Daniel Cariello**
Tive
a sorte de ver Ariano Suassuna em sua última aparição na cidade, em abril,
quando deu uma palestra na Bienal do Livro e da Leitura. Sua obra parece fazer
ainda mais sentido quando se conhece o autor por trás dela. Suassuna era como
os personagens de seus livros: esperto, engraçado, surpreendente. Um gênio,
que, naquela noite, como em tantas outras nos últimos anos, compensava a saúde
frágil com enorme agilidade nas ideias e incrível memória. As quase 1 000 pessoas
presentes no auditório do Museu da República saíram de lá mais felizes, mais
leves e, certamente, um pouco mais inteligentes.
Dias
depois, estava passeando no Parque Ana Lídia com minha filha Louise, de 4 anos.
Após sua décima volta no foguete, quando ela já intentava embarcar para mais
uma decolagem espacial, vimos um grupo teatral que se preparava para encenar
uma peça. Deixamos as aventuras estelares de lado e fomos conferir.
Chegamos
bem no comecinho do espetáculo, e aquele enredo de dois matutos que tentavam a
todo custo convencer um padre a fazer o enterro de um cachorro em latim a pegou
de jeito. Como pegou todos que ali estavam, de todas as origens e todas as
idades. Louise e eu fazíamos coro no riso solto da plateia, numerosa como em
cada ocasião em que presenciei as palavras do autor, fossem ditas por ele ou
por sua obra.
Divertimo-nos com o covarde
Chicó, com o caricatural cangaceiro Severino de Aracaju e com aquele Jesus tão
negro e tão complacente com o poder materno. Mas o que mais intrigou minha
filha foi quando o protagonista João Grilo desmorreu, no final da apresentação.
— Pai, a gente pode desmorrer?
— Não. Uma vez morto, assim fica.
— Mas e o grilo falante do
teatro?
— Quando nos vamos, nada sobra.
Aquilo é uma história.
Há alguns dias, Louise me pegou
conversando sobre Suassuna e O Auto da Compadecida. Reconheceu a narrativa e
perguntou se eu falava do autor da peça a que havíamos assistido recentemente.
— É que ele morreu, minha filha.
— Pra sempre?
— Pra sempre.
Aí,
lembrei-me de seus livros e peças, de seus ensaios e poemas, do Movimento
Armorial, de toda a arte de um homem que criou e contou lindas narrativas e
defendeu a cultura popular até seu último dia de vida.
— Mas as histórias dele vão
continuar para sempre.
— Ué, mas você disse que quando
nós morremos não sobra nada.
— Sabe, Louise, pensando bem, ele
tinha razão. Tem gente que pode desmorrer, sim. Ou, no caso dele, pode não
morrer nunca.
*Publicado originalmente em Veja
Brasília de 13/08/2014
**Leia também as crônica de Paris, escritas pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br
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