domingo, 31 de dezembro de 2017

PVP – PARTIDO DA VINGANÇA POPULAR (HONESTIDADE E TRABALHO)


Poncion Rodrigues

                Basta de mensalões, cuecões e sanguessugas! Meu nome é Estélio! Estélio Natário! Seu criado. Sou candidato a Deputado Federal pelo PVP.
                Indignado com a pouca-vergonha que invadiu a vida pública brasileira, peço seu voto para representa-lo em Brasília, onde irei impor a vontade do nobre povo que me elegerá.
                Pretendo obrigar o Presidente da República a ampliar o bolsa-tudo, para dar assistência à imensa legião de maridos traídos, criando o programa “Chifre Feliz”, com verbas destinadas ao afogamento de mágoas nos botequins deste grandioso país. Prometo defender com unhas e dentes o projeto de minha autoria denominado: “Programa Pato Donald” que tornará possível o envio de todos os alunos da rede pública para Disneyworld, ao completarem quinze anos, com passagens e demais despesas pagas pelo Estado, incluindo acompanhamento dos pais.
                Não posso me esquecer do projeto “Santo Antônio Milagroso”, o qual irá garantir maridos ricos e formosos para a gigantesca multidão de mocréias que assustam nossas crianças nas ruas de nossas cidades.
                Outras promessas que são compromissos públicos e dependem de vontade política:
                1. Serão perdoadas todas as dívidas com agiotas, bancos ou financeiras, de qualquer cidadão ou cidadã com idade entre 12 e 105 anos;
                2. Instituição de pena de morte para cobradores e lavadores de para-brisa de carros postados em semáforos;
                3. Imediato fuzilamento das duplas caipiras e daquele cara que aparece gritando nos comerciais das Casas Bahia;
                4. Uso de detector de mentiras nos pronunciamentos à Nação feitos pelo Exmo. Presidente da República ou seus asseclas, digo, seus Ministros;
                5. Instituição do ponto facultativo nas segundas-feiras para a laboriosa classe do funcionalismo público em todo o país, pois afinal ninguém é de ferro!
                Outros projetos em fase de conclusão pela minha equipe. Meu número é 171. Não esqueça de votar para deputado Estadual no irmão Josafá, o melhor que há. Para Presidente, Pastor Vivaldino Raposão. Governador Bispo Chico Mão Boba.
                ATÉ A VITÓRIA FINAL!!!!

sábado, 9 de dezembro de 2017

PARAÍSO


Isaias Coelho Marques

Queria
a tranquilidade
da matéria,
não saber da vida
nem da morte.
Feliz
como um deus
inconsciente,
livre da humana
sorte.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O MISTÉRIO



Ananda Sampaio
                Vivemos em um mundo de cada vez menos acasos. Antes de conhecermos alguém, provavelmente já conhecemos sua rede social. E assim já temos um manancial de rótulos e análises precipitadas acerca do possível desconhecido. Assim, evitamos assuntos, cortamos ou alongamos o papo. E assim, vamos tecendo nossa rede de relacionamentos permeada pela pré-informação sobre o outro.
                Anteriormente, em um tempo não muito distante. As pessoas chegavam quase sempre como folhas de papel em branco. Certo que possivelmente houvesse algum conhecido em comum, ou algum conhecido do conhecido. Mas nada que pudesse oferecer um relatório sobre a biografia dos indivíduos. Tinha que haver conversa, contato visual, sonoro e gestos faciais — uma gama de caracteres que nos ajudariam a compor aquela pessoa ou o retrato particular que faríamos dela. Conhecíamos assim, um gesto estranho, uma voz dissonante daquele que imaginamos para ela, o modo de se vestir, o jeito de empostar a voz, o formato dos dedos. Sim, adoro observar o formato dos dedos das pessoas.
                E, aos poucos, na nossa balança íamos pondo os prós e os contras e decidíamos, por fim, se a relação estagnaria ali ou se perpetuaria até tempos distantes. Com isso, aprendi a gostar dos acasos. E tenho tentado lê-los, sempre que minha sensibilidade se diz disponível em meu agoniado espírito. Quando falta luz. Aprendi a gostar de quando a luz elétrica some. O que ela deixa é um silêncio, ao qual poucos estamos habituados, cessam, então, as tarefas que estavam sendo postas em andamento. Procura-se uma vela, deita-se no sofá. E o sussurrar do tique-taque do relógio é amplificado, e o céu mais estrelado, e o bichos que têm ouvidos mais aguçados que os humanos descansam e se refestelam com o engrandecimento do silêncio. E a lua aparece e a luz prata chega, finalmente até nós.
                Ouço, e como ouço a minha voz interior crescendo. O alívio das janelas abertas. Não só as da casa, mas as minhas próprias. As pessoas e suas silhuetas — que mais se parecem com almas vagantes. O contorno das coisas que se parecem menos com coisas e mais com projeções orgânicas, se permitem ser o que minha mente, equivocada pela ausência de iluminação, quiser. Nessa brincadeira de perceber o mundo pouco clarificado vejo o mundo mais sincero. No peito a voz, a voz. Eu existo, derradeiramente diante das coisas e suas sombras. Do silêncio e do delírio. Eu estou mais no mundo agora do que dantes quando aceito a impossibilidade de visualizar a aparência definida ao meu redor. A falsa definição das coisas, a inútil definição visível das coisas. É no mistério que mora a incerteza e, por isso, a verdade.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

ERA UMA BRASA, MORA?



Poncion Rodrigues        
                Foi no tempo em que os Beatles faziam vibrar as tampas sonoras das nossas vitrolas, com o revolucionário som mundial vindo da velha Inglaterra.
                Um jovem Roberto Carlos, que se contorcia com sua turma nos passos do yê, yê, yê era por aqui o rei da trepidante jovem guarda que também cantava letras românticas de musicalidade emocionante e ritmo lento.
                As canções ingênuas e carregadas de um tal sentimento chamado amor, embalavam nossas novas descobertas. Dançávamos coladinhos (da cintura para cima). Meninos com meninas, despertando para os encantos das epidermes se tocando: corações disparados e bobagens românticas sussurradas nos ouvidos adolescentes.
                Naquela época, por um descuido das forças do mal, nós éramos todos felizes em tudo, tirando, é claro, as provas de matemática.
                O clube, o falecido cine Royal e a praça eram os principais “paqueródromos”. Nas tardes de domingo, depois do culto ao deus Sol nos haver bronzeado os corpos, estávamos equipados para praticar aquele olhar sedutor e o sorriso levemente lateral, cansativamente ensaiado em casa diante do espelho.
                Usando calças boca-de-sino e “botinhas” de fivelas abertas, olha lá nós em frente ao cine Royal. Quem estava namorando esnobava os colegas circulando de mãos dadas com o broto exibindo-se com a intencional naturalidade de um pavão.
                Depois do cinema, a Praça Pedro II (quando não, shows dos “Metralhas” ou dos “Brasinhas”).
                Nos volteios da praça, as trocas de olhares entre meninos e meninas eram flechas em mão dupla de cupidos invisíveis. Quando se cruzavam, a candidata a namorada abaixava o rosto com estudado pudor, logo traindo, pelo sorriso mal contido com ternura e viço, o interesse pelo “charloso” embrião de sedutor.
                Algum tempo depois todo mundo era engolido pelo portão do velho Clube dos Diários. Entre uma baforada de cigarro Minister e um gole de cuba libre aguardávamos a chegada da coragem de convidar uma garota pra dançar.
                Aconteceu que num passe de mágica ou toque de feitiçaria o tempo passou voando, bicho. Os Beatles já não se entendiam. Depois Lennon foi assassinado e o nosso “rei da juventude” foi se transformando num enrugado ancião, ainda sentado em que seu trono que ele não demonstra intenção de abandonar – pelo menos no transcurso deste milênio. Mora?

