quarta-feira, 31 de agosto de 2016

SAN GIOVANNI A PIRO*


Daniel Cariello**
               Começada em Paris, a caravana dos Cariello passou por Marseille e depois chegou a Roma, a partir de onde veio a ser reforçada com a presença do meu pai. O rumo seguinte e de onde escrevo nesse instante, a pequena San Giovanni a Piro, no sul da Itália, é uma espécie de Meca da família. Foi daqui que partiram meu bisavô e minha bisavó, há um século, em direção ao Brasil. Chegaram a São Paulo e depois instalaram-se no Rio de Janeiro, onde nasceu meu avô paterno. E mais tarde mudaram-se para Vitória, terra natal do meu pai.
               San Giovanni a Piro é um vilarejo do qual ouço falar desde pequeno. E no meu universo infantil construí a imagem de um lugar velho e escuro. Afinal, se meus antepassados o abandonaram é porque devia haver algo errado. Mais velho descobri que esse "algo errado" era a forte crise pela qual a Itália passava na época, causa de um enorme êxodo populacional, principalmente em direção ao Brasil e aos Estados Unidos. Mas a pintura construída na infância permaneceu na minha mente.
               Nossa chegada ao vilarejo, perto da meia-noite, ajudou a reforçar essa impressão de abandono. Poucos dos cerca de dois mil habitantes estavam na rua, o que é bem compreensível em um lugar desse tamanho.
               Na manhã seguinte, o sol brilhava. E os rostos e espíritos foram se mostrando aos poucos. Como na casa de Francesco Cariello, um primo distante. Meus pais já haviam estado um par de vezes na cidade, com dois dos meus três irmãos, e conhecem muitos endereços e pessoas. É meu pai quem toca a campainha. Vincenza, esposa de Francesco, atende. Ela abre a porta e um enorme sorriso.
               — Orlando!
               — Vincenza!
               — Comme stai?
               — Tutto benne. E voi?
               — Tutto benne. Há quanto tempo... Francesco não está, mas volta logo.
               No mesmo instante, nosso primo vira a esquina em seu velho carro. Nem bem acabamos os cumprimentos e já haviam chegado mais parentes. E logo outros mais. Não sei como ou de onde vieram. Em poucos minutos éramos quinze Cariellos conversando (ou tentando) animadamente, como velhos conhecidos. Ou como a família que somos. Fomos embora deixando abraços efusivos e a promessa de voltarmos a nos encontrar.

OMISSÃO IMPERDOÁVEL*


João José de Andrade Ferraz

               A turma estava  em preparativos, esperando com ansiedade os finalmente das solenidades de formatura. Em agitada reunião alguém lamento fato que passara despercebido: os convites fornecidos pela Universidade (além de poucos) eram horrorosos.
               Para suprir a carência, atribuíram a mim tal missão – com sutil argumento.
               — Você é amigo do Paulo Henrique (de Araújo Lima), diretor da COMEPI; e essa condição facilitará para pechinchar preço, talvez conseguir envelopes, maior quantidade, essas coisas...
               Pô, logo eu, que não levo o menor jeito pra isso? Mas não podia faltar à promessa, claro.
               Marquei entrevista com o “gráfico”, por telefone, pro outro dia; expus o assunto.
               — Bicho, tá esquecido de que isto aqui não é meu? – foi logo querendo excluir o dele da bisnaga.
               — Não; não estou, não. Mais como sou cliente indireto da empresa há muito tempo, e seu amigo, é que venho a modesta colaboração. Se puder ser, bem; se não puder, pode ir à...
               — Pera aí, vamos com calma. O que foi que você trouxe como subsídio à impressão?
               — Capa e texto.
               Olhou, fez cara de pouco entusiasmo, mas concordou em mandar imprimir mais xis convites por fora do orçamento apresentado – com preço camarada. Estendeu a cooperação, oferecendo:
               — Temos aqui um desenhista craque, capaz de melhorar o aspecto dessa efígie da justiça, cara. Cá pra nós, tá uma droga... — apontando com um lápis. Vou providenciar layout, e mais tarde ligo pra você.
               Deu tudo certo, porém... Todo empolgado, satisfeito, colega foi encarregado de levar o abençoado convite ao Magnifico  Reitor. O professor José Camilo – fumando indefectível charuto – recebeu o envelope, espiou o conteúdo e tranquilamente o devolveu, dizendo ao portador:
               — Pegue, meu caro colega doutor Kleber... Está muito interessante, de muito bom gosto. Só há um senão: quando os vocês doutores se lembrarem de apor o meu nome, mandem-me outro...
               Toda a comissão (de formatura) havia participado da elaboração!
               Quase saiu porrada...

