sábado, 28 de maio de 2016

CARTA AO FUTURO*


Daniel Cariello**

Ei, você aí em 2034, como estão as coisas?
               Aqui tá tudo mais ou menos. Na verdade, nesse momento, está mais pra menos. Tem dias que está mais, mas esses dias são cada vez menos, se é que você me entende.
               Se não entender, não tem problema, porque por aqui ninguém também está compreendendo nada. A confusão é grande. Você deve ter lido nos livros (ainda existe isso, livros?) sobre o que aconteceu com o antigo Brasil, em 2016. É verdade, o país se chamava Brasil, antes de assumir definitivamente o epíteto de Pindorama, o que aconteceu no final do ano. Sei que ainda estamos em maio, mas um vidente, a fonte mais confiável de informação nos dias de hoje, me garantiu que seremos rebatizados antes de dezembro.
               Joaquim de Arangola, o futurólogo em questão, assegura que o nome da nossa pátria começou a mudar quando Michelzinho escolheu a marca do reinado de Michel I e, segundo um grampo do Sérgio Machado, decidiu também pela volta do lema “Ordem e Progresso”, que havia aprendido a escrever sozinho, na escola. O infante ainda sugeriu adotar a música dos Teletubbies como novo hino nacional, mas foi convencido do contrário pelo soberano e por sua esposa bela, recatada e do lar, em troca de mais sorvete pra sobremesa.
               O visionário também afirmou que Michelzinho daria um golpe no pai, ao completar 16 anos, tomaria o poder e decretaria a invasão terrestre de Cuba. Alertado pelo chanceler Joseph See Ha da impossibilidade do fato, teria ordenado então a venda do Acre, só pra se vingar, No entanto, seria informado que o Acre era tudo o que havia restado do antigo país.
               Porém, isso tudo é coisa pequena, não é mesmo? O importante é que o carnaval e futebol ainda existem na sua época, aposto! As cabrochas na avenida, os brochas no poder, o Vasco na 2a divisão, aquela vidinha besta de sempre, com tudo terminando em cheeseburguer (pensa que não sei que a pizza foi abolida pelo nosso chanceler?). Se tiver ketchup, aí fica do jeito que o devil gosta.
               Bom, já vou me despedindo. Antes, quero aproveitar essa nossa missiva intertemporal para fazer uma perguntinha boba: o Jucá e o Cunha já foram presos por corrupção? Hein? Fala mais alto, pra eu poder ouvir daqui, são 18 anos de distância! Já? Não? Ah… Só pra saber, mesmo.
               No mais, aproveite aí de Pindorama. A gente se encontra pessoalmente no futuro (pra mim, pra você será presente). Podemos marcar na posse do presidente Alexandre Frota, o que lhe parece?
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

ESFOMEADA


Ananda Sampaio*
               
                     Coloco a mão no bolso e em forma de concha ela retorna com algumas poucas moedas. Troco do pão, da farmácia, do ônibus. Será que juntando tudo daria pra comprar uma empada? Contei, recontei. Desapontada, percebi que não. E pensei que dizer não para o estômago é umas das coisas mais difíceis da vida.
               Quantas pessoas no mundo sentem fome nesse exato momento? Milhões, bilhões. Miró usava a sensação da fome para pintar, li em algum lugar, ir mais fundo no seu inconsciente. Lembro que passei dias extasiada com essa informação. Será que mais alguém se pergunta isso agora? Mais alguém no mundo, vasto mundo, estará agora se angustiando, como eu, ao pensar que a fome é uma constante tão triste na vida de tanta gente? Creio que sim, talvez ela também esteja pensando em mim como estou pensando nela. Pena que não nos conhecemos ainda.
               Voltando a esse negócio de dizer não tenho muitas considerações a fazer. Dizer não é sempre mais difícil, parece ser sempre a prova, a avaliação, o momento de reafirmação. Dizer que não ama alguém, como é esperado, é doloroso, porém honesto. Dizer não para o filho que chora, é desgastante, mas necessário. Dizer não àquela proposta indecorosa é resistir. Num país de corruptos, dizer não é quase uma celeuma, talvez cada vez que alguém diga não à alguma atividade espúria uma fada nasça no mundo das fadas ou a esperança se torne menos capenga.
               Dizemos não e sentimos fome. Porque a fome é fruto do que não temos, do que não deglutimos, do que não absorvemos. Talvez quem diga não viva mesmo com fome. Mas a tal fome daquele outro tipo. A gente se pega triste pelos cantos, amortecidos, coração em frangalhos que continua a bater, apenas em consolação. Fome de fé, fome de acreditar, fome de humanidade — no sentido mais bonito que essa palavra pode aferir e não ferir.
               Não é a empada que me faz falta agora, retorno as moedas para o fundo do bolso.