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

ENQUADRADOS


Ananda Sampaio
                
                     Onde você guarda a melhor parte da sua vida? Tenho me perguntado se a melhor parte da vida das pessoas está mesmo no instagram. Pergunto-me se é na rede social cool que estão memorizadas os melhores momentos da breve existência desses seres pós-rede social virtual. O que temos postado com frequência? A vida que quereríamos ou a vida que não vivemos? Talvez soe hipócrita o arvoramento dessa crítica, mas quero deixar nítido que tal crítica cabe mais a mim. Inquieto-me todos os dias quando sinto um impulso para postar algo sobre a minha vida, meu cotidiano. Especialmente, quando cogito postar uma selfie. Para quê, afinal? Não estaria eu mesma já tão cansada de meu próprio rosto? Não seria por isso que tenho evitado me olhar no espelho e me dado mais oportunidades de me olhar por dentro?
                Papo chato, né? Talvez. Tenho rearranjado meus conceitos sobre felicidade, satisfação, tristeza, honestidade, mentira e delírio. E tenho percebido que está cada vez mais difícil designar uma única tonalidade para cada um deles. Está tudo tão invadido dentro de mim, que uma pitada de tristeza na minha alegria e vice-versa é inevitável. Por isso, cada vez que publico uma foto minha sinto que mais minto do que sou. O avatar da rede social me impede de ser mais tanto aos olhos dos outros quanto aos meus próprios. O que resta para viver offline? Tudo, eu diria tudo.
                E tenho tentado viver tudo que tenho direito fora da tela do meu celular. As declarações de amor, de ódio, de tédio, todas as documentações etéreas da vida. Tudo que é vivido e findo e, por sorte, muita sorte, resguardado no poço frágil da memória. Tenho até escrito pouco, minha alma parece uma flor murcha. Cheia de perfume, mas feia. Sem muitos atrativos estéticos. Sem muito “adocicamento” visual. Estou tentando ser e quem sabe re-abrochar.
                As redes sociais virtuais rechaçam a minha angústia ou meu temperamento descuidado. A minha falta de apelo visual faz de mim orgulhosamente emocional — sem temer a breguice de quem pega fila no caixa de supermercado, de quem amarga um desentendimento com o marido e/ou namorado… A minha vida enquadra uma gama de acontecimentos não-fantásticos. Ou de acontecimentos tão fantásticos e banais como dar banho nos cães no sábado pela manhã. Minha vida carrega o caráter da vida comum que pouco dá manchete. Mas que dá uma boa conversa jogada ao vento.
                Temos um medo tremendo da não-permanência. Documentamos o que comemos, o que bebemos, quem amamos, os livros que lemos, as roupas que compramos, a farra que curtimos, o sol que partiu… Documentamos porque talvez pensemos que não vivemos. Porque, possivelmente, precisamos nos lembrar que estamos vivos e por quais experiências passamos. E para quais pessoas nos demos um dia e não nos damos mais hoje. Documentamos, fotografamos, descrevemos, ostentamos e pouco, muito pouco vivemos. Como disse a sábia Clarice Lispector, o nosso grande problema é o instante. Ainda não aprendemos a lidar com ele. Enquadramos tudo, quão quadrados estamos?

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

CRIANÇAS


Poncion Rodrigues*
                Nos tempos de antigamente elas brincavam até de roda, pasmem! Naqueles tempos as crianças chegavam ao disparate de ter infância. Brincavam e rodavam nas calçadas que eram delas. Suas avós contavam estórias de fadas, princesas e cavaleiros heroicos, diante de uma plateia infantil atenta e pura. No nosso tempo as calçadas são muito perigosas. As crianças nem sequer sabem o que é o “jogo da amarelinha”, pois os antigos encantos da infância são proibidos. As cantigas de roda foram sendo abolidas ao longo da instalação dos modernos tempos. O mundo raivoso que nos cerca, já não permite que se pense em brincadeiras. A amargura existencial precoce ocupa tempo vazio de meninos e meninas, nos intervalos entre jogos no celular. A mediocridade da vida já começa a robustecer as terríveis estatísticas, não publicadas, de suicídios na adolescência, dos filhos perdidos de ninguém. Que Deus nos equipe com inteligência e ternura, para o combate que resgataria nossa humanidade em decomposição. QUE VIVAM NO AMOR AS CRIANÇAS DE HOJE E DE SEMPRE!

*ex-criança e eterno menino peralta.

domingo, 1 de outubro de 2017

A SOPA CAIU NO MEL...

Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
                Tia Corina, assim a chamamos, é uma velha senhora, de cuja lucidez , muitos marmanjos têm inveja. Erudita, estudiosa, a idade avançada não lhe tirou o gosto da menina que tinha em Merlin um personagem que povoou a imaginação das crianças e a quem os adultos recorriam para fazê-las dormir sonhando com magias... Penso que foi essa predileção que a tornou uma pensionista das histórias contadas por “sobrinhos”, que lhe “adotaram” como Tia !
                Ao ler um “causo”, que me causou estupefação, sobre um fictício objeto de Fidel Castro, abrigado por ela em seu famoso “Brogue”, não tive pejo em procura-la para explicar-me se havia acreditado numa história tão estapafúrdia...
                Surpresa! Lá, já encontrei, abancado, o Mago Manu, com cara de quem comeu e não gostou!
                Ao me ver, exclamou; “Andante, você leu o que fizeram comigo?”
                —“Parece que estamos no mesmo barco, amigo velho!” retruquei. “Vejamos o que D. Corina tem a nos contar... Aliás, estou aqui em busca de teu endereço, pois tu sabes do meu, e, de vez em quando, me visitas, enquanto só te acho através da Corina! Agora, a sopa caiu no mel!”
                —A inventividade de algumas pessoas se torna inesperada quando envolve, irresponsavelmente, outrens, e fatos a eles atribuídos, que causa inveja aos que vivem de contar histórias, verdadeiras ou não... retrucou Manu!
                O papo parou quando surgiu Tia Corina, toda vistosa, com um sorriso nos lábios, alegre, como sempre, e nos saudou: “Sejam muito benvindos, caros amigos, mas o que fazem por aqui, além de me proporcionarem essa bela surpresa?”
                — “Primeiro, Corina, a alegria de te ver e o prazer de tua companhia nos pertence. Depois, essa não é uma visita, apenas, pra matar saudade, mas pra encontrarmos uma pista dum tal de Barretinho, mentiroso desajeitado, que mexeu com quem não conhecia e, agora, merece uns brogues... Mas, o adágio esta correto, “É mais fácil pegar um mentiroso que um coxo” Pois não é que o engraçadinho, ao inventar um Fidel que fumava cachimbo, atreveu-se a penetrar na História Mundial, envolvendo, propositadamente, personagens, todos eles já mortos, que não poderão, portanto, ser chamados para testemunhar fatos que nunca aconteceram? Até o suposto cachimbo, que foi quebrado, e o anel dourado com o nome do Ditador foram tragados pela correnteza de uma proverbial chuva, e a culpa jogada no Manu, já, ali, considerado um ladrão vaidoso e confesso, mas meio caduco. Portanto, querida amiga, diga-nos onde encontrar esse difamador, que abrigastes em tua coluna, pois o Mago e eu não costumamos levar desaforo pra casa!”
                 — Então vocês não sabem? Eu não sou linguaruda, muito menos “dedo duro” !
                — Mas dou-lhes uma dica: procurem o A. J. de O. Monteiro. Em compensação, publicarei no Brogue esse queixume, que, espero, não se torne um processo criminal!
                — Obrigado, Tia Corina, voltaremos!

