Daniel Cariello**
Carnaval esse ano?, não tô no clima,
ainda mais com esse baixo astral em alta no país, vou passar rapidinho em um ou
dois blocos, porque não tem como fugir e não quero parecer ranzinza, chego,
tomo uma cerveja, canto oh, jardineira, por que estás tão triste, mas o que foi
que te aconteceu?, tomo mais uma cerveja e o rumo de casa, vai ser assim, se
vai.
Chegou convite pra concentração
pré-carnaval na casa de amigos, prédio ao lado do meu, primeiro andar, o bloco
se reúne embaixo da janela deles, depois do almoço, perfeito, dá pra ficar de
camarote, cumpro a meta e nem preciso descer, pra você ver como me esforço, até
coloquei uma camiseta bem colorida dos Beatles, tá mais do que bom.
Já dá pra ouvir a música na rua, vou
levar duas garrafas grandes de cerveja, não, vou levar três, não quero beber
muito, mas o pessoal pode animar e ninguém gosta quando falta bebida na festa,
bom, vou levar logo quatro, na pior das hipóteses, se sobrar, fica pros donos
da casa, ou então a gente bebe junto outro dia, quando o carnaval tiver
passado.
E aí, tudo bem, cheguei tarde?,
aqui, cinco cervejas, põe no congelador, se eu quero purpurina e máscara?, vai,
purpurina, mas máscara não rola, tá bom, vou guardar no bolso pra uma ocasião,
se ela chegar, mas não acredito muito nisso, ei, e aquela cachacinha em cima da
mesa, posso provar?, é da boa, desce esquentando, agora preciso de uma gelada,
pra esfriar a garganta.
O bloco também esquentou, dá pra
ouvir como se estivesse dentro do apartamento, vou dar uma espiada da janela,
quanta gente!, todo mundo fantasiado, olha aquele homem aranha, coberto da
cabeça aos pés, deve estar derretendo, mais esperto e menos criativo é o
nadador, só de sunga, touca e óculos, sete, oito, nove mulheres maravilha, dez,
não, onze, sei lá quantas, esses músicos são bons, hein?, ó ali o Zé Luís e o
Pedro com sua eterna clarineta, ei, Zé, não ouve, claro, mas me viu, se eu vou
descer?, acho que não, aqui tá bom, a enfermeira acha que eu faço mímica pra
ela e vira a esquina dando tchauzinho.
A campainha toca, a porta se abre e
entram dez pessoas, de onde elas saíram, quem são, e o que é esse Cordão das
Mulheres Rycas?, e esse cara vestido de segurança, que figura, a sineta soa de
novo, outra dezena de rycas adentra, o segurança controla a passagem do grupo,
mais cinco minutos e a terceira onda chega, dessa vez já é o segurança que abre
a porta e diz pra irem se acomodando, o banheiro é à esquerda e a cozinha fica
no fim do corredor.
Uma filial do bloco se apropria do
apartamento, tiro a máscara do bolso e a visto, segurando o copo de cerveja
entre os dentes, tenho a impressão de que ninguém conhece mais ninguém, viro
outra cachaça, e em meio a aperto, suor, lantejoula, fumaça, serpentina e quem
é você, adivinha se gosta de mim?, o carnaval chega e arrebata a todos como uma
força da natureza, arrastando de forma impiedosa rycas, anônimos, piratas,
bailarinas, bêbados, crianças, palhaços, roqueiros, toda a gente para a rua,
porque a vida é curta e o carnaval mais ainda.
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*Publicado originalmente há um carnaval, no Quadrado Brasília