Daniel Cariello**
Era
só abrir a porta e entrar. As pessoas na sala de jantar estavam ocupadas em
compartilhar comida e conversa e, geralmente, nem notavam a presença de uma
criança. Elas entravam para pegar um copo d’água, ir ao banheiro ou apenas
passar da frente para os fundos da casa, em busca de uma rota de fuga rápida no
pique-esconde.
Um
dia, a porta estava trancada. Não só daquela, mas de todas as moradas da rua.
Sem entendermos bem o motivo daquilo, precisamos tocar a campainha
apressadamente, porque o Nilton estava quase terminando a contagem alta até
cinquenta e logo sairia para nos procurar. Atento à nossa aflição, seu Élbio
deu dois giros ágeis na chave e nos deixou passar, como sempre.
Tempos
depois, um dos vizinhos colocou uma corrente com cadeado. “Para reforçar a
segurança. Há muita gente estranha passando por aqui, não podemos bobear”,
afirmou. Em um encontro fortuito no gramado central, desses que aconteciam toda
hora, o assunto veio à tona e todos decidiram que não dava mesmo para bobear.
Logo, as casas passaram a exibir um pingente de cadeado, ornando as grades de
entrada. Para sair, já não bastava mais girar a maçaneta, agora era preciso
duas chaves, o que obrigou os adeptos do pique-esconde a inventar outras rotas
de fuga.
Até
chegar o dia em que alguém deu um basta, pois a situação estava “quase
insustentável”, e levantou a primeira cerca, de ferro, de uns 2 metros, cheia
de lanças em cima. Para as crianças, que ficavam o dia inteiro na rua e nunca
haviam presenciado um episódio de violência, aquele encastelamento de um
vizinho parecia muito desproporcional, mesmo que não soubéssemos o significado
de desproporcional. E o pior é que alguns dos nossos amigos moravam ali e, às
vezes, não conseguiam sair, porque ninguém sabia onde estavam todas as chaves
necessárias.
Como
uma praga, a iniciativa contagiou os moradores. Não demorou muito, a casa da
esquina subiu uma grande cerca. A da frente fez o mesmo e ainda instalou um
interfone. Uma outra aproveitou as laterais já erguidas pelos vizinhos e só
fechou a parte da frente. Rapidamente, todas estavam escondidas pelas enormes
barreiras.
Tão
protegidas que já não sabíamos mais quem morava atrás daqueles muros. Tão
invioláveis que ninguém mais passava por aquelas portas. Tão surreais que não
mais se compartilhou conversa. E muito menos comida. Tão invencíveis que nunca
mais brincamos de pique-esconde.
*Publicado originalmente em Veja
Brasília de 08.out.2014
**Leia também as
crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br
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