quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O VELHO, O MENINO, A PROFESSORA E O SOL




Aos líricos é permitido ignorarar as leis da física.

A. J. de O. Monteiro
Saindo da oficina do protético, após receber minhas novas próteses dentárias, deparei com uma cena do cotidiano da nossa cidade, só que, desta vez, de uma perspectiva diferente: O velho pároco saia para sua rotineira caçada a pecadores. Vinha correndo, badalando sua sineta, acompanhado do fiel sacristão que sacudia furiosamente uma matraca. Tudo normal, tudo corriqueiro, até que de repente o sacerdote tropeça no calçamento irregular indo dar de cara com o chão, indo sua surrada batina parar à altura da cabeça, deixando à mostra suas canelas secas e sua derrière descarnada. Pasmem, o reverendo não usava roupas de baixo! Sem conter a gargalhada corri para acudi-lo juntamente com o sacristão que também ria desbragadamente. Ao ter-se em pé novamente, sacudiu o pó da batina, voltou-se para o sacristão e esbravejou: “Como ousas debochar de teu superior, desgraçado? Quando voltarmos vou prescrever-te tão severa penitência que te arrependerás do dia que nasceste.” Voltando-se para mim, vociferou: E o senhor, seu Luís, muito me admira, com toda sua representatividade social, zombando de um ministro de Deus! O senhor não sabe que sou investido de poderes de absolver ou condenar os pecadores? Muito me admira senhor Luís, essa atitude pode lhe valer também uma penitência muito pesada”. Bufou duas vezes, persignou-se e berrou para o sacristão: “Vamos canalha, estamos quase a perder a melhor hora de caçar pecadores. Eles ainda estão cansados de tanto fornicar...” E retomou a sua insana e inócua faina. Ele, à frente, com sua sineta, seguido do sacristão com a matraca.