sábado, 23 de setembro de 2017

O CACHIMBO DE FIDEL.


A. J. de O. Monteiro

                Era uma manhã chuvosa, daquelas que favorecem a preguiça e o devaneio. E assim estava eu quando de repente uma voz ecoou: “Venha encontrar-me no abrigo da Praça do Liceu”! Como estava sozinho assustei-me, mas prossegui com meus devaneios. Até que novamente a mesma voz se fez ouvir, mais alta e imperativa: “O que estás esperando? Pega o carro e vem me encontrar no abrigo da Praça”! Só então, para meu alívio, reconheci a voz do Mago Manu – ele não usa celular, prefere a telepatia... Como não domino a técnica, de imediato pus-me a caminho da velha Praça de tantas e tão boas recordações das minhas infância e adolescência.
                Chovia mais forte quando cheguei, mas não me detive. Saí do carro e me dirigi ao abrigo – uma construção estranha que pouco tem a ver com a Praça. É, na verdade, um bar e lanchonete protegido por uma laje que se projeta em dois sentidos sobre a construção central, apoiada em pilotis irregulares. Ao redor do bar e ainda sob laje tem-se mesas e cadeiras para atender a clientela. É difícil de explicar. Ao aproximar-me, Avistei o Mago com as duas mãos sobre a empunhadura da bengala vietnamita e o queixo apoiado sobre as mãos. Seu olhar fitava um ponto indistinto. Parecia ignorar o ambiente. Pensei: “algo grave aconteceu”. Em cima da mesa repousava uma bonita caixa de madeira escura, parecendo ébano. Como ele não percebeu minha aproximação pigarreei alto para alertá-lo. Ele olhou pra mim e com o queixo, apontou uma cadeira.
— Chamei-o para dar-lhe parte de um assunto muito sério e grave: vou confidenciar-lhe um ato que pratiquei há mais de cinquenta anos... Um ato indigno de mim e do qual até hoje me envergonho e que, também até hoje não partilhei com ninguém...
— Mago – interrompi-o – não precisa...
— Sim, é preciso, mais que preciso, é necessário. Tenho que dividir com alguém esse peso que carrego; essa nódoa a macular minha vida até então irreprovável e ninguém mais que você, Barretinho, merece minha confiança.
                Em ato contínuo tomou nas mãos a caixa, destravou o fecho dourado, levantou a tampa e virou-a para mim. A caixa, forrada com veludo azul, continha um cachimbo; um belíssimo cachimbo de madeira entre o vermelho e o vinho, com um anel dourado envolvendo a cabeça, e outro, também dourado, protegendo o encaixe da piteira.  
— Mago – falei – não me venha dizer que voltou a fumar e, agora, cachimbo... Estou pasmo...
— Não seja idiota! Não voltei a fumar e não voltarei! Sou homem de palavra!
                Pegou o cachimbo com as mãos trêmulas e o passou a mim, e apontando o anel da cabeça disse: Leia! Peguei o cachimbo, aproximei-o dos olhos e lá, no anel, estava gravado em itálico: Fidel Castro Ruiz...
— Uma homenagem ao Comandante, Mago?
— Não! Este cachimbo pertenceu a Fidel e eu o roubei... Pronto, falei! Esse é o ato do qual tanto me envergonho e que tanto tem atormentado minha consciência...
— Juro, Mago, não estou entendendo, me explique...
— Se você não me interromper mais, explico... Após Fidel descer com suas tropas de Sierra Maestra e tomar Havana, enxotando o ditador Batista, decidi por conta e risco próprios, fazer-lhe uma visita e ver como estava conduzindo o processo revolucionário na Ilha e, se necessário, dar-lhe alguns conselhos. Temia que ele e seus comandados, por tão jovens que eram se perdessem na condução dessa tarefa de refazer um País tão sofrido e explorado há tantos e tantos anos.
— Assim, Mago, sem convite...

terça-feira, 19 de setembro de 2017

UMA PALESTRA AGRADÁVEL *



Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira

                Esbelta, corada, vestida com calça comprida de veludo e blusa de seda colorida, calçada com sapatos salto alto, parecia estar indo para uma festa, ou para um shopping frequentado por pessoas abastadas, não fosse uma pequena foice que trazia presa em sua cintura.
                Quem diria, até a antiga senhora aderiu à modernidade, e, não mais assusta os viventes, que lhe aceitam como inevitável e necessária para que alcancem uma nova vida, mais cheia de alegrias, de amor, de beleza, que a vivida neste planeta, com passagens dolorosas, muito trabalho, suor e sangue... Castigado por querer, o primeiro de sua espécie, criado por Deus, ouvindo a Serpente, ser maior que o Criador!
                Ao passar por aquela faceirice, eis que ela me chama e exclama: “O garoto de quem Deus se apiedou e não me deixou leva-lo , quando não tinha , ainda, sete anos! ”Ao que retruquei”: Dona Morte, como à senhora está bonita”! “E ela:” Meu filho, nem todos me acham bonita, o que vês em mim de bonito? “Falei – lhe:” A tua proximidade com ELE, a tua bondade comigo, as tuas lembranças sem mágoas, a tua missão, que me levará para junto de quem amo, a tua paciência, em me deixar mais tempo com minha mulher, meus filhos, meus amigos!”“.
                “Incrível” ela tornou, “deparo – me com o resultado de um milagre, que se lembra de tudo, que ama o dono da vida e da morte, e que, mais, ainda, vive lépido e lampeiro e me acha bonita!” Pois bem, vou contar – te uma coisa: não sou feia, não sou bonita, não sou como me pintam... Não tenho idade, e apareço do jeito que me imaginam, uns, com medo, outros, sem me compreenderem, alguns, sem se importarem comigo... “Tu me achaste bonita, e, se eu não fosse a Morte e tu um simples mortal, até que daríamos um par legal...” “Vou seguindo meu destino, mais tarde, sem dúvida, nos encontraremos”... Fui!
                (Um esclarecimento: A referência ao que me aconteceu aos 7 anos se deve ao fato de que, em São João do Piauí, o Rio Piauí, apenas com um filete d´água, por falta de chuvas, formou um balseiro em suas margens, onde as crianças brincavam, e se jogavam na pouca água que restava, num banho gostoso. Quando vinham as chuvas, os ribeirinhos queimavam o balseiro , mas o fogo, como nos monturos, era ateado por baixo. Pois bem, atearam fogo ao balseiro, mas não avisaram às crianças e eu pulei , sem saber que já estava ardendo, e, arrancado por meu pai, minhas pernas não tinham mais pele. Fui desenganado pelos médicos, mas, no dia de Corpus Christi, quando passava Sua procissão, pedi-lhe que não me deixasse morrer, e, agora, estou contando essa história, testemunhando um milagre acontecido comigo! Ela será recontada, tim-tim por tim-tim, em outra ocasião...)

*Editada.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

TERRITÓRIO DA INFÂNCIA


Ananda Sampaio

                Tenho um avô que veio do Pernambuco para tentar vida no Piauí. Uma bisavó paraibana que cresceu órfã morando de favor, um bisavô misterioso vindo do oriente médio que assim como apareceu, desapareceu um dia. Li, em algum lugar, que a primeira sina do nordestino é não saber se vai ou se fica. Tentar a vida longe e um dia retornar à terra natal com a vida ganha. Coisa que quase nunca acontece. Muitos dos que vão não voltam mais. E muitos dos que ficam, sonham com a vida que nunca terão.
                Viver é uma perseguição sem fim. E para quem nasce em terras áridas como a nossa a perseguição já está no DNA. Meu pai perseguia o Banco do Brasil, e assim íamos para onde nos destinassem. E quis Deus, que um desses destinos fosse União, por puro acaso, pois o alvo inicial era mesmo Teresina. Chegados de mala e cuia, de cara fomos matriculadas, eu e minha irmã, na Escola Patronato Maria Narciso. Eu estava com seis anos e, embora conhecesse algumas letras, não sabia ler. A cidade que morávamos anteriormente não possuía a alfabetização.
                Em União descobri o casamento das letras e que a partir desses encontros nascem as palavras. E assim fui decodificando o mundo e reduzindo minha angústia. Percebi que não era tão difícil quanto imaginei. Nas ruas de União deslizei sobre minha bicicleta lilás com cestinha a caminho da escola. Rezei e cantei os hinos antes de entrar para a sala de aula. Participei da dança do côco vestida de menino porque nenhum dos pares disponíveis me agradava.
                Sem saber, eu construí em União o arcabouço do meu paraíso perdido que é a infância. E como bem diz Lygia Fagundes Telles, eu tenho escrito, desde então, na tentativa vã de resgatá-lo. E mesmo sabendo que nunca conseguirei, que o máximo que posso alcançar, são as minhas mãos tocando as paredes dos prédios que ainda restam, não direi que é um exercício inglório.
                Às vezes não gosto de retornar a União. O peito aperta, a minha finitude se escancara. E eu, boquiaberta, sinto perante os olhos a minha memória desfragmentar-se. Vejo minhas lembranças serem contestadas pelas proporções infantis que não correspondem mais a minha realidade adulta e tão mais exata.
                Foi no Casarão da Mãe Quelé que vi a vida passar sem medo. Eu não tinha medo. A vida se deslanchava exatamente igual a mim quando descia aquele morro de bicicleta. O vento no rosto, o frio na barriga. A sensação tão certeira de que o mundo estava a minha disposição e ser feliz não gerava nenhum esforço. Eu era feliz sobre o muro, sobre a árvore, sentada a janela ou comendo o doce da Rosa.
                Em União a felicidade era sempre servida à mesa. Nessa cidade eu encontrei abrigo no abraço de uma senhorinha cega, distribuí gargalhadas na AABB, eu vi meus pais pela primeira vez como pessoas de carne e tão vulneráveis. Em União nunca estou com fome. Nessa pequena urbe o amor é servido aos tachos.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

P A L I T O É M A i S C O N F I Á V E L...?

Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
                
                Amigo meu, contou-me um diálogo entre um cliente seu (ele é dentista) e um colega de profissão, após o término das obturações, feitas por seu colega, em alguns dentes do cliente, que trocou de dentista:
— Pronto, não haverá mais dores!
— E, agora, dr, o que farei?
— Passe a usar fio dental na limpeza dos dentes...
— Dr. Dei uma pisa em minha filha por que usou esse tal de fio dental!
— Ave Maria! Não faça isso, homem de Deus, hoje todo mundo usa o fio dental, pra vc. ver, eu, minha mulher e minha sogra, usamos e achamos bem melhor que enfiar um palito...
— Vôte, vocês enfiavam palito na bunda pra que? E vc. em quem sempre confiei, quer que eu substitua uma coisa que nunca usei, por outra, indecente?
—Seu idiota, está passando dos limites, respeite as pessoas que sempre lhe respeitaram. Não tolero maledicências, ainda que sejam por ignorância!
— Não sou ignorante, mas, palito não é, mais, pra palitar os dentes?
— Quer saber de uma coisa? Não estou pra perder tempo, vá à merda!
— Vixe, o homem zangou-se...
– Me ensine o caminho, que vc. já está nela...
— Seu filho de uma égua, vá pra pqp , antes que me esqueça!
— Credo, não sei com quem casei minha filha, nem parece com um doutor diplomado! Prucure sua mãezinha e peça perdão, filho disgramado...!
                Esse diálogo, muito pouco ilustrativo, fez-me inticar com meu amigo: “Você não deu o troco?”
                E ele, “não, deixei pra mais tarde, pra meter num amigo meu...” pois não é que, também, zangou-se?

ELIXIR


Isaias Coelho Marques

Amor
Amora
Amoral
Tua flor
Devora minha dor

segunda-feira, 31 de julho de 2017

CONVITES PARA FESTAS

Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira
  
  Não se dão festas como antigamente. As festas, que eram, mais, para o deleite do corpo, tornaram-se histórias, para alegria da imaginação...
  Fui convidado, por uma mente admiravelmente criativa, para saborear lembranças de meus tempos de criança, de gentes amadas que já se foram, de fogueiras que se pulavam e, hoje, não mais se acendem, de milho assado, pipoca, bolo frito, pamonha, difíceis de encontrar...
  Reler e cantar “Asa Branca’ e “A Volta da Asa Branca” fizeram meus olhos marejarem lágrimas...
  O festejador (ou festeiro?) Wilson Seraine é que merece uma festa por propiciar tanto contentamento aos que queriam conhecer melhor Luiz Gonzaga, com a narrativa de “A Festa da Asa Branca”!
  Já imaginaram imaginação mais alegre, com a “tirada” da Asa Branca, colocando um disco na radiola, cantando e dançando, à espera dos amigos convidados para sua festa?
  Quero mais, querido amigo, quero mais!

terça-feira, 11 de julho de 2017

MALASARTES E O CÃO...

Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira


Quem me contou foi o próprio Malasartes...               
             “Estava eu, como de sempre, à beira da estrada, fazendo minha famosa sopa de pedras, quando vi aquela pessoa bem apulumada se aproximar e pensei, comigo mesmo, mais um, pra eu ganhar mais uns vinténs”... e fui botando água na panela...
                Moço, quando o cabra chegou mais perto, oiei pros sapatos dele e vi foi uns pés de cabra, cruz, credo! E num tive dúvida, é o Capeta!... Mas desviei, logo, o oiar, pra ele não desconfiar, e joguei na panela uma mão cheia de alho, com um pouco de jasmim, pra despistar o cheiro e convidei o danado pra se abancar no chão, que não tinha tamborete, e provar um pouco da sopa, cheirosa toda, pagando só uns 500 réis, pelo prato...
                Pois aquele Cão ainda regateou do preço? Mas sou duro na queda, quando se trata de dinheiro, e embolsei os 500..
                O anjo mau, parece que não tinha comido nada no Inferno, porque, depois de pagar a sopa, jogou a bicha de goela abaixo, de uma vez só e, aí, ainda deu pra ouvir um grito: “Malasartes, filho da égua, dá jeito pra não ir lá pra casa quando morreres, pois essa, vais me pagar num fogaréu feito, especialmente, pra ti, safado!”
                Vai esperando, Cão dos infernos, que eu tenho uma madrinha forte, e, de ti, tou escapo!
                “E, nunca mais, vi aquele traste...”!
                Prometi contar esse causo no “Brogue da Tia Corina”, mas, por via das dúvidas, postarei, também na minha Linha do Tempo, do Facebook.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

SOUL


Isaias Coelho Marques


Sou nada mais
Que ninguém
Alguém a mais
Na multidão
Carregando 
Cruz e solidão
Sou mais
Que o que
Comporta
Essa porta
Aberta
Para o não.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A PRAÇA NOEL ROSA*


Em 04 de junho de 2017 por Daniel Cariello**

 PrefáciodaCarolNogueira:

   A título de prefácio, antecedo a crônica do Daniel Cariello com um comentário: o texto da semana dos nossos dois colaboradores chegaram às nossas caixas de correio na semana passada com uma coincidência incrível. Tanto Zuzu quanto o Dani abordavam exatamente o mesmo tema em suas colunas – o samba do SCS. O Dani achou que a coincidência derrubaria a crônica dele. Eu acho o contrário. Que não existem coincidências – e que esses dois textos e fotos sobre esse lindo encontro semanal significa muita coisa.
A Praça Noel Rosa, por Daniel Cariello
   Colocaram uma pedra no centro de Brasília, o Setor Comercial Sul, pra marcar a ocupação da área pública por seu real proprietário, o povo. Pedra reinaugural simbólica: “Todas as sextas-feiras, das seis da tarde à meia-noite, esse lugar passará a ser chamado Praça Noel Rosa”, declarou um deles, preenchendo o copo dos cúmplices, mais do que parceiros, e puxando na voz um samba: “podem me prender / podem me bater / podem até me deixar sem comer / que eu não mudo de opinião / daqui do morro eu não saio, não”.
   Puxaram na voz o samba Opinião, dividindo o microfone, compartilhando a praça e a música com quem quisesse se instalar para tomar um trago antes de enfrentar a volta para casa. E com quem chegasse pra ali ficar até soar o último acorde da noite.
   Partilharam a praça e a música com trabalhadores dos escritórios, consultórios, cartórios e outros ofícios notórios, desses que povoam os centros das cidades. Com atendentes, gerentes e delinquentes daquela redondeza. Com amigos e amores, com crianças e cantores, com senhoras e senhores.
   Completaram o copo dos cúmplices com a companheira cachaça do Eliseu, trazida pessoalmente pelo dito-cujo. E entoaram a canção composta em loas à aguardente artesanal, jurando que “é coisa pura, curtida no barril de pólvora e faz subir a nossa temperatura”. Só tocada quando a dupla, Eliseu e sua cana, se faz presente. Felizmente, para músicos e público, o comparecimento tem sido alto.
   Emendaram uma música e uma cachaça em outra música e outra cachaça e invocaram Cartola, Vinícius e Clara, Clementina, Baden e Nara, mortos e vivos, ilustres e obscuros, todos, a baixarem por ali para tomar posse do microfone, da mesa, da Praça Noel Rosa, do centro, da cidade.
   Bicaram mais uma vez a cerveja gelada, para as palavras e melodias escoarem mais facilmente. Abriram espaço para a dança da mendiga, que não perde uma edição do evento. Tomaram cuidado de não irritar o Barreto, pois o fornecimento de espetinhos precisa continuar. Esticaram um pouco o horário, atendendo pedidos de fora e de dentro da mesa. Permaneceram por lá até depois do fim da festa, só pra prosear um pouco mais.
   Ocuparam, convidaram e cantaram. Ensaiaram, compartilharam e resistiram. E como o samba guarda um pé no passado – ou na tradição – e um olhar para o futuro, enquanto tocam, vão embalando em música a transformação de um espaço no coração de Brasília.
* Publicado Originalmente no Site Quadrado Brasília, em 30/03/2017

**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br


PAPEANDO, ANANDA, NADA MAIS...

Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira

O espírito e o fantasma
   O espírito de Ananda gosta, pouco, de ficar parado, escutando o que se fala, normalmente, em reuniões de família, ou de amigos, sempre o já esperado... Prefere sair de seu corpo e voar, sem compromissos, livre, para melhor conhecer, e descobrir, pra que serve a vida e tudo que a envolve!
   Não é um fantasma, como “o espirito que anda”, dos antigos Gibis, que, para que os bantos e zulus acreditassem nele, se passava por eterno, através dos seus descendentes e, por isso mesmo, nem fantasma era...
   É, apenas, um estudante, um pesquisador, um descobridor, que se encanta com suas descobertas, encantando, por sua vez, quem encontra o que deposita na sua prisão, “O Vestido”
   Por falar em fantasmas, não confundi-los com as aparições: enquanto os fantasmas sempre aparecem vestidos, com vestimentas do nosso conhecimento, pois são de pessoas que já se foram, as aparições são assombrações, criadas pelo imaginário popular, e nada têm a ver com nossos entes queridos, ou devedores. Delas, eu me pelava de medo, principalmente, da “mula sem cabeça que botava fogo pelas ventas”... Valei-me, Nossa Senhora, Mãe de Deus!!
xxx
   Por falar em vestido, querida sobrinha-neta, queres botar um vestido branco num espírito? Vou meter o meu bedelho onde não devia: deixa teu espírito em paz e demonstra teu carinho, teu amor e tua saudade de tuas avós dando uma baita festa e usas o vestido branco, com os anéis, que elas te deram... O sentimento que não sabes descrever vira o puro amor!
xxx
   Por favor, Ananda, tira da cabeça essa história de monge budista. Não mates teu espírito que voa, todos os que adoram viver irão sofrer muito com sua falta! Tu dissestes, “caminhar é conversar” ... Sabes de uma cousa, menina,? Eu caminho a semana toda, às 05h20min, e converso comigo mesmo, com vigias meus amigos, com moradores de rua, com minha cadela acompanhante, com os passarinhos que começam a cantar, com a praça que me acolhe, e chego em casa, ás 06h10min, leve, leve e sem cansaço!
xxx
   Aí, dizem que estou caducando... Morro de rir, caducar é coisa gostosa!