*Do livro Registros de Memória.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

LAGOSTAS PSICODÉLICAS*


Daniel Cariello**

               Vistos de longe, os anos 60 foram a década em que metade do mundo parecia ter tomado um ácido. Músicas, filmes e livros psicodélicos brotavam por todos os cantos, como sementes (de papoula). A viagem era tão geral que nem as relações diplomáticas escaparam.
               Veja a Guerra das Lagostas, incidente envolvendo o Brasil e a França, ocorrido entre 1961 e 1963.
               O imbróglio começou quando barcos franceses vieram pescar lagostas na costa de Pernambuco. O governo brasileiro chiou. O francês bufou. O brasileiro ameaçou. O francês disse “merde!” e mandou uma frota de guerra. O brasileiro mandou os franceses tirarem os navios e os narizes da nossa costa.
               Então a coisa complicou de vez e uma guerra tornou-se iminente. Foi aí que os diplomatas de ambos os países, que andavam meio entediados desde o fim da década de 40, entraram na parada.
               Na mesa de negociações, os nossos disseram que as lagostas estavam em território brasileiro e dessa forma nos pertenciam. Os franceses concordaram e discordaram ao mesmo tempo, alegando que enquanto andavam e tocavam o fundo do mar, tais crustáceos realmente respondiam às leis de pindorama. No entanto, quando nadavam, estariam em águas internacionais e, portanto, não tinham passaporte e poderiam ser livremente pescadas.
               A história ficou tão malucrazy que nesse instante o General de Gaulle proferiu - ou não, porque ninguém sabe se é verdade mesmo - a sua frase mais famosa em terras tupiniquins: “Le Brésil, ce n’est pas un pays sérieux”, o Brasil não é um país sério. E ele queria o quê, oras, que a gente não entrasse na brincadeira?
               O quiproquó só foi resolvido quando um almirante brasileiro soltou o argumento mais brilhantemente psicodélico possível, afirmando que se as lagostas quando nadam podem ser consideradas peixes, então os cangurus quando saltam seriam nada menos do que aves.
               Brasileiros e franceses concordaram que o raciocínio fazia muito sentido. E acendeu-se então o cachimbo da paz.
- Só pra te lembrar que eu tô ali no canto, viu?~"Daniel Cariello - Escritor". Continuará abrigando as crônicas cariocas
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br, mas agora também outros textos do autor.

AMOR?*


Adriana Bezerra

               Manoel não é um homem simples, jogou todas as suas fichas para ter uma vida tranquila, aprumada, cercada de amor e conforto, mas algo o inquietava. Não conseguia, com o tempo de casado, discernir se o que havia planejado esses anos todos, convivendo com a esposa, era de fato amor. Foi então que resolveu procurar uma terapia e, no segundo encontro, começou a me contar o que vinha em sua mente.
               — O nosso comportamento parece programado. Nos dias de semana, fazemos as tarefas individuais e em conjunto, até chegar a hora de dormir. Uma rotina que não muda há tempos. Geralmente fazemos sexo entre quintas e domingos. No momento de lazer, fazemos as mesmas coisas. Será que estamos inebriados de amor, ou somos apenas a imitação de marionetes? Burgueses em voos rasantes? Sinto tédio até na hora de fazer a feira, pois colocamos no carrinho sempre as mesmas coisas. Não tem novidade no supermercado que provoque algo diferente. O vinho, nas quintas-feiras virou rotina. Estamos perto de quê? Do início de um colapso ou de uma maneira confortante de viver no reino da paz? É claro que, se estou questionando o meu amor, é porque não sei se é verdadeiro, ou talvez não esteja sabendo amar, apesar de viver exatamente como planejei. Acredito que se tenho dúvida é porque estou vivendo sem a certeza de que meu sentimento é universal, de acordo com o senso comum, pois, na minha concepção, é tão resistente. Não penso em improvisar nenhum comportamento ou criar um acontecimento inesperado, os dias são os mesmos, desde que organizamos nossa vida. Para mim ela não é só a pessoa que escolhi, mas também a pessoa que deu certo todos esses anos. Porém algo me inquieta: se não aventuramos é por que não temos a mesma pulsação nas veias dos poetas. Faço parte de uma população que muda culturalmente de geração a geração. Assimilo valores e as novas invenções da modernidade. Não retomamos a invenção da roda de madeira ou as rodas que existem, queremos veículos sem rodas, que voem. No casamento, dá-se o mesmo, não aceitamos mais a mulher sem uma profissão. Estamos juntos, conquistando nossos cargos, nossos títulos e prestígios. Damos os parabéns às conquistas de nosso parceiro, com elogios curtos e objetivos, sem vibrações, parabenizando como se estivéssemos cumprindo com uma obrigação e, muitas vezes, não sabemos o conteúdo do trabalho que rendeu ao nosso companheiro reconhecimento de pessoas importantes.
               Ele ficou em silêncio por alguns minutos, olhei para a expressão de sua face, percebi que não iria chorar, nem fazer cara de tristeza, estava sereno. Naquele momento ele recapitulava sua análise para desmembrar uma solução, ou, talvez encontrar a emoção no pedido de ajuda.
               — Amor, por quem? Acho que amo mesmo é andar nos trilhos.
               Engano meu, ele se protege da emoção, então cabe a mim torná-la possível.
               — Desculpe-me, mas terminou a sessão.

