quinta-feira, 24 de abril de 2014

KAFKA CANDANGO*



Daniel Cariello **

—  Bom dia, senhor, eu preciso carimbar um documento, por favor.
— Para carimbar documentos, você tai ter de passar no Departamento das Demandas Dementes e conversar com o subsecretário de autorizações urgentes. Ele vai consultar o secretário, que vai falar com o diretor e pedir a anuência do gerente da área. Acontece que ele certamente não tem poderes para deferir seu pedido, e vai solicitar gentilmente o breve encaminhamento do seu documento à Secretaria de Serviços Simples e Sossegados.
— É rápido?
— Claro que não.
— E não tem outra maneira?
— Até tem. Você pode passar na Comissão das Causas Confusas e solicitar uma audiência com o relator de cartas circulares. Ele não tem acesso ao carimbo, mas vai te apresentar o Cardoso da contabilidade, que uma vez fez um favor à Danuza da informática, que já namorou o Fonseca do almoxarifado, que emprestou uma grana ao Penedo da administração, que dá sempre carona para a dona Solange.
— Então é a dona Solange que vai me ajudar!
— Não. A dona Solange faz o melhor café com pão de queijo da cidade. Você dá uma passadinha no local de trabalho dela para recobrar as forças antes de continuar o périplo, que passa pelo Tadeu da gerência, que...
— Ai, ai. Eu só preciso carimbar esse papel. Não é possível que haja tanta burocracia.
— Bom, já que você tem pressa, existe um caminho alternativo: passar na Administração dos Assuntos Adiáveis. O gestor vai avaliar a pressa do seu pedido utilizando o algoritmo de Behr.
— Algoritmo de Behr?
— Uma fórmula desenvolvida pela Nata dos Notáveis, que se reúne dez horas por dia, cinco dias por semana.
— Por que eles são notáveis?
— Porque se reúnem dez horas por dia, cinco dias por semana e não chegam a conclusão alguma. Não é um fato admirável? Assim que estão para terminar um assunto, a semana acaba e eles precisam repassar o tema na segunda-feira seguinte, do começo, para que não haja dúvidas sobre as decisões a serem tomadas. Em quinze anos de existência, o grupo não resolveu nada.
— Você diz que a Nata dos Notáveis não decide nada, mas não foi ela que criou o algoritmo de Behr?
— A fórmula está incompleta, mas prometeram terminá-la na semana que vem.
— Então já vi, meu caso não tem jeito, vou ter de desistir de carimbar minha certidão.
— Peraí, por que você não falou logo que era uma certidão? Nesse caso, é comigo mesmo.
— Mas que sorte! Você pode então carimbá-la, por favor?
— Desculpa, mas não vai dar.
— Não?
— Infelizmente, não. Você terá de voltar depois.
O carimbo de certidões está desatualizado. Mas não se preocupe, deve chegar um novo na semana que vem. Ou no mês que vem. Ou no ano...

 * Originalmente publicado na revista Veja Brasília, de 6 de dezembro de 2013.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris (www.cheriaparis.com.br)

Nenhum comentário: