quinta-feira, 28 de julho de 2016

CHIQUINHO E A CAMBOTA¹


A. J. de O. Monteiro
               Francisco tinha então dezesseis anos e morava num povoado da zona rural de uma pequena cidade do interior. Naquela época era conhecido como Chiquinho. Chiquinho levava a vidinha própria de um adolescente desses rincões afastados e esquecidos do resto do mundo... Aliás, o mundo, para ele, tinha o tamanho do povoado de onde nunca havia saído. O que ele conhecia de outros cantos era pelos relatos dos “cometas”² que por ali passavam em intervalos regulares levando mercadorias e novidades do mundo exterior.
               O lugar se resumia a um aglomerado de casas, uma pracinha e a pequena capela que era atendida apenas por padres em desobrigas anunciadas e motivo de grande movimento naquele lugar também esquecido por Deus. Além disso, só os roçados e pequenas criações de gado de onde os moradores tiravam suas subsistências. Quando sobrava um pouco era trocado por mercadorias com os mascates. A energia era fornecida por um gerador movido a diesel – usina, para eles – que operava diariamente das 17h30min às 21h30min, desde que a prefeitura do município sede não suspendesse o fornecimento do combustível – geralmente por questiúnculas políticas – ou por quebra de alguma peça da máquina. Por vezes ficavam sem energia durante meses, mas nem ligavam muito, pois o único aparelho elétrico que se via por ali era o rádio, mas esse também funcionava a bateria e satisfazia às necessidades de informação e divertimento, apesar do chiado.
               Certo dia, um dia crucial na vida de Chiquinho, havia energia e o ritual do lugar era o de sempre: Os mais velhos estavam em casa, sentados à porta, proseando e ouvindo pelo rádio, “A Voz do Brasil” – para eles o melhor programa. Os mais jovens, entre os quais, Chiquinho, estavam na única e mal tratada pracinha: Uns namorando, outros conversando e alguns tomando umas biritas para passar o tempo. Nosso amigo não tinha namorada e não bebia, portanto ficava só observando e aprendendo para quando sua hora chegasse. As 21h, as luzes dos postes piscaram, era o primeiro sinal de aviso que a energia seria cortada em 30 minutos. O segundo foi às 21h15min, quando Chiquinho resolveu tomar o rumo de casa.  
               Já saia da pracinha quando ouviu uma voz macia: - “Chiquinho, me leva ‘em’ casa”. Tenho medo dos cachorros do Manoel caçador... Era Maria Cambota e Chiquinho não estava preparado. Virou-se e disse:
               — Olha, Maria, a energia vai acabar e o caminho é escuro... Minha casa é longe...
               — Tá cum medo? Num é homem não?
               Isso mexeu com os brios do rapaz, que reagiu:
                — Tenho medo não, vou te acompanhar...
               — Então vamos logo, homem.
               Seguiram sem conversar. Maria sorrindo e Chiquinho assoviando, com as mãos nos bolsos para despistar o medo, não do escuro, mas da própria mulher. Vez por outra ele olhava de banda e o andar cambaleante – próprio dos cambotas – também o fazia temer que ela, de repente, caísse sobre ele. Maria era muito grande e Chiquinho franzino.

O QUE É, O QUE É?


               Isaias Coelho Marques
Ave
Maria
Ave
Marinha
Quem
Adivinha?

quarta-feira, 27 de julho de 2016

DEVE SER LEGAL UM BUSÃO NO SENEGAL*


Daniel Cariello**
              
                O Demba tem um táxi coletivo. Por táxi, entenda-se um carro meio caindo aos pedaços, com um fio que deve ser puxado para trancar a porta por dentro, uma janela que não abre e, se abrir, não fecha, e o cinto do passageiro da frente que deve ser entrelaçado com o do motorista, já que só tem um encaixe. O velocímetro não funciona, assim como o marcador de combustível. Mas ele tem uma relação tão simbiótica com seu carro, também seu meio de vida, que sabe dizer exatamente a velocidade e sente quando precisa abastecer. Confesso que fiquei meio assustado na primeira vez que entrei ali.
               Do aeroporto de Dakar, Demba nos levou para uma vila chamada Tubab Dialaw. O trajeto de cerca de 80 km, à noite e sem trânsito, foi vencido em cerca de 2 horas. Alguns dias depois, ele nos levou a Joal, a uns 100 km ao sul de Tubab. Mais uma vez, quase 2 horas de trajeto. "Como pode demorar tanto?", pensei.
               De Joal íamos para Sine Saloum, uma ilha ali perto. O Demba não pôde ficar, mas passou direitinho as instruções.
               — Para ir ao cais de onde sai o barco, pegue um 7 Lugares. E não pague mais de mil francos. Quando você voltar, amanhã à noite, o ônibus vai parar onde eu normalmente paro o táxi. Aí eu levo vocês pra casa.
O 7 LUGARES
               Foi só quando cheguei no ponto de partida do 7 Lugares que entendi o nome do transporte. É um carro normal, que eles atocham até ter 7 pessoas, motorista incluso. Dois no banco da frente, quatro no banco de trás e Alá - já que é um país muçulmano - protegendo a todos.
                — Quanto é?
                — Dois mil.
                — Tá caro.
                — Mil e quinhentos.
                — Pago mil.
                — Mil pra você e duzentos pra bagagem.
                — Pago mil.
                — Sobe.
               Depois de negociar o preço, uma atividade tão corriqueira por lá quanto beber água, montei no táxi e coloquei a mochila de 60 litros atrás. O bagageiro de cima estava entupido de caixas e umas cinqüenta vassouras de palha. Numa curva, todas caíram.
               — Vassoura! Vassoura! Vassoura!
               O motorista parou e descemos para catá-las, esparramadas pela estrada de terra. Quando vi o tamanho de todos do lado de fora, duvidei que fôssemos caber novamente naquele carro. Mas coubemos, ainda não sei bem como. E logo depois chegamos ao cais.
N'DIAGA-N'DIAYE E A RELATIVIZAÇÃO DA REALIDADE

domingo, 24 de julho de 2016


SENE-SENE-SENEGAL*
Daniel Cariello**
               Não existe nada no mundo como o aeroporto de Dakar, a capital do Senegal. Pelo menos no meu mundo nunca existiu nada semelhante. A coisa é tão confusa aos olhos de um estrangeiro - mas ao mesmo tempo funciona tão bem dentro desse caos - que se tentarem organizar, acredito, entra em colapso instantâneo. É como uma música do Frank Zappa. Ou um filme do Fellini. Ou um X-Tudo de beira de estrada, com muito X e muito tudo. Não tente compreender sua lógica. Apenas aceite a existência.
               A introdução dessa nova realidade é a sala de desembarque. Existe esteira para as bagagens, claro, mas ela está ali só porque deve ser obrigatória a presença de uma nos aeroportos. Sua função prática é discutível. Algumas poucas malas, mais afortunadas, circulam por ela. Mas a grande maioria fica mesmo espalhada pelo chão, criando uma variante da corrida com barreiras. A diferença é que o cara saltando ao seu lado não está se exercitando espontaneamente. A única coisa que ele quer é ter o direito de alcançar suas valises antes que elas entrem num universo paralelo e desapareçam para todo o sempre. Um fato que deve ser comum no lugar, levando em conta a quantidade de sacos, sacolas e pacotes encostados pelos cantos, umas 20 vezes maior do que o número de pessoas presentes. Mas no fim das contas, e para o meu espanto, a impressão que eu tive é que todo mundo conseguiu recuperar seus pertences. Eu incluso.
               Ao sair da sala, dezenas de pessoas vieram ao mesmo tempo me oferecer os mais diversos serviços. E, se existe um povo insistente, é o senegalês. O maior erro que se pode cometer em Dakar, e isso eu só fui descobrir mais tarde, é dar corda para quem queira te vender qualquer coisa no aeroporto, na rua ou onde quer que seja.

