Ananda Sampaio
Tenho
um avô que veio do Pernambuco para tentar vida no Piauí. Uma bisavó paraibana
que cresceu órfã morando de favor, um bisavô misterioso vindo do oriente médio
que assim como apareceu, desapareceu um dia. Li, em algum lugar, que a primeira
sina do nordestino é não saber se vai ou se fica. Tentar a vida longe e um dia
retornar à terra natal com a vida ganha. Coisa que quase nunca acontece. Muitos
dos que vão não voltam mais. E muitos dos que ficam, sonham com a vida que
nunca terão.
Viver
é uma perseguição sem fim. E para quem nasce em terras áridas como a nossa a
perseguição já está no DNA. Meu pai perseguia o Banco do Brasil, e assim íamos
para onde nos destinassem. E quis Deus, que um desses destinos fosse União, por
puro acaso, pois o alvo inicial era mesmo Teresina. Chegados de mala e cuia, de
cara fomos matriculadas, eu e minha irmã, na Escola Patronato Maria Narciso. Eu
estava com seis anos e, embora conhecesse algumas letras, não sabia ler. A
cidade que morávamos anteriormente não possuía a alfabetização.
Em
União descobri o casamento das letras e que a partir desses encontros nascem as
palavras. E assim fui decodificando o mundo e reduzindo minha angústia. Percebi
que não era tão difícil quanto imaginei. Nas ruas de União deslizei sobre minha
bicicleta lilás com cestinha a caminho da escola. Rezei e cantei os hinos antes
de entrar para a sala de aula. Participei da dança do côco vestida de menino
porque nenhum dos pares disponíveis me agradava.
Sem
saber, eu construí em União o arcabouço do meu paraíso perdido que é a
infância. E como bem diz Lygia Fagundes Telles, eu tenho escrito, desde então,
na tentativa vã de resgatá-lo. E mesmo sabendo que nunca conseguirei, que o
máximo que posso alcançar, são as minhas mãos tocando as paredes dos prédios
que ainda restam, não direi que é um exercício inglório.
Às
vezes não gosto de retornar a União. O peito aperta, a minha finitude se
escancara. E eu, boquiaberta, sinto perante os olhos a minha memória
desfragmentar-se. Vejo minhas lembranças serem contestadas pelas proporções
infantis que não correspondem mais a minha realidade adulta e tão mais exata.
Foi
no Casarão da Mãe Quelé que vi a vida passar sem medo. Eu não tinha medo. A
vida se deslanchava exatamente igual a mim quando descia aquele morro de
bicicleta. O vento no rosto, o frio na barriga. A sensação tão certeira de que
o mundo estava a minha disposição e ser feliz não gerava nenhum esforço. Eu era
feliz sobre o muro, sobre a árvore, sentada a janela ou comendo o doce da Rosa.
Em
União a felicidade era sempre servida à mesa. Nessa cidade eu encontrei abrigo
no abraço de uma senhorinha cega, distribuí gargalhadas na AABB, eu vi meus
pais pela primeira vez como pessoas de carne e tão vulneráveis. Em União nunca
estou com fome. Nessa pequena urbe o amor é servido aos tachos.