*Jornalista, estudante de Letras, leitora e aspirante (suspirante) escritora. Integrante do@coletivoleituras

sábado, 21 de maio de 2016

LICENÇA POÉTICA*


Daniel Cariello**
— Ô, biscoito.
— Aê!
— Quanto tá?
— Seis temers.
— Não tô perguntando o preço do lote, só de um pacotinho.
— É isso aí, seiszão, tá fresquinho, vai?
— Mas como isso aconteceu?
— Os maluco da fábrica fizeram o biscoito ontem e eu comprei hoje. Tá cocrante.
— Não, o preço, como ele subiu tanto?
— Licença poética.
— É o quê?
— Licença poética. Explico. Esse presidente aí não é poeta?
— Parece que é.
— É, sim, curte o que ele escreveu: “Embarquei na tua nau sem rumo. Eu e tu...”
— Calma, calma, acredito em você. Pode pular essa parte de recitar.
— Então, acompanha. O artista chegou à presidência tocando o terror, mudando as regras, passando por cima de tudo e o diabo.
— Verdade.
— Quer dizer que as leis agora tão de licença, concorda?
— É.
— É a licença do poeta. Poética. Sacou?
— Boa lógica.
— Então, se o cara faz isso, tô só embarcando na sua nau.
— Na minha?
— Não, maluco, na dele!

O EU – CONFINADO


Isaias coelho Marques

Esse céu de mar morto,
carros ao léu,
feitos barquinhos de papel.
essa cidade estendida no peito,
cruz presa ao asfalto quente,
jeito de ir-se morrendo
len
        ta
               men
                          te 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O QUE PASSOU, PASSOU? II


Manoel Emilio Burlamaqui de Oliveira

               À medida que nossa idade muda, mudam nossas atividades, mudam nossas amizades, mudam os nossos gastos, mudam nossos gostos... E surgem problemas de que, antes, não nos dávamos conta, normais numa sociedade de consumo, onde o chamado “poder aquisitivo” delimita os nossos sonhos.
               Ao frequentar o ginasial, dei-me conta de que, a maioria de meus amigos, mais pobres que eu, ali, não se encontravam. E a tristeza abateu-se sobre mim, ao constatar que faltava às suas famílias, o dinheiro necessário para as despesas com seus estudos, já que, nem mesmo o que vestiam e calçavam poderiam ser chamadas de vestes diversas...
               Naqueles idos, as crianças não diziam “papai, eu te amo, mamãe, eu te amo”, como vejo, agora, nas novelas de TV. Uma omissão que, ainda hoje, me persegue, um agradecimento que não lhes fiz pelos sacrifícios que fizeram por mim, uma vontade de tê-los, novamente, comigo, para lhes dar todas as demonstrações de reconhecimento e de amor de um filho querido!
               Será justo apequenar nossos sonhos? Teremos que correr atrás do poder aquisitivo para, depois, sonharmos? Ou deveremos sonhar, para buscar um poder aquisitivo que possa torna-los realidade? E, se não alcançarmos esse “poder”? Afinal de contas, como alcança-lo?
            Infelizmente, só sei de duas maneiras para virar Papai Noel: trabalhando duro ou apropriando-se, indevidamente, do alheio... Uma ou outra maneira possuem variáveis incalculáveis, dependendo de uma escolha de valores, onde a vontade de ser e a de ter determinam nossa conduta.
               Lembro-me de um ditado, em pleno desuso, que diz “Quem não rouba, ou não herda, enrica é merda!” Como, também, que criaram, no início do “Iluminismo”, a apelidada política de resultados, também aceita e praticada, na atualidade, como “pragmatismo”, cujo pai, Maquiavel, condenando os princípios éticos e morais, encontrados por ele na doutrina cristã, ensinava ao Príncipe que qualquer meio seria correto para o alcance e a manutenção de um poder que unificasse a Itália, então, dividida em pequenas, mas, ricas repúblicas, com governos independentes.
               No segundo palco, onde procuro rever a história, estas lembranças surgem com mais nitidez, ligadas, naturalmente, ao uso da força e da riqueza pelo homem, julgadas essenciais para o seu crescimento em sociedade, como na economia e finanças públicas.
               Se minhas amizades, que me deixaram triste e saudoso, por serem engolidas e separadas, na divisão das classes sociais, desapareceram, a pobreza, ao contrário, só fez aumentar de lá para cá!
Como? Por quê? Culpa de quem? (continua)

sábado, 14 de maio de 2016

PROVAVELMENTE*


Daniel Cariello**

Às quatro horas e quarenta e cinco do dia onze de maio de dois mil e dezesseis, no Largo do Machado, o cantor Marcelo Guima aumenta o som do amplificador, anuncia “essa fala de amor, tudo que precisamos nesses tempos” e solta o playback e a voz em um sucesso de novela. Um mendigo de casaco vermelho, sentado no chão, bate palmas e canta o refrão, como uma senhora sentada ao meu lado e um hypster bigodudo de bicicleta.
Às cinco em ponto, um cabeludo loiro começa a fazer bolhas gigantes de sabão, roubando a atenção das pessoas sentadas nos bancos do lugar. Marcelo Guima encerra a música e agradece ao público, sem resposta. O mendigo de vermelho acende um cigarro, perde o equilíbrio, cai, levanta novamente e então sai andando, pé ante pé, em linha perfeitamente torta. Uma das bolhas do loiro passa pelo indigente e explode nos cabelos grisalhos de um senhor de terno e pasta de couro, que não reclama, mas faz cara feia.
Às cinco e dez, o motorista de um dos muitos ônibus que têm o Largo como ponto final grita para o colega:
— E aí, vai cair ou não?
— É, rapaz, parece que agora vai...
Dois jovens debatem o fato mais importante não apenas do dia de hoje, mas da história recente do país.
— Outro golpe, isso é uma vergonha!

CADÊ A DEMOCRACIA QUE ESTAVA AQUI? O GATO COMEU!


Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
               
                 Há muito tempo, nem lembro quando, decorei que Democracia era o governo do povo, pelo povo e para o povo. Mais tarde, ensinaram-me que “governo do povo, pelo povo e para o povo” era um governo de pessoas, escolhidas pelo povo, para, como seus representantes, pagos pelo povo, executassem obras e serviços, com os recursos arrecadados do povo, que proporcionassem aos seus representados, o povo, aquilo que lhes foi delegado para fazerem, isto é, o seu desenvolvimento social e o seu desenvolvimento econômico! Ora, se o governo é do, é para e é pelo, parece-me ser um governo participativo, maiormente, quando cabe aos governantes obedecer aos que lhes botaram no governo... Também, a escolha dos caminhos para o desenvolvimento, sendo indicada pelo povo, é um fruto da participação, é um fruto da democracia! Entretanto, basta faltar o “do”, ou o “para”, ou, ainda, o “pelo”, complementados da palavra povo, para não existir democracia, por conseguinte, não existir o tal “Estado Democrático de Direito” e, muito menos, o “de Fato”.
               Se isso é verdade, então, o título deste artigo, plagiado de minhas brincadeiras de criança “o gato comeu”, não devia ser o encimado, pois, afinal, a Democracia nunca esteve aqui, portanto nunca serviu de comida para o “gato”... Mas, o bichano comeu alguma cousa e engordou, como tem engordado a cada ano que passa, que ninguém se engane disso! Comeu o que? O que estava aqui e desapareceu? Resposta óbvia, o governo da D. Dilma, o PT de seu Lula, o próprio Lula e todos os que, inocentemente, pensavam viver numa democracia! E, mais, num passe de mágica, inventou o “Golpe Democrático de Direito” Eita Gatão arretado!

