quarta-feira, 14 de maio de 2014

DOCES PENSAMENTOS*



Daniel Carriello**
               
               Ia distraído pelo Eixinho quando passei por uma minivan que ostentava dizeres garrafais na sua porta traseira: “Atenção: transporte de bolos”. Surpreso, desacelerei meu carro e me posicionei atrás dela, só para ter certeza de que o texto era aquele mesmo. Era.
            Nas minhas duas décadas de volante, já havia visto automóveis com frases como “Mantenha distância: valores” ou “Cuidado: combustíveis”, mas era a primeira vez que cruzava com um “Atenção: transporte de bolos”. E fiquei pensando que um veículo desses não apenas merecia ter pista livre à frente, merecia, também, ser celebrado.
               Em um átimo (sempre quis usar essa palavra, átimo, e agora consigo, não é ótimo?), viajei para um mundo sem ganância e sem individualismo, no qual não precisaríamos de mais carros-fortes cheios de dinheiro, com janelinhas minúsculas pelas quais passem apenas olhares vigilantes e canos de fuzis de quem está lá dentro, levando mais grana para quem já tem muita. Nem de caminhões de gasolina atravessando a cidade, pois os combustíveis seriam praticamente desnecessários em ruas dominadas por bicicletas e um eficiente transporte público elétrico.
            Nesse lugar, o bolo teria prioridade sobre a bolada. E os tipos caseiros, feitos a mão pelas avós, seriam os bens mais preciosos de todos. Principalmente se tivessem uma grossa camada de chocolate e fossem servidos ainda mornos, com a cobertura escorrendo.
              No reino da utopia, as reuniões importantes ocorreriam na hora do lanche, em torno de um floresta negra ou de uma tartelete de morango. E as decisões deveriam ser tomadas antes do fim da última fatia da iguaria, sob pena de serem declaradas complicadas demais para valer a pena.
             O triunfo da combinação de farinha, leite, ovos, manteiga e recheios diversos seria a confirmação de que havíamos finalmente percebido que não precisamos de muito para ser felizes. No máximo de um café, para acompanhar os quitutes e ver a vida passar no ritmo que ela deveria ter.
          Fui seguindo aquele carro, para ver aonde ele ia, até que o telefone tocou, tirando-me do meu universo particular e me trazendo de volta ao mundo da correria e dos engarrafamentos. Era um colega com quem tinha um compromisso, para o qual já estava trinta minutos atrasado.
– Ô rapaz, cadê você?
– Tô indo.
– Vê se não vai me dar o bolo.
– Olha, até que não seria uma má ideia.
– Hã?
– Nada, nada...
*Originalmente publicado em Veja Brasília de 09/05/14.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris (www.cheriaparis.com.br).



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