sábado, 3 de junho de 2017

MONOGRAMO

Ananda Sampaio

 Quem nunca morou na própria impossibilidade não sabe o que é sentir-se desabrigado. O voo é amador, mas é um voo.  Mesmo sob risco constante de mais uma queda. [A paisagem é minha].

 A impossibilidade passa então a ser mais um abismo atravessado, mesmo que de maneira atravancada. Morar na impossibilidade é estar preso no purgatório – habitar um lugar que entre os quase vivos e mortos não se salvam todos.

 Os olhos atentos e globais do meu gato me observam. Até ele parece acreditar numa solução [até ele quase sempre tão alheio me diz sim]. O corpo pesa e sobre os ombros parte da minha vontade é sentida. Parte da minha vontade se estende e se alavanca. Suspenso. Além das rotas, dos dias e das tarefas. Levita, se interpõe e é quase dono de si. Quase absoluto e quase consegue superar o mundo.

  Quase.

 É preciso perder a conta, perder o medo, perder o chão, perder o controle. Por fim, perder-se  labirinticamente. Perder a língua e a fala. Fazer malabarismos de silêncio. Perceber que mesmo quando tudo está quieto, ainda há movimento. O mundo está subcutâneo. A correr por debaixo da terra. A vida mesmo quando calada se move nas pontas dos pés [ensurdecedora]

Atravesso desertos.

domingo, 28 de maio de 2017

SAUDÁVEL


Isaias Coelho Marques


Faço siderurgia
Dentro de mim
Transformando
O pensamento
Ruim
Em dor
Inoxidável.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

TEIMOSIA*


Ananda Sampaio**
                Fiz questão de colocar meu livro na estante abraçado ao teu. De alguma forma, agora nossos universos se cruzam. E eu, mesmo sendo uma escritora rota, no fundo do nordeste, posso dizer que agora estou na fileira de mulheres que escrevem e que publicam no Brasil continental. Confesso que não tenho muitas pretensões. Já sou uma leitora dos grandes e isso já é dádiva demais num país de analfabetos e parcos leitores.
                Sei que agora estamos ainda mais próximas. Não mais como escritora-leitora, mas como escritoras, escrevinhadoras de histórias, delirantes da terra, incapacitadas para a vida que não se percebe. Peguei a tua lupa emprestada e depois que te li, descobri que a vida se faz nas pequenas tolices do cotidiano. Naquilo tudo que se localiza num país esquecido, no músculo cardíaco e quase silencioso, acontece na correnteza das minhas veias e nos gestos dos rostos que amamos, mas que não podemos jamais tornar banais.
                Ainda acho estranheza na minha mãe e ira no meu pai. Uma ira mais gelada, sem dúvida, mais ainda assim, um vulcão de dor que explode sem muito barulho. Ainda estranho a minha mãe, mesmo sendo tão conhecedora de suas entranhas. O jeito que segura a vida, me lembra aquelas rochas nas quais a onda do mar se quebra.
                Na minha insensatez e descrença publiquei um livro só para que pudesse ficar mais perto de ti, para que pudesse me fazer de tinta e papel. Talvez ninguém me leia. Carrego essa angústia agora. Eu que tanto quero falar talvez não tenha voz suficiente nem para cruzar o rio Parnaíba. Uma mulher, no nordeste quase recôndito, numa cidade quente e quase nunca lembrada, escreve. Porque se não escrever a vida será um silêncio aterrador.
                Não suporto mais os silêncios das mulheres que vieram antes de mim. Quero causar algum mal estar, trazer desaforos, desnudar a poética que tem mãos de aço para uma poética que não apenas fale de flor, mas que seja flor. E flor só pode ser mulher. Mulher é solo. Desculpa, Lygia pelo desabafo.
                Contudo, eu precisava te dizer. Escrevo como se orasse, a diferença é que não oro mais baixinho. Decidi. Decidi. Não vou gastar minha voz apenas para unir laços familiares e equilibrar os desafetos familiares. Quero usá-la para a política, para os palavrões, para alimentar, mesmo que erroneamente, o raquitismo de minhas emoções.
*Repositório de rascunhos de uma aspirante. @coletivoleitura
**Autora do livro de crônicas O VESTIDO, à venda nas Livrarias Entrelivros e Margarida e também na loja Toccata.

domingo, 21 de maio de 2017

sexta-feira, 19 de maio de 2017

QUESTÃO CAVALAR*


Daniel Cariello

— Bonjour.
— Bonjour. O que vai querer hoje?
— Trezentos gramas de carne moída.
— Très bien. Du steak haché. De boi ou de cavalo?
- Comment?
— Perguntei se o senhor quer carne de boi ou de cavalo.
— Como assim, de cavalo?
— Cavalo. Aquele animal que relincha e mostra os dentes. Muito visto nos filmes de bangue-bangue americanos, quase sempre com um índio em cima.
— Que por sinal acaba sempre morrendo.
— O cavalo?
— O índio, no caso. Ainda mais se o John Wayne estiver no filme.
— Pois bem. O senhor conhece o animal.
— Que animal, o John Wayne?
— Não, céus, o cavalo!
— Pessoalmente, de frequentar a casa, telefonar, dividir uma cerveja, não. Mas sei do que você está falando.
— Então, qual carne moída você quer?
— Como vocês conseguem fazer isso?
— Não é difícil. Tem uma máquina bem ali que mói.
— Não é disso que eu falo.
— E do que é?
— Como vocês têm coragem de comer carne de cavalo?

domingo, 14 de maio de 2017

OBRIGADO, MENINA.


Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira


Estou enganando a mim mesmo...

