticulosamente até a última folha, assinava e carimbava a guia de protocolo a qual devolvia ao funcionário que levara os processos. No carimbo constava: Antônio N. Sobreira – Responsável pelo Arquivo/RH. Esse era o Sobreira e isso é o que o Sobreira fazia todos os dias.
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               De tempos em tempos, no serviço público, algum desocupado de dentro da cúpula administrativa inventa de realizar um recadastramento de pessoal argumentando necessidade de corrigir distorções e estabelecer o perfil da “força de trabalho”. Cabia, como sempre, ao Departamento de Recursos Humanos – DRH, proceder com os trabalhos, seguindo orientações da ETAN – Equipe Técnica de Alto Nível, instalada nos andares de cima. O trabalho consistia em fazer chegar aos doze mil servidores ativos do órgão, um formulário elaborado pela tal ETAN, composto de três campos: Campo 1 – Dados Pessoais; Campo 2 – Dados funcionais e, Campo 3 – Outras Informações Pertinentes. Com os formulários seguia ofício com orientações básicas de preenchimento e o aviso da obrigação de devolver o formulário preenchido em prazo “X”, sob pena de exclusão da folha de pagamento (ameaça maior que essa, não podia haver).
               Em tempo hábil o DRH já criara um grupo de trabalho para o recebimento e análise dos formulários – e nesse grupo lá estava o afortunado aqui. A análise se resumia em confrontar os dados fornecidos pelos servidores com aqueles já constantes nos seus assentamentos funcionais. Em caso de conflito entre o formulário e o assentamento entra-se em contato com o servidor, para dirimir o conflito. Beleza, né?
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               De centenas de formulários por mim analisados nenhum trazia preenchido o campo 3, com qualquer “informação pertinente”, até chegar às minhas mãos o formulário referente ao servidor Antônio Nicolau Sobreira, onde constava, no referido campo 3, a seguinte observação em letras de forma bem desenhadas: “PRETENDO EXTIRPAR DO MEU NOME, ESSE ABOMINÁVEL NICOLAU”. Sorri, é claro, com a cômica gravidade da frase, mas não dei maior importância e passei adiante o papel, sem comentar com ninguém. Ao final do expediente saí e, antes do lar, havia o boteco de desintoxicação com duas ou três cervejinhas.