domingo, 17 de julho de 2016

SER HUMANO/SER HUMANO



Manoel Emilio Burlamaqui de Oliveira

  Somos, segundo as últimas estatísticas, sete bilhões e duzentos milhões de seres humanos , também conhecidos por “pessoas”, habitando o planeta Terra. Por sua vez, o planeta Terra, gira em torno da estrela Sol, uma das menores do Universo, onde existem bilhões e bilhões de outras estrelas, que, segundo nossos cientistas, também, devem possuir seus planetas, habitados ou não (Isso é outra história...)
  Pois bem, coube a mim, receber uma incumbência (ou desafio?), via facebook, de um amigo meu, o cronista A.J. de O. Monteiro,: analisar algo que só tem valor (se tiver...) para nós, meros habitantes da terra: o que seria o “ser humano” !
  Primeiro, vamos colocar os pingos nos iii: ser (verbo) humano poderia ser conjugado “Eu sou, tu és ele é, nós somos, vós sois, ele são”, humano (s). Será, então, a palavra humano um adjetivo, como nas frases “ser bom, ser amigo, ser desprezível”... Porem, há, no mínimo, uma diferença, pois, ser (verbo) humano, no meu pouco entendimento, é portar as qualidades e os defeitos do animal racional homem. E serve de desculpas, ou de elogios, quando afirmamos “ele é um fraco , um mau caráter”, ou “ele é admirável, um verdadeiro homem...”
  Já, ser (substantivo) humano, é um ser, ente, indivíduo, ou espécie, do reino animal, que anda em pé, pensa, raciocina, acumula conhecimentos, escolhe o que lhe parece melhor, se organiza e tem a capacidade de construir e destruir, conforme os conhecimentos adquiridos, no tempo e no espaço, e os objetivos, gananciosos ou não, a que se propõe alcançar...Mais uma vez, a palavra humano, qualifica, identifica, um ser, agora, substantivo.
  Fico imaginando, amigo velho, deparando-me com um velho estranho e perguntando-lhe: “Que ser sede vós?” E a resposta: “sou um andante, um mago, um envelhecente, pronto para lhe dar umas bengaladas por sua pergunta impertinente e idiota”!
  Convencê-lo-ia a gastar sua irritação com quem, de vez em quando, sem ter o que fazer, conta uns “causos” acontecidos com tal de Mago Manu! Reza, Monteiro, para que esse encontro não aconteça, pois não me responsabilizarei pelo que , dele, advirá...

O MUNDO PARALELO DE CHRISTIANIA*


Daniel Cariello**
               
                 Estávamos na porta de Christiania, a célebre cidadela hippie de Copenhaguen, onde artistas, vagabundos, poetas, marginais, traficantes, hippies e todo tipo de alternativo convivem harmonicamente há 40 anos como se o sonho sessentista de paz & amor & drogas nunca tivesse deixado de existir.
               Antes de passarmos a barreira, lembrei-me do aviso de um amigo: “Velho, Christiania é um mundo paralelo. Ali você acessa uma outra dimensão, uma realidade muito diferente da nossa. Não é pra iniciantes, fica ligado”.
               Entramos um pouco apreensivos e prendemos o ar. Mas logo percebemos que meu amigo havia exagerado. Tudo parecia completamente normal. O céu era esverdeado, como em qualquer lugar do mundo. E a chuva de purpurinas em forma de coração não era forte o bastante para incomodar. É verdade que estranhei um pouco um sujeito vestido de Charles Chaplin que andava plantando bananeira, mas o cachorro rosa ao meu lado me tranquilizou, garantindo que o cidadão só caminhava daquele jeito porque se sentia um pouco indisposto.
               Na rua principal, comerciantes de alimentos e plantas ali mesmo produzidos dividiam espaço com enormes placas informando que era proibido tirar fotos e tocar balalaika. Fiquei tão absorto lendo o informe que quase fui atropelado por um elefante distraído. Não posso reclamar, a culpa era minha, eu estava fora da faixa e não respeitei a preferência do bicho.

sábado, 9 de julho de 2016

PEQUI OR NOT PEQUI” (POR EMPRÉSTIMO) — OUTRA VISÃO.