sexta-feira, 13 de maio de 2016

USO COMPLICADO*


João José de Andrade Ferraz

               Tinha espécie de fixação em calçados e o gosto passava por todos os tipos, atingindo modelos clássicos – de cromo ou pelica. Agradando, comprava sem titubear: no crediário, mas comprava.
               — Quase nem usa; para com isso! Bastam dois: um marrom e um preto. É até pecado... — bronqueava a mulher.
 Não adiantou, claro: a tara permanecia invicta. Certa feita forma adquiridos dois pares de finos Elbena, sendo que o preto, no diário, fez calo. Como é que esse porqueira maltrata?, chateava-se. Com o problema nos pés, pediu a “colega” que lhe amaciasse o par.
               — Aqui estão escova, flanela, graxa, meias novas e sapatos – entregando sacola. – Capricha no trato, usa e devolve.
               Essa a providência amaciadora.
               O encarregado era ex-PM, excluído da tropa por reiterado comportamento pouco ortodoxo. Contínuo, no serviço público, amancebado pela enésima vez; morador em vila, na aprazível e pacífica Timon. Quando tinha grana (uma vez por mês) emprestava o ar da sua graça em bate-coxas, tomando birita e tal.
               Dentro do prazo marcado para a devolução – tarde da noite, toca o telefone:
               — Alô? Quero falar com o ... – todo apresentado.
               — Quem deseja?
               — É o... É urgente, dona – identificando-se e exigindo.
               Aborrecido atendeu.
               — O que é, rapaz? Isso lá são horas?! Tá embriagado, maconhado, ou o quê? Matou alguém?

SEM TÍTULO


Isaias Coelho Marques
Andando na vida
atrás de amores
mais leve fica
o fardo de nossas dores

quinta-feira, 12 de maio de 2016

TERESINA


Ananda Sampaio*
               Nasci em Teresina, capital do Piauí, geralmente surrupiada da geografia do Brasil. Talvez porque brasileiro tenha mesmo a memória curta. Para mim, não é à toa que a cidade tem nome de mulher. E um duplo: Teresa Cristina — junção de dois nomes da terceira e última imperatriz do Brasil. Sendo a única capital do nordeste que não tem mar, mas que tem as mais altas temperaturas. Sendo por esse motivo uma cidade seletiva, quem não gosta de sol não pisa os pés em Teresina.
               Em 1987, meu pai passou no concurso do Banco do Brasil e fomos para o interior do Maranhão, de lá para União e depois para Brasília. O tempo passou e ele dizia peremptoriamente:  — quero voltar para Teresina. Os cabelos começaram a cair, a tez ficou cada vez menos bronzeada e no topo da cabeça formou-se um mapa, onde os cabelos não mais cresciam. Eu passava os dedos e o couro não tinha mais poros, estava liso, infértil. Aprendi que aquele era o mapa da saudade. Sempre ouvi dizer que os cães definham de saudade, depois disso aprendi que as pessoas também.
               Brasília, cidade cara, para um simples bancário com duas filhas e esposa tudo era inacessível. Íamos muito pouco ao cinema, quando íamos era um dia para não esquecermos, assim como se acumulavam as dívidas se acumula a saudade. Telefonemas sempre após as dez horas da noite, interurbano era mais barato, e a voz das minhas avós do outro lado. “Por aqui tá tudo bem, minha filha e vocês?” — sempre que ouvia a voz delas sabia que algo estava mesmo fora de órbita. Que nós gravitávamos num habitat que não era mesmo nosso. Aí batia a saudade dos primos, a casa da vovó sempre barulhenta porque estávamos lá e a comida? Sim, a comida. O creme de galinha, a vitamina de mamão, laranja e banana e o pudim de leite. Tudo isso estava subscrito no item saudade do meu dicionário.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

O QUE, PASSOU , PASSOU?


