quarta-feira, 13 de agosto de 2014

DESMORRENDO SUASSUNA*




Daniel Cariello**

                Tive a sorte de ver Ariano Suassuna em sua última aparição na cidade, em abril, quando deu uma palestra na Bienal do Livro e da Leitura. Sua obra parece fazer ainda mais sentido quando se conhece o autor por trás dela. Suassuna era como os personagens de seus livros: esperto, engraçado, surpreendente. Um gênio, que, naquela noite, como em tantas outras nos últimos anos, compensava a saúde frágil com enorme agilidade nas ideias e incrível memória. As quase 1 000 pessoas presentes no auditório do Museu da República saíram de lá mais felizes, mais leves e, certamente, um pouco mais inteligentes.
                Dias depois, estava passeando no Parque Ana Lídia com minha filha Louise, de 4 anos. Após sua décima volta no foguete, quando ela já intentava embarcar para mais uma decolagem espacial, vimos um grupo teatral que se preparava para encenar uma peça. Deixamos as aventuras estelares de lado e fomos conferir.
                Chegamos bem no comecinho do espetáculo, e aquele enredo de dois matutos que tentavam a todo custo convencer um padre a fazer o enterro de um cachorro em latim a pegou de jeito. Como pegou todos que ali estavam, de todas as origens e todas as idades. Louise e eu fazíamos coro no riso solto da plateia, numerosa como em cada ocasião em que presenciei as palavras do autor, fossem ditas por ele ou por sua obra.
Divertimo-nos com o covarde Chicó, com o caricatural cangaceiro Severino de Aracaju e com aquele Jesus tão negro e tão complacente com o poder materno. Mas o que mais intrigou minha filha foi quando o protagonista João Grilo desmorreu, no final da apresentação.
— Pai, a gente pode desmorrer?
— Não. Uma vez morto, assim fica.
— Mas e o grilo falante do teatro?
— Quando nos vamos, nada sobra. Aquilo é uma história.
Há alguns dias, Louise me pegou conversando sobre Suassuna e O Auto da Compadecida. Reconheceu a narrativa e perguntou se eu falava do autor da peça a que havíamos assistido recentemente.
— É que ele morreu, minha filha.
— Pra sempre?
— Pra sempre.
                Aí, lembrei-me de seus livros e peças, de seus ensaios e poemas, do Movimento Armorial, de toda a arte de um homem que criou e contou lindas narrativas e defendeu a cultura popular até seu último dia de vida.
— Mas as histórias dele vão continuar para sempre.
— Ué, mas você disse que quando nós morremos não sobra nada.
— Sabe, Louise, pensando bem, ele tinha razão. Tem gente que pode desmorrer, sim. Ou, no caso dele, pode não morrer nunca.
*Publicado originalmente em Veja Brasília de 13/08/2014
**Leia também as crônica de Paris, escritas pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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