  Costumo dizer que, nas minhas rodas, um de nossos assuntos é falar da vida alheia e que, nisso, eu sou o cara!
  Um amigo, que se diz tio-avô de uma menina chamada Ananda, apelidou-me, uma vez, de Mago Manu e eu, a partir de então, fico botando força para adivinhar o futuro, como se isso fosse cousa do outro mundo...
  Monteirinho, mais conhecido como Antônio José de Oliveira Monteiro, criou, neste Face, um tal de Brogue da Tia Corina, onde seus amigos, inclusive este escrevinhador, escrevem o que lhes vem na cachola, em forma de poesias, crônicas, contos, anedotas, para esvaziar, um pouco, suas lembranças e garantir vagas para as que vêm fugindo das suas saudades...
  Parece um mercado Troca-troca especial, pois ao tempo em que é individual, passa a ser do mundo todo!
  Mas, voltemos ao assunto que me trouxe a cumprir minha sina de tagarela... Já conhecia Ananda do ano passado, como colaboradora do Brogue. Mas, agora, que já li, vorazmente, 70 páginas, das 140 que compõem "O VESTIDO”, decepciono-me por reconhecer que a casa dos 30 parece ser mais generosa que a dos 80...
  Não vou, de agora em diante, me gabar de falar da vida alheia, a menina falou da vida de todo o mundo, e melhor, sem citar um nome, pois, todo o mundo, é a humanidade! Se procurarmos, nos acharemos lá, surpresos e embevecidos!
  Não me reconheço como um mago, cheio de mágica e de truques, pois uma feiticeira, muito mais poderosa que eu, e meu amigo Merlim, acaba de se apresentar, encantando os que a tiveram visto tirar de si própria, reunindo em páginas, o seu amor à vida, aos viventes e aos que já se foram, numa magia que dá de volta, a cada um de nós, o nosso passado e o todo da nossa própria vida!
  Teria muito, ainda, a falar, especialmente, com ela. Mas, o seu livrinho, o seu livro, o seu livrão, me chamam...
  Obrigado, menina Ananda, por esse presente, com a certeza de que outros virão!

terça-feira, 9 de maio de 2017

O VESTIDO DE ANANDA


A. J. de O. Monteiro
               Ananda é minha sobrinha-neta (é que a mãe dela casou muito cedo e muito cedo a concebeu). Nessa época morava em Brasília (eu) e nossos encontros ocorriam esporadicamente, quando vinha a Teresina em férias anuais. Vi-a bebê, criança, adolescente o que não favorecia a aproximação dado a diferença de idade e, em consequência, interesses diversos. Mesmo nas reuniões familiares, que naqueles tempos eram mais frequentes, mantínhamo-nos em grupos separados. Ela com seus primos e afins e eu com os adultos, ou seja, para usar uma expressão em moda, cada um no seu quadrado. Mas, mesmo assim era impossível não notar aquela garotinha esguia, de olhos negros vivazes, irrequietos... Perscrutadores, mesmo!
               O tempo passou, voltei a morar em Teresina, transferido no trabalho e Ananda estudando, trabalhando e agora casada, com as obrigações próprias manteve nossos contatos na mesma inconstância, até nos encontrarmos em rede social, onde pude perceber um pouco quem na realidade é Ananda. Ananda é diferenciada da “tribo”. Suas postagens, a maioria de interesse literário, com pequenas mais consistentes resenhas livros que lera, bem como reproduzia trechos desses mesmos livros. Vi que Ananda queria compartilhar suas experiências, no intuito, creio, de estimular mais pessoas ao hábito da leitura. Fazendo isso com diversos autores e inúmeras obras, não disfarçava, no entanto, sua predileção por Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector (bom sinal, não?).
               O livro de Ananda – O VESTIDO – não foi surpresa para mim, pois já lera duas ou três crônicas suas disponibilizadas no @coletivoleituras, do qual é integrante e onde, ao fim das postagens anotava como referência pessoal: “Jornalista, estudante e aspirante (suspirante) escritora”. Deixando claro sua disposição de produzir um livro e que bom que o fez.
               O VESTIDO é um livro de crônica, mas, como Ananda, diferenciado. Nelas (crônicas) ela fala de suas angústias, dúvidas, perspectivas e expões suas impressões sobre o mundo e pessoas enquanto narra fatos do cotidiano, do trivial da vida. Da infância, da adolescência e da vida adulta. De coisas que ficaram em sua mente, gravadas como as tatuagens em seu corpo (com licença, Chico). Fala sim, do cotidiano, do trivial e de pessoas amadas ao seu derredor, mas sem pieguice. Ela pega esses momento e, como que reformando um vestido velho, aplica-lhes “uma renda na frente, uns canutilhos e pedrinhas bordadas” oferecendo um excelente livro que, sem receio de parecer um tio coruja, digo: vale a pena ser lido!

P.S. O livro está à venda na livraria Entrelivros e na loja Tocatta.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

JOUE-NOUS RAOUL!*


Daniel Cariello

                Tem coisas que não dá pra traduzir. Por melhor que você chegue a falar uma segunda língua, existem expressões que necessitariam de tanto tempo para serem explicadas que é melhor nem tentar.
                Isso não sai da minha cabeça desde que estava em um festival em Paris e, no meio da muvuca, alguém deu um grito. Uma espécie de senha-para-se-reconhecer-brasileiro-em-show-de-rock-em-qualquer-parte-do-mundo. O "toca Raul!" saiu esganiçado, quase desafinado, mas era um "toca Raul!" legítimo, bem audível.
                Como explicar para um francês todo o significado socioanárquico-místico-irônico-contracultural da expressão?
— Não dá pra explicar.
— Tenta.
— O Raul Seixas é um músico baiano, um pioneiro do rock brasileiro.
— Então as pessoas querem escutar as músicas dele no show?
— Não é isso.
— E por que pedem para tocá-las?
— Elas não estão pedindo para tocá-las. Só estão gritando "toca Raul!".
— Não entendo.
— Eu disse que era complicado.
— Continua.
— O Raul Seixas fez muito sucesso nos anos 70, principalmente pelas músicas em parceria com o Paulo Coelho.
— Paulo Coelho, o bruxo adorado aqui na França?
— O próprio.
— Já até imagino. Eram músicas de meditação, de elevação espiritual, né?
— Na verdade, muitas eram de adoração ao “coisa ruim”.

