terça-feira, 29 de setembro de 2015

O UMBUZEIRO, O CIRCO E O BERRO DO QUINCAS


A. J. de O. Monteiro

Aquelas férias se prenunciavam como as mais monótonas. Não havia perspectiva de viagem para o litoral; tão pouco para alguma outra cidade do interior e, nem mesmo, para alguma fazenda ou sítio nas proximidades. Não recebi qualquer convite de parentes ou de amigos, como sempre ocorria nessas épocas de férias escolares.
A cidade pequena pouco oferecia em termos de lazer, o que provocava um verdadeiro êxodo da estudantada nesses períodos. Rumavam para o litoral, para o interior, ou para fazendas e sítios onde se pudesse desfrutar do justo e merecido descanso de livros, professores e deveres de casa. Que inveja! Eles lá curtindo o mar, ou delícias do interior e eu cumprindo entediante rotina para um menino de dez anos. O drama só não foi maior porque uns poucos amigos também ficaram na cidade, com os quais preenchia o ócio com atividades possíveis. Nossa primeira semana de férias foi assim: Da segunda ao sábado, futebol pela manhã e a tarde. À noite reunião na esquina mal iluminada para a resenha do tédio. No domingo, uma pequena quebra dessa rotina, mas caindo na rotina de todos os domingos do ano: Logo cedo banho e roupa de missa na capela do bairro, levado por condução coercitiva e em jejum para o sacramento da comunhão. Cumprida a obrigação espiritual estava liberado para a manhã de sol na piscina do pequeno clube local onde, cada centímetro cúbico d’água era disputado promiscuamente por crianças, adolescentes e adultos. Na tarde havia a possibilidade de optar entre a vesperal nos cinemas e o futebol, acompanhando pelo rádio os jogos do Rio e S. Paulo, ou assistindo jogos do campeonato local no acanhado estádio da cidade. A noite domingueira era animada, pois além da resenha sobre os filmes em cartaz, rolava gozação das torcidas dos times vencedores em cima dos que perderam. A maior zoeira que, não raro, terminava em discussão, rapidamente contornada pela turma do deixa disso.
A primeira semana foi suportável, até mesmo pelo sentimento de descompromisso com colégio, aulas, deveres de casa e professores... Mas, na semana seguinte, na segunda feira mesmo, o enfado de todos era aparente. A esquina da resenha noturna virou um verdadeiro muro das lamentações, até que o Quincas levantou-se e propôs a ideia mais idiota que já ouvira: — “Vamos montar um circo!”. A gargalhada foi geral. — “O Quincas endoidou”, disse um. — “Que ideia maluca é essa, Quincas, fazer um circo?... Como?”. O camarada, que provavelmente já trouxera o assunto pensado, explicou: — “Ora, não é tão difícil assim, não... Compramos uns metros de corda, pegamos uns cabos de vassoura e armamos dois pares de trapézio nas galhas do umbuzeiro da casa do Manteiga... Serei o trapezista, obviamente, por ser o mais atlético da turma...” Isso era verdade, o Quincas vivia marombando... Alguém ainda questionou: — “Um circo só com número de trapézio... Vai mesmo ser um sucesso...” Nisso Dofim, o engraçadinho da turma levantou a mão e disse: — “Vou fazer o palhaço!”. Pingo, animado, complementou: — “Faço escada para o palhaço!”. Suçuarana, que recentemente havia sido sorteado com o uniforme completo de patrulheiro toddy (camisa, calça, botas, chapéu, estrela e um cinturão com dois pares de coldres e revólveres de espoleta) – do qual só saia para tomar banho – prontificou-se a treinar e apresentar números de habilidades com revólveres e laço, tal qual nos filmes de “cowboy”.  Até a Fatinha, que depois da premiação do Suçuarana passou a frequentara as nossas resenhas, autoproclamou-se mocinha e assistente dele, acrescentando que tinha uma fantasia de dançarina de “can-can”, ideal para o Papel... Hora de ir pra casa, dormir... Acertamos reunião para a manhã seguinte, bem cedo, no quintal da casa do Manteiga, a fim de discutirmos a operacionalização da empreitada.

Logo cedo, lá estávamos nós no local. O Quincas com as cordas e os cabos de vassoura; o Dofim com um pijama, chapéu e um par de sapatos vários números acima dos seu. Tudo surrupiado ao acervo de seu pai; Pingo apresentou sua caracterização com blusa, saiote, peruca colorida (daquelas de carnaval) e um estojo de maquiagem – tudo igualmente surrupiado de sua irmã mais velha. Ao Manteiga, o mais alto da turma, mas sem nenhuma habilidade circense, caberia a tarefa de ajudar o Quincas alcançar o trapézio base e impulsioná-lo rumo ao outro trapézio. A mim, o menor da turma e, igualmente sem habilidade nenhuma, restou a função de porteiro. Ficaria eu na porta lateral da casa, recebendo e conferindo a integridade das revistas em quadrinho que seriam os ingressos para o circo. Seriam revistas velhas, mas em bom estado a serem posteriormente vendidas para a manutenção do circo. Isso tudo acertado e acordado, Quincas marcou a “avant première” para Quarta feira, à tarde.
Tempo era pouco, de forma que o líder Quincas determinou ao Manteiga e a mim, irmos às ruas fazer a divulgação do evento e, aos demais, ensaiar “full time”.
Na manhã da quarta feira, reunimo-nos o mais cedo possível para o ensaio final e outras providências. Não houve exigência de caraterização dos artistas, mas o Suçuarana apareceu uniformizado... Era de se esperar. Nada tendo a fazer, sentei-me no chão para assistir os ensaios. Manteiga ajudou nosso trapezista alcançar o trapézio base e lhe deu o impulso inicial. Quincas se lançava e se agarrava ao outro trapézio. Virava-se, balançava-se e esperava o trapézio base impulsionado pelo Manteiga e se lançava novamente... Era só isso e estava indo muito bem até que, empolgado e autoconfiante, Quincas resolveu dar um giro no ar antes de alcançar o segundo trapézio, não conseguiu e estabacou-se no chão. O berro do Quincas deve ter sido ouvido em toda a cidade. Os pais do Manteiga surgiram esbaforidos e vendo Quincas berrando e se contorcendo, ordenaram fôssemos avisar aos pais dele, que chegaram rapidamente e o levaram ao pronto socorro mais próximo. Fatinha e Suçuarana que haviam ido ensaiar na casa do patrulheiro, logo souberam da fatalidade e vieram se juntar a nós... Ali ficamos, tristes e ansiosos, aguardando notícias do indigitado trapezista, que horas mais tarde voltou com o tronco todo engessado e o diagnóstico de clavícula fraturada...
             E assim, por decisão unânime dos pais dos artistas, tivemos que desarmar o circo e retomar a entediante rotina daquelas férias e, ainda por cima, sem o Quincas. Que férias!

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