quinta-feira, 1 de agosto de 2013

TANTO AMOR... TANTO MAR...



 A. J. de O. Monteiro
                Amor, ah o amor. Essa sublime manifestação humana que atinge a todos os seres de diversas formas... Que cria, mas também destrói. Que se doa, mas exige reciprocidade. Quando imaginamos o amor nós o vemos sempre como o envolvimento de um homem e uma mulher e a perspectiva de felicidade embutida nos contos de fadas com o desfecho ideal do “...e foram felizes para sempre...” Esse sentimento tem inspirado a produção literária de todos os povos. Romances, contos, poesias, etc., tiveram como mote o amor. Em sua grande maioria, esses trabalhos literários reportam histórias dramáticas de encontros e desencontros, de superação de obstáculos e perigos, mas com o inefável final feliz. O amor se manifesta nos sonhos, nas aspirações, nas lendas, na mitologia e, como não poderia deixar de ser, na História. Amores reais, mas tão cantados e decantados que às vezes parecem lendários, como Cleópatra e seus conquistadores (?) romanos Júlio César e Marco Antônio, como Napoleão e Josefina, Pedro I e Inês de Castro e mais recentemente Domingos e Evita Peron, na argentina.
                Mas o amor também pode ser trágico, como o foi no caso dos franceses Abelardo e Heloísa. Também inspirou tragédias como em Romeu e Julieta, de Shakespeare. Da mitologia conhecemos o sofrimento de Orfeu e Eurídice, que se perderam, se acharam e se perderam de novo até reencontrarem-se na morte. Até na música moderna, como na saga do baiano Santo Cristo e sua amada Maria Lúcia, narrada em “Faroeste Caboclo”, de Renato Russo, o amor resulta em morte e dor.
                Em Teresina, entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70, embalado pelos sons dos “Brasinhas”, dos “Metralhas” e do “Barbosa Show Bossa”, nos salões do Clube dos Diários e do Jockey Club, floresceu o amor entre dois jovens de nossa sociedade. Ela, de ascendência árabe, de família com tradições fundamentadas no islamismo e ele, um brasileiro nato, de formação católica mas que se dedicava mais à vida mundana que aos rituais da Igreja. O namoro se desenvolveu como era próprio naquela época, obedecendo a um escalonamento de concessões, principalmente por parte das donzelas casadoiras. Primeiro permitia-se acompanhar do colégio até a esquina de casa conversando amenidade; depois as palestras estendiam-se um pouco mais até portão de casa, onde o pai da moça, mesmo que não fumasse, permitia-se pigarrear, para marcar presença. Depois já tendo sido convidado a entrar e tomar um cafezinho, o restante acontecia naturalmente: segurar a mão; o primeiro beijo; dançar de rosto colado e, por fim o “pino” numa esquina escura na volta pra casa depois da tertúlia... Com nossos heróis não foi diferente.
               Em nossa capital, naquela época, a Universidade Federal ainda incipiente, oferecia poucos cursos e pouquíssimas vagas nesses cursos, o que levava os estudantes concludentes do 2º grau, hoje ensino médio, procurar outros centros para prestar o famigerado vestibular e posteriormente alcançar o grau de doutor. Obviamente que somente aqueles de família mais abastadas tinham essa oportunidade. E dos estudantes que iam estudar fora, a grande maioria era do sexo masculino pois o machismo de então não consentia mulheres sozinhas em cidades estranhas. Salvavam-se aquelas que porventura possuíssem parentes em outras cidades.
                Em razão disso, as moças, não raro, exigiam dos namorados que iriam estudar fora, firmar um compromisso entre eles, envolvendo suas respectivas famílias, tentando, com isso, garantir seu amor ante os atrativos e liberalidades que se imaginava prevalecer nos grandes centros.
                No caso aqui narrado, o pai da donzela fez uma exigência que pegou a todos de surpresa: Que o pedido de noivado fosse feito em sua língua natal. Ora, para nós brasileiros, as línguas árabes soam como grunhidos ininteligíveis. Nosso herói ponderou que nem com alguns anos de estudo conseguiria fazer um pedido de noivado naquela língua. Reuniões, consultas, conselhos; até que alguém sugeriu que se perguntasse ao pai da pretendida se ele aceitaria um pedido por escrito. Não sem relutar o velho turrão aceitou o sugerido.
                Pesquisando nas cercanias do Mercado Velho, o rapaz tomou conhecimento da existência de um imigrante da mesma leva do pai da noiva, mas que vivia afastado da colônia por ter-se envolvido em negócios escusos. Informaram-lhe que o proscrito poderia escrever o bilhete em troca de algum dinheiro. E assim foi feito.
                No dia acordado para a formalização do noivado, o jovem pretendente, com o envelope contendo o pedido e acompanhado dos pais, dirigiu-se a casa da amada onde a família da mesma já os esperava com uma mesa repleta de delícias da culinária árabe. Após as mesuras e rapapés de praxe, o rapaz, com o coração a saltar pela boca, entrega o bilhete ao pai da pretendida que, com ar solene abre o envelope e começa a ler o bilhete. De repente para e, transfigurado, investe contra o rapaz desferindo-lhe bengaladas e grunhindo palavras em sua língua. O mancebo esquivando-se dos golpes foi arrastado pelos atônitos pais para fora da casa. Com o velho contido, e sem nada entender, tentou falar com a namorada que aos prantos, abraçada à mãe, negou-se ouvi-lo. Como uma aglomeração de curiosos já se formava, os pais resolveram deixar o local, retornar para casa e refletir sobre o incidente. Aquilo precisava de uma explicação: Teria o velho, por força da emoção, surtado?