Ainda sorrindo continuei meu caminho de volta para casa, atravessando a praça lindamente arborizada, que tantas e tão boas lembranças me traziam à mente. Desde minha infância, a praça e minha casa se mesclavam, uma era a continuidade da outra.
Atravessei a praça cumprimentando rapidamente os conhecidos, enquanto pensava naquela carne de sol que minha mulher ficara preparando e que há muito tempo não saboreava devido as limitações dentárias. O protético demorou muito na confecção das “chapas.”
Chegando a casa, despi-me da roupa de sair e vesti o velho e aconchegante pijama listado, peguei a cadeira de balançar já amoldada ao meu corpo pelo tempo de uso e fui para a calçada de pedras como todo o tempo o fiz. Dalí, com um dos pés no assento da cadeira e o braço repousado sobre o joelho, esperava as visitas de todos os dias, com as quais, prazerosamente, discutia os mesmos velhos temas da cidade, como se fossem novidades.
Logo, logo, surgiu, vindo das bandas do rio, o filho das águas, assim chamado porque ninguém lhe conhecia a origem, de onde viera ou quem eram seus pais. Simplesmente apareceu e tornou-se filho de todos nós e todos lhe davam o que podiam, comida, roupas usadas dos filhos e ele nos pagava prestando pequenos serviços domésticos. É um tipo bizarro. A cabeçorra redonda é protegida por uma cabeleira que traz sempre grudada ao couro por uma camada de lama colhida do leito do rio. Só não lhe davam sapatos pois nenhum lhe servia: Tinha os pés achatados e largos como os pés das aves aquáticas.  Um dia perguntei-lhe a razão de passar lama no cabelo e ele respondeu: “Ah, seu Luís, não gosto de cabelo esvoaçando...”
É muito crédulo, o menino, toma por verdade tudo que se lhe diz e disso se aproveitam os debochados da cidade para aperreá-lo. Outro dia chegou-se a mim muito transtornado e gritando: “vamos rezar seu Luís, vamos rezar que o fim do mundo é prá já!” - O que é isso, menino? De onde tiraste esta estória? “Foi o seu Bilu da quitanda e ele não mente.” - Isso é invenção do Bilu, só para te aperrear. Por acaso não conheces as esquisitices do Bilu. Por acaso não sabes que ele se recusa a vender velas aos fregueses em dias de apagões alegando que velas tem que ser compradas antes como prevenção? Por acaso não sabes que dorme em quarto separado de D. Mocinha por não suportar a flatulência noturna da mulher, indo ao quarto conjugal apenas para servir-se dela? “Tá bom, seu Luís, como o senhor é mais velho e mais rico que seu Bilu, acredito no senhor.” Estranha noção de hierarquia essa do menino. E ele ainda me perguntou: “Como o senhor conhece essas intimidade de seu Bilu?” Foi o Pipira que me contou, menino. Nisso minha mulher chegou trazendo café com bolo frito, que ele comeu avidamente. Agradeceu e disse: “adeus seu Luís, agora vou pro banhado brincar com os peixes e trocar a lama do cabelo.” Desapareceu pelo beco e fiquei pensando no que sempre pensava após esses encontros: De onde veio e prá onde vai esse pobre menino...?
E assim transcorria a manhã, como transcorreram todas as manhãs de minha vida. Era um ir e vir de pessoas que passavam, paravam, proseavam um pouco, contando e ouvindo as mesmas estórias como se fossem novidades. Passava o Prefeito rumo à Prefeitura, como se fosse trabalhar, passava o juiz em direção ao fórum, como se fosse julgar, passava o médico, para o posto de saúde, como se fosse curar e passava, de volta, o velho pároco, seguido do sacristão, dizia: “Nada, seu Luís, o balaio do Senhor volta, mais uma vez, vazio.” E seguia em frente, cabisbaixo, resmungando em um Latim tosco: “Confiteo Deo onipotenti...”
Pouco depois surge o carteiro, suando as bicas, arqueado sob o peso da enorme bolsa de lona, onde, dizia ele, carregava boas e más notícias, esperanças e desilusões. Mas o que sempre trazia mesmo era uma largo sorriso estampado em seu rosto simpático e bonachão. Tinha ele a mania de anunciar-se aos destinatários das correspondências com um versinho repetitivos mas com rima diversificada, é assim: “Seu Luís-is, catibiribis, seja matutis, firifirifis; Seu Bilu-u, catibiribu, seja matututu, firifirifu”. E, nessa toada, entregava cartas e outras correspondências, sempre sorrindo e pensando na cervejinha de todos os dias, após a jornada.
Surge então, ao longe, a silhueta de quem mais ansiosamente eu aguardava todos os dias: A professora de todos nós. Carregada de amor e sabedoria, vinha ela com seus passos lentos, mas firmes. É sempre um grande prazer conversar com a Mestra que, quando em atividade nos ensinou tudo o que aprendeu na Escola Normal e hoje nos ensina o que a vida lhe ensinou. Ao chegar cumprimenta-me: Bom dia, Luís, sempre aí sentado em sua cadeira de observar o mundo, não é?” – Sim, Senhora Mestra, daqui vejo o mundo e o mundo me vê. E a senhora, como tem passado? “Como sempre, Luís, contando os dias para a última viagem sob o peso de minhas mágoas e frustrações.” – Mas que mágoas e frustrações, Mestra? A senhora é a mais importante personalidade desta cidade. A senhora foi professora de quase todos nós, de todas as autoridades políticas