*Do livro “Valores Que Nunca Se Apagam” – Contos. 

PASSAGEIRA PAIXÃO


Isaias Coelho Marques

Rápidas
profundas
revoltas
águas da paixão
deixam
por onde passam
corações em total confusão

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

JË PEJA, TË LUTEM*

Daniel Cariello**
               
            Nunca imaginei que um dia acabaria no Kosovo. Saca o Kosovo? O mais novo país do mundo, mesmo se nações como o Brasil ou a Espanha não o reconheçam. Aquele sobre o qual os jornais sempre davam manchetes do tipo "Confusão no Kosovo", "OTAN bombardeia Pristina" e coisas do gênero.
               Então. É daqui mesmo que escrevo esse texto. Mas não pra falar de guerras ou de processos conturbados de independência. E sim de bares. E justifico.
               É que depois do estranhamento inicial da chegada, não demorei a me sentir em casa em Pristina, a capital. Um pouco pelo fato de as ruas estarem cheias de flanelinhas e lavadores de pára-brisa nos sinais. Uma especialidade que julgava brasileira e, descobri, é comum nos bálcãs. Mas principalmente por que já tenho meu bar aqui. Aliás, tenho um bar, um celular e uma agenda cheia de nomes de pessoas bacanas. Elementos que, combinados na dose certa, podem significar felicidade. Na dose errada podem significar cirrose. Ou ao menos uma dor de cabeça desgraçada.
               E como se ainda fosse pouco, tenho também uma teoria. De boteco. Diz que o cara cria raízes indeléveis com um lugar quando ali elege seu bar preferido. Como o Beirute em Brasília, o Bar do Mineiro no Rio, o La Liberté em Paris ou o Strip Depot em Pristina. Uma escolha desse calibre é etapa importante na vida social de qualquer cidadão.
               Pois o Strip Depot, então. É uma mistura de pub inglês, café francês e preço brasileiro. Quase uma filial do paraíso. E apesar do nome não tem nada a ver com esses lugares de strip tease. Ao menos até onde eu tenha visto. O Strip Depot é um dos poucos lugares de Pristina onde há um equilíbrio na quantidade de homens e mulheres. E ponto de encontro de músicos, artistas e descolados em geral.
               Mas um sujeito não é feito apenas do bar que ele escolhe. Vale lembrar da outra angústia que consome a vida de pagadores de impostos ao redor do globo, do Peru à Croácia, do Canadá ao Uzbequistão: a decisão de qual é a cerveja preferida. Eu já tenho a minha. Tá, as minhas. No Brasil, Colorado, faz favor. Na França, Leffe, s'il te plaît. E no Kosovo, Peja, të lutem. Alguém sem cerveja preferida é um eclético da cevada. E ecléticos, sabe-se disso mundialmente, são aqueles que não escolhem. Seja por preguiça, comodidade ou falta de noção.
               Fiquei pensando nisso tudo quando, no meu terceiro dia em Pristina, voltei pela terceira vez ao Strip Depot. Sentei, abri meu caderno de anotações e rabiscava alguma coisa. Então o garçom dirigiu-se a mim. Não em albanês, como faz normalmente com os clientes. Mas em inglês. Reconheceu-me. "How are you today? Is everything fine?". Nessa hora, pensei se estava bebendo demais esses dias. Pensei se devia estar ali mesmo, ao invés de ir ao hotel terminar um trabalho. E pensei ainda que aquela cevada cedo ou tarde (mais cedo do que tarde, certamente) acabaria concentrando-se na minha região abdominal, criando os inevitáveis pneus. E num golpe de esperteza, resolvi todas essas questões com a frase certa, dirigida à pessoa certa:
—Yes, everything is ok. Can I have a Peja, të lutem?- Só pra te lembrar que eu tô ali no canto, viu?*"Daniel Cariello - Escritor". Continuará abrigando as crônicas cariocas
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br, mas agora também outros textos do autor.