                Ainda chocado, mas decidido a obter uma explicação, no dia seguinte o jovem dirigiu-se a casa da amada e foi repelido com veemência. Tentou contato com parentes da moça e foi mal recebido. O que fazer? O que estaria escrito nesse maldito bilhete que ele, apesar da confusão conseguira retirar das mãos do velho? Resolveu então procurar o “ghost writer”, cobrar explicações e, se fosse o caso, aplicar-lhe algum castigo. Foi preparado para uma conversa “grossa”. Na casa do proscrito, outro golpe. Encontrou uma multidão em volta da mesma e o miserável pendurado no teto da casa. No peito do suicida, um cartaz onde se lia em letras garrafais apenas uma palavra: PERDOEM-ME! A quem pedia perdão? Ao jovem? À sua amada? Aos pais dos dois ou, quem sabe, a todos a quem magoara ao longo de sua miserável vida?
                No desespero por encontrar respostas para sua aflição, o rapaz bateu em cada porta de árabes de Teresina. Ninguém o acolheu. Todos lhe viravam as costas. Tratavam-no com desprezo. Nem direito de se defender permitiam-lhe. E ele, carregando todo aquele sofrimento sem saber o porquê de tanto ódio, continuou irresignado.
                Após recorrer até a meios diplomáticos sem sucesso, tomou uma drástica decisão: Resolveu viajar ao país de origem dos seus desafetos onde pensava encontrar alguém que pudesse traduzir o malsinado bilhete e por um termo àquela angústia. Mais decepções. A quem apresentava o bilhete (levara várias cópias, por precaução), ou rasgava, ou devolvia sem olhar em seus olhos, ou vociferava naquela língua estranha, gesticulando ameaçadoramente.
                Certo dia, já desesperançado, chegou-se a ele um homem de gestos suaves e semblante bondoso, que se dizendo tocado por sua dor informou-lhe da existência de um eremita que vivia em um distante Oásis e que por ser de índole muito ruim talvez não tivesse qualquer constrangimento em traduzir aquelas repugnantes palavras. Nada lhe assegurava, mas talvez fosse sua única e última chance de obter as respostas que precisava. O bondoso homem ainda lhe indicou um beduíno conhecido para servir-lhe de guia na jornada pelo inóspito deserto, até o distante Oásis do eremita.
                Foram muitos dias sob um sol escaldante e muitas noites suportando um frio lancinante até que o silencioso beduíno parou e apontou para o horizonte. O rapaz apurou a vista e conseguiu ver um pequeno ponto escuro em meio a toda aquela areia. O beduíno, a través de gestos, disse-lhe que dali não passaria e ali o esperaria para conduzi-lo de volta à cidade.  Também com gestos o rapaz indicou que compreendera e seguiu entre confiante e pessimista.          
                Por fim, uma boa surpresa. Na entrada do Oásis, em pé, sorridente e de braços abertos um homem em nada parecendo um eremita, pelo menos do modo que ele imaginava um eremita, saudou-o efusivamente e em bom português: “Méo querido, que bom ver um compatriota. Venha, aproxime-se, deixe-me abraça-lo. Os bons ventos do deserto já noticiaram sua vinda e o motivo que o trás aqui. Vou ajuda-lo.” Ante o olhar surpreso do visitante, tratou de explicar: “Sou brasileiro de origem árabe. No nosso país exerci vários cargos públicos e fiz um bom “pé de meia”. Dai uns invejoso começaram a me perseguir, acusando-me de corrupto, sem nenhuma prova e eu, desgostoso e magoado, resolvi refugiar-me aqui para escapar da perseguição daqueles promotores que não fazem outra coisa que não seja perseguir políticos de sucesso.” “Mas venha, prosseguiu, passe-me logo o bilhete pois sei que você está ansioso para voltar e esclarecer todo esse imbróglio”. O jovem percebeu que o semblante do eremita, ao começar ler o bilhete, se fechou e temeu o pior. Achou que ele não iria traduzi-lo. Pensou consigo mesmo: É grave, muito grave o que está escrito aí, pois se nem um ex-congressista brasileiro quer traduzir, é gravíssimo. O eremita parou, fixou gravemente os olhos no perplexo rapaz e disse: “Misericórdia, Alá! Nem eu tenho coragem de proferir tais palavras... Vou traduzir por escrito, mas quero que você me prometa solenemente que só abrirá para ler a tradução quando chegar ao seu destino ou, pelo menos, quando ultrapassar a metade da viagem até lá.” O jovem prometeu e partiu.
                Chegando a cidade, após pagar o guia, tratou logo de providenciar a volta. Foi a todas as companhias aéreas que tinham voo para o Brasil mas disponibilidade de assento era no mínimo para 90 dias. Não podia esperar tanto. Foi ao cais do porto e conseguiu embarcar em um navio cargueiro que trazia especiarias, e tapetes para o Brasil. O comandante informou que a viagem duraria em torno de trinta dias. Diante das circunstâncias, pra ele estava bom. Depois de quinze dias de sofrimento, enjoando a ponto de pensar que morreria, vai ao comandante que o informa terem ultrapassado a metade da viagem. Ansioso dirige-se ao convés do cargueiro e abre o papel com a tradução. Justo nesse momento, uma forte lufada arranca-lhe das mãos o papel, levando-o pelos ares. No afã de recuperar o bilhete, o rapaz se desequilibra e cai no mar. Homens da tripulação que presenciavam a cena ainda correram em seu auxílio, mas nada puderam fazer. Da mureta do convés apenas viram a espuma do mar tingir-se de vermelho, o que lhes fez supor que o indigitado amante fora sugado pelo torvelinho da hélice do navio...
                Que história triste!  

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