e administrativas que hoje regem o destino de nossa cidade, Todos lhe devemos o aprendizado de tudo o que conhecemos. A senhora de orgulhar-se disso. “Como orgulhar-me, Luís? Poucos aprenderam o que me propus ensinar. A maioria, principalmente esses políticos e administradores que você menciona, perverteram o que lhes ensinei... Ensinei-lhes as primeiras letras e hoje eles proferem discursos vazios e hipócritas; Ensinei-lhes a tabuada e as quatro operações e eles usam o conhecimento dos números para subtrair do erário, multiplicar seus bens e somar tudo para depois dividir com seus familiares e asseclas; Ensinei-lhes a ética e eles praticam a vilania; Ensinei-lhes a moral e eles vivem na promiscuidade; Ensinei-lhes o amor e eles disseminam o ódio; Ensinei-lhes a solidariedade e eles se tornaram egoístas. Ah, Luís, só não digo que meu magistério foi uma total perda de tempo porque uns poucos, como você, aprenderam e hoje praticam a vida honrada.” – Obrigado Mestra, balbuciei emocionado, mas acho que a senhora está sendo muito severa consigo mesma. “Não Luís, estou apenas avaliando, friamente, os resultados que obtive com o meu trabalho e constato, entristecida, que o resultado é negativo. Fez uma pausa e com um longo suspiro prosseguiu: Estou vindo do Notário. Fui deixar com ele minha carta testamento pois sinto a proximidade da morte. Sinto o bafo da sinistra senhora no meu congote.” - Nada disso, Mestra, a senhora me parece bastante saudável. “Qual nada Luís, estou chegando a termo...” - Em seguida confidenciou: “Em minha carta testamento expresso meus últimos desejos que são poucos, simples, mas irretratáveis. Deixo minha moradia e todos os pertences lá contidos para o Filho das Águas mas, como o pobre menino é considerado incapaz, nomeei você como tutor. Sei que você vai aceitar, por isso não lhe fiz uma consulta prévia.” – Espero demorar muito para assumir tal encargo... - E a Mestra prosseguiu: “Firmei também, na carta, minha vontade de que no meus velório e sepultamento, não se permita que nenhuma autoridade constituída faça qualquer pronunciamento, pois, como você sabe, não tolero hipocrisia. Por fim manifestei minha vontade de que minhas exéquias sejam ministradas por um padre de outra paróquia, pois esse magricelo que se arvora de representante de Deus, se não é conivente com essas falcatruas, é pelo menos omisso. Além do mais é elitista, pois como todos sabem, ele isolou e destinou os primeiros bancos da igreja aos políticos e aos ricos da cidade, provendo-os, inclusive de genuflexórios alcochoados onde eles praticam o farisaísmo.A final não quero chegar à presença do Senhor assim tão mal recomendada”
A vestuta senhora retomou seu caminho e, como sempre faz, uns cem metro à frente, recostou a mão em um poste, afastou as pernas e verteu copiosamente. Todos pensavam, até então, que tal atitude era consequência de incontinência urinária. Não é. Somente hoje, após seu desabafo, entendi a razão daquela atitude: não é uma questão de saúde, é uma manifestação de repúdio!
De repente o ar foi tomado pelo agradável cheiro da carne de sol assando na brasa e então me senti sonolento. Creio que dormi um pouco. Acordei tomado por um calor insuportável, como nunca sentira antes e, assustado, olhei prá frente e não vi a praça com suas belas árvores, também não vi a igreja, não vi minha casa e não mais senti o cheiro gostoso da carne de sol assando na brasa. Olhei prá cima e minhas retinas arderam ante o clarão. Olhei prá baixo e me vi sentado na cadeira de balançar, com o pé sobre o assento, a braço apoiado no joelho e minha cabeça tombada sobre o peito. Vi também muita gente ao meu redor: minha mulher, meus filhos e todos os meus amigos gesticulavam e clamavam. Não os podia ouvir mas percebia o desespero de todos.Tudo foi ficando cada vez mais distante, até tudo desaparecer... Até sentir-me totalmente envolvido por aquela luz... Já não sentia mais calor, apenas paz e a reconfortante certeza de que, nas manhãs de todos os dias serei o primeiro raio de sol a projetar-se sobre aquela casa para, penetrando pelas frestas do telhado, acariciar e beijar minha mulher e meus filhos e todos aqueles que amo.          

4 comentários:

Laura Oliveira disse...

Me emocioneiao ler O velho, o Menino, a professora e o sol. Convivíaminho aminho da solidariedade com o Seu Luiz durante 21 anos inesquecíveis da minha vida. Recebí dele carinho e amor. O Seu Luiz me deu exemplo, humildade, além de amor ao próximo e a Deus. Obrigada meu primo amigo, por escrever sobre o meu amado Pai, que esteve connosco mostrando o caminho da solidariedade, da humanidade, com alegria e felicidades

laura disse...

Foram 24 anos inesquecíveis de minha vida, ao lado do Seu Luiz. Aprendi com ele o caminho de ajudar ao próximo. Dele recebí amor e aprendi que a humildade é a maior qualidade do ser humano.

Luís Enrico Lima disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luis disse...

Senhor Luiz era meu bisavo e herdei seu nome com muito orgulho. Minhas vo Laura adorava nos divertir contando as suas historias