Manoel Emilio Burlamaqui de Oliveira
               
          Anos 50, estava no auge a invenção de que o crescimento populacional das nações subdesenvolvidas era o responsável pela fome, no mundo...
               Anos 60, em pleno governo militar, vieram “cientistas”, “profissionais” de todos os tipos, dos EE. UU., para introduzir, nas vaginas das mulheres da Amazônia, aparelhos que as impedissem de engravidar!
Incrível, pois todos os que lidavam COM PROBLEMAS DE DESENVOLVIMENTO, sabiam que não haveria fome se houvesse distribuição de renda. E que, para tanto, seriam necessárias, apenas, algumas reformas nas chamadas políticas econômicas e sociais das nações pobres (as chamadas reformas de base) No Brasil essas reformas eram encabeçadas pelas reformas Agrárias, Educação e Saúde Pública. Facim, facim...! Tão fáceis que, até hoje, nunca foram feitas...
               Isso, escrito acima, é para justificar umas visitas que fiz, com meus amigos Manoel Andante e Mago Manú, anos atrás, a vários latifúndios das principais regiões do Piauí, por pura curiosidade, para sabermos quem paria mais, as ricas ou as pobres, moradoras naquelas terras... Já que, nas nações de gente rica se paria tão pouco que importavam mão-de-obra daquelas de gente pobre, ora vejam só!
               Sabem o que verificamos? As famílias ricas tinham mais filhos que as famílias pobres! E por quê? Os filhos das pobres morriam de montão, por falta de “sustança”, por verminoses, pelos mais variados tipos de vírus, transmitidos pela muriçoca, pelos “barbeiros” que viviam nas casas de taipa, etc, etc, etc...

quinta-feira, 7 de julho de 2016

DEVIR


Isaias Coelho Marques

Ironia
Da
Ironia
Pensava
Que era
Mas nunca seria

JEMAA EL-FNA*



Daniel Cariello**
              
               Dezenove dirhams, cerca de quatro reais, é quanto custa o meu café da manhã. Quatro pelo suco de laranja fresco, tomado em uma das dezenas de barracas que vendem a bebida a preço tabelado na praça Jemaa el-Fna, com direito a chorinho de quase meio copo, e quinze pelo chá de hortelã e pelo pain au chocolat, consumidos em um café. Muito barato, ainda mais levando em conta a vista privilegiada da maior praça de Marrakech, provavelmente o principal ponto turístico do Marrocos.
               — Tem que pagar o chá e o croissant agora, mon ami.
               — Tá aqui.
               Do alto dos minaretes, os almuadens chamam quase simultaneamente à prece pela segunda vez do dia. A primeira me acordou às seis da manhã. O belo e incompreensível canto logo cessa, e as escalas árabes das flautas dos múltiplos encantadores de cobra voltam a todo fôlego. De onde estou, conto doze deles, oito especializados em najas que permanecem indefinidamente em posição de bote, quase nunca o concluindo. O último acidente com uma serpente aconteceu já faz um tempo, mas parece que o turista nunca voltou pra reclamar.
              Vejo também um sujeito perambulando com um macaco no ombro, propondo fotografias aos passantes, dois tocando percussão local, oferecendo mini shows para os dispostos a pagar, e ainda um outro com um chapéu típico do país, de formato parecido com uma lata de goiabada mais alta, do centro do qual sai uma espécie de corda trançada de cinquenta centímetros com uma bola de tecido na ponta. Este cidadão abaixa o pescoço e descreve voltas rápidas com a cabeça, fazendo a corda girar como se fosse uma hélice. Não entendi se ele propõe algo aos transeuntes ou apenas tenta refrescar as ideias nesse inverno do quase Saara, onde as temperaturas variam até trinta graus durante o dia.