quinta-feira, 9 de outubro de 2014

ERA SÓ ABRIR A PORTA*




Daniel Cariello**
               
               Era só abrir a porta e entrar. As pessoas na sala de jantar estavam ocupadas em compartilhar comida e conversa e, geralmente, nem notavam a presença de uma criança. Elas entravam para pegar um copo d’água, ir ao banheiro ou apenas passar da frente para os fundos da casa, em busca de uma rota de fuga rápida no pique-esconde.
            Um dia, a porta estava trancada. Não só daquela, mas de todas as moradas da rua. Sem entendermos bem o motivo daquilo, precisamos tocar a campainha apressadamente, porque o Nilton estava quase terminando a contagem alta até cinquenta e logo sairia para nos procurar. Atento à nossa aflição, seu Élbio deu dois giros ágeis na chave e nos deixou passar, como sempre.
        Tempos depois, um dos vizinhos colocou uma corrente com cadeado. “Para reforçar a segurança. Há muita gente estranha passando por aqui, não podemos bobear”, afirmou. Em um encontro fortuito no gramado central, desses que aconteciam toda hora, o assunto veio à tona e todos decidiram que não dava mesmo para bobear. Logo, as casas passaram a exibir um pingente de cadeado, ornando as grades de entrada. Para sair, já não bastava mais girar a maçaneta, agora era preciso duas chaves, o que obrigou os adeptos do pique-esconde a inventar outras rotas de fuga.
             Até chegar o dia em que alguém deu um basta, pois a situação estava “quase insustentável”, e levantou a primeira cerca, de ferro, de uns 2 metros, cheia de lanças em cima. Para as crianças, que ficavam o dia inteiro na rua e nunca haviam presenciado um episódio de violência, aquele encastelamento de um vizinho parecia muito desproporcional, mesmo que não soubéssemos o significado de desproporcional. E o pior é que alguns dos nossos amigos moravam ali e, às vezes, não conseguiam sair, porque ninguém sabia onde estavam todas as chaves necessárias.
            Como uma praga, a iniciativa contagiou os moradores. Não demorou muito, a casa da esquina subiu uma grande cerca. A da frente fez o mesmo e ainda instalou um interfone. Uma outra aproveitou as laterais já erguidas pelos vizinhos e só fechou a parte da frente. Rapidamente, todas estavam escondidas pelas enormes barreiras.
             Tão protegidas que já não sabíamos mais quem morava atrás daqueles muros. Tão invioláveis que ninguém mais passava por aquelas portas. Tão surreais que não mais se compartilhou conversa. E muito menos comida. Tão invencíveis que nunca mais brincamos de pique-esconde.
*Publicado originalmente em Veja Brasília de 08.out.2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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