terça-feira, 2 de maio de 2017

O CANÁRIO E OS PRÉ


A.J. de O. Monteiro
                Era então um jovem, fogoso e inexperiente canário da terra. Há pouco tempo dera meu primeiro Voo e ensaiava os primeiros trinados necessários à conquista de uma companheira. Passava meu tempo voando pela imensidão, parando apenas para alimentar-me com o que a natureza me oferecia à sobeja: sementes e pequenos insetos; parava também para ouvir o canto dos adultos, aprendendo com isso todas as notas que tornam nossa espécie tão admirada.
                Certo dia, esvoaçando a esmo, avistei, no chão, o que me pareceu um lauto banquete. Uma pilha de sementes, ali, a minha disposição... Inexperiente, não titubeei, desci em voo picado, aproximei-me saltitante e comecei a comer avidamente. De repente – vupt – tudo escureceu. Aturdido tentei alçar voo, mas esbarrava em barreiras sólidas. Uma pequena réstia de luz surgiu para minha animação, mas, juntamente com a luz, surgiu uma enorme mão que me agarrou firmemente, a ponto de quase sufocar-me. De nada adiantaram meus guinchados nem as bicadas que desferia naqueles dedos que me pareceram insensíveis à dor.
                Trancado em pequena caixa, percebi estar em deslocamento sem saber para onde, e nem por que razão era submetido à tão cruel tratamento. Mesmo, até então, conhecendo apenas o lado bom da vida, pressenti que o pior estava por vir.
                Cheguei a um lugar onde reinava o caos: pregões aos berros, guinchados desesperados e cantos indistintos de diversas espécies engaioladas. Eram cantos tristes, dolentes... A mesma mão que me prendera agarrou-me novamente e soltou-me numa enorme gaiola atulhada de pássaros, alguns mortos e outros em agonia. Se existe um inferno, pensei, aqui é a antessala: Suja, mal cheirosa... A comida, de péssimo aspecto era jogada no “chão”, misturada às fezes e aos pássaros mortos. Passado algum tempo me dei conta de que aquilo não era a antessala, era o próprio inferno. A comida, como disse, imprópria para o consumo e a água, insuficientes, eram disputada à bicadas, pernada e asadas, tornando o ambiente ainda mais caótico... Insuportável! Sem fome – pois me alimentara bem antes de cair na armadilha – empoleirei-me o mais alto que pude para observar melhor o ambiente exterior. A balbúrdia era ainda maior que aqui dentro. Pessoas caminhando de um lado a outro, gesticulando e falando alto. Ora paravam para observar os pássaros; compravam ou seguiam em frente em suas avaliações. Pareciam todos entendidos do assunto. Pilhas e pilhas de gaiolas expostas à venda, das mais simples as mais sofisticada. Havia gaiolas para todos o gostos e bolsos. Distraído, não vi aquela mão entrar na gaiola e novamente subjugar-me, agora para ser entregue ao comprador. Este me colocou em uma caixinha de transporte mais confortável, asseada e melhor arejada que a que me trouxe. Novamente em movimento, afastando-me do barulho e mau cheiro da feira. Não demorou, chegamos ao que imaginei ser o ponto final da jornada. Fui então transferido para uma gaiola grande – daquelas mais sofisticadas que vira na feira – e sem nenhum outro pássaro além de mim. Em que pese certo alívio, não me alegrei. Ainda era uma prisão; bonita, mas uma prisão. Indaguei-me: estarei para sempre afastado do meu espaço natural? Das árvores e do convívio com meus semelhantes em liberdade? Era o que me parecia...

segunda-feira, 10 de abril de 2017

PATETA


Isaias Coelho Marques

Poesia
São palavras
Descontroladas
Mal amadas
Pretensamente
Organizadas
Por esse esteta:
O poeta!

sábado, 8 de abril de 2017

A GUILHOTINA DE LISBOA*


Daniel Cariello**

Uma revisão histórica (tem coisa mais na moda do que revisão histórica?) atribui a invenção da guilhotina não aos franceses, mas sim aos portugueses. Os patrícios de Robespierre teriam-na apenas aperfeiçoado, ao descobrirem que ela dificilmente funcionaria em Portugal.
– Manoel!
– Ó pá, Joachim!
– Está cá?
– Não, estou lá.
– Então venha cá, ora pois.
– Pronto. Cá estou, Joachim.
– Pois diga-me o que é isto?
– Só digo se primeiro me disseres porque te chamas Joachim com ch.
– Não enches, Manoel. Estamos em Lisboa, no século dezoito. Queria que me chamasse como, José Sarney?
– Tens razão. Sempre pode ser pior.
– Sempre, ó pá.
– Mas afinal, o que é essa geringonça?
– Chama-se tomba lâmina, moderníssima invenção.
– Serve para quê, ó Joachim?
– Dizem que é para cortar o bacalhau mais rápido.
– E como funciona, ó pá?
– É simples, ó Manoel. Primeiro, rodas as pás dessa manivela até a lâmina suspender-se. Segundo, colocas o…
– Não entendi.
– O que foi agora, Manoel?
– Dissestes que devemos rodar as pás da manivela ou que devemos rodar, ó pá, a manivela?
– As pás, ó pá.
– Pois sim.
– Posso continuaire?
– Pois não.
– Segundo, colocas o bacalhau aqui. Terceiro, soltas as pás. Quarto, retiras o bacalhau já cortado e o levas para a Maria cozinhá-lo.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

ÓCULOS BIFOCAIS*



 Daniel Cariello**

  Talvez seja melhor você usar óculos bifocais, sentencia o oftalmologista, cujas palavras ganham ainda mais peso por precisarem abrir espaço entre os prateados fios de seu bem fornido bigode para poderem escapar da boca, um bigode desses merece ser escutado com atenção, penso eu, de dentro de minha rala barba.

  Bifocais, doutor?, bifocais, meu jovem, levanta o olho pra ver longe, abaixa pra ver perto, serve pra admirar estrelas e ler livros, você está com a vista cansada, passou dos quarenta, daqui pra frente só vai piorar, vaticina o dono do vetusto esfregão suspenso sob as discretas ventas, um oftalmologista que não usa óculos, fato que me faz voltar sobre minha primeira impressão e coloca uma dúvida sobre sua experiência no assunto, pois nesse mundo não se pode menosprezar a importância do empirismo.

  Adivinhando o meu pensamento, ele diz vou te provar novamente, lê ali aquelas letrinhas na parede, F, O, R, A, T, E, M, E, R, respondo, e agora as miúdas nesse papel, G, O, L, P, I, S, T, pode parar, a intenção é ótima, mas não é nada disso que está escrito, pra corrigir, só mesmo com duplo foco, vai fazer ou não vai fazer?

  As palavras do médico possuem a densidade e a imponência do bigode que atravessam, mas nem assim me convencem, depois de aceitar óculos bifocais, penso, a decadência é rápida e o passo seguinte será fraldas geriátricas, doutor, vamos fazer só pra ver de longe, tem certeza?, tenho.

  Uma semana depois, o sujeito da ótica liga, seu Daniel, seus óculos estão prontos, ele diz, pode vir buscar, vou buscar, experimento, só vejo longe, aqui na frente ficou tudo embaçado, é isso mesmo?, reclamo, é isso mesmo, o sujeito da ótica responde, pra ver de longe e de perto tinha que pedir pro oftalmologista receitar bifocal, fuck!, calo.

  O sujeito da ótica levanta os ombros e os cantos da boca em demonstração tanto de solidariedade quanto de não posso fazer nada por você, seu Daniel, coloco os novos óculos, tropeço na saída da loja, não vejo o maldito degrau, tiro os novos óculos e os guardo na caixa, onde agora descansam a maior parte do tempo, ficam tanto por lá que já nem sinto mais falta deles.

  Isso me leva a crer que, apesar dos fios brancos do doutor Bigode e de todo o conhecimento da medicina, minha visão entrou numas de melhorar, rio feliz, enquanto perco novamente o ônibus, essas placas com os números estão cada vez menores, diabos.

* Publicado Originalmente no Site Quadrado Brasília, em 30/03/2017
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br