Manoel Emilio Burlamaqui de Oliveira
               O exercício do refletir, sempre fez parte de meus hábitos, principalmente quando procuro entender as mudanças, quotidianas, do comportamento de uma sociedade da qual faço parte, que retratam o passo a passo do caminhar humano.
               A reflexão, irremediavelmente, leva – me a um teatro com dois palcos, onde, no primeiro, os atos se ligam à minha presença em momentos vividos e/ou participados por mim, enquanto, no segundo palco, é a história do homem, contada e escrita por historiadores, antropólogos, sociólogos, filósofos, economistas, e pesquisadores, dividida em atos demarcados, no tempo e no espaço, pelos sistemas de poder político, social, econômico, semelhantes, em épocas denominadas de idades, e essas, por vezes, subdivididas em eras.
               Interessante é verificar como os dois palcos se comunicam, pois, é, exatamente, o primeiro palco que me faz entender, analisar, criticar e projetar a história contada, e representada, no segundo.
               Ao revirar o meu passado, experimento uma sensação estranha, de quantos rumos tive de optar para alcançar o que julgava melhor para mim, norteado por princípios éticos e morais, adquiridos no seio de minha família, nas escolas que frequentei, na leitura de obras que me embeveciam, assimiladas na infância e na juventude.
               Enquanto aprendia a ler e escrever, aprendia, também, a respeitar as criaturas, fossem pessoas, bichos ou plantas; e qualquer ato maldoso, ainda que a maldade não fizesse pouso em nossa consciência de crianças, eu, e meus amigos, éramos punidos. Não havia “meninos de rua”, mas uma molecada brincalhona e barulhenta, que jogava bola de meia, peteca (bola de gude), pião, empinava papagaio, e andava de rolimã. Também, não havia preconceito de cor, talvez um pouco de preconceito de gênero, pois os pais “guardavam” as meninas em casa, e os “frescos” não eram bem vistos/recebidos pela “turma”.
               A leitura levou-me a descobrir um novo mundo, impensável numa criança de dez anos. Dizem que a curiosidade matou o gato. Bom que não havia gato, pois essa curiosidade botou-me dentro de uma biblioteca, onde, o maior trabalho, era escolher o livro da vez, para matar minha ignorância. Até que encontrei Monteiro Lobato e, com ele, um mundo, até então, desconhecido!
               A leitura ávida de suas obras, e das que lhe seguiram, sem dúvida, deu-me as pistas de que necessitava para a escolha de meus caminhos. 

quinta-feira, 5 de maio de 2016

DIA DEZESSETE*


Daniel Cariello**
               
              Botou pra lavar a camiseta vermelha e foi pra cama, mas não conseguiu dormir. Logo os fogos estraçalharam o silêncio da noite pesada e lenta e transpassaram os tampões de orelha, companheiros das noites insones. Ele levantou-se. Já sabia o que havia acontecido, todos sabiam. Pensou em voltar à tentativa de repouso, mas não poderia deixar de observar aquele instante, que entrava para a história enquanto ia acontecendo.
               Abriu a janela lateral à Rua das Laranjeiras e deixou entrar o peso do momento, em gritos vindos de todos os lados. Eram muitas vozes e panelas, dezenas, mas nenhum rosto, todos estavam escondidos na penumbra de meia-noite. “Puta!”, “Vai embora!”, “Leva o barbudo junto!”, “Ordinária!". Final de copa, o Brasil metendo sete gols na Alemanha.
               Ficou observando como quem assiste a um filme. Mero espectador da realidade, chocado demais para esboçar qualquer reação. Testemunhou quinze minutos daquela cena, até que alguém quebrou a unanimidade, solitário, desesperado. “Vocês estão loucos! Vejam o que fizeram! Não percebem que são vocês as vítimas?”.
               As vozes, saciadas, foram aos poucos se recolhendo. Restou apenas a contraditória, rouca. “Loucos, estão loucos! Isso é contra vocês! Não veem?”. Ao longe, alguém bateu palmas em solidariedade. Ele acompanhou. Retornou ao leito, triste, mas com a certeza de que, dali pra frente, não estaria sozinho.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br