A. J. de O. Monteiro
Aquelas férias se prenunciavam
como as mais monótonas. Não havia perspectiva de viagem para o litoral; tão
pouco para alguma outra cidade do interior e, nem mesmo, para alguma fazenda ou
sítio nas proximidades. Não recebi qualquer convite de parentes ou de amigos,
como sempre ocorria nessas épocas de férias escolares.
A cidade
pequena pouco oferecia em termos de lazer, o que provocava um verdadeiro êxodo
da estudantada nesses períodos. Rumavam para o litoral, para o interior, ou
para fazendas e sítios onde se pudesse desfrutar do justo e merecido descanso
de livros, professores e deveres de casa. Que inveja! Eles lá curtindo o mar,
ou delícias do interior e eu cumprindo entediante rotina para um menino de dez
anos. O drama só não foi maior porque uns poucos amigos também ficaram na
cidade, com os quais preenchia o ócio com atividades possíveis. Nossa primeira
semana de férias foi assim: Da segunda ao sábado, futebol pela manhã e a tarde.
À noite reunião na esquina mal iluminada para a resenha do tédio. No domingo,
uma pequena quebra dessa rotina, mas caindo na rotina de todos os domingos do
ano: Logo cedo banho e roupa de missa na capela do bairro, levado por condução
coercitiva e em jejum para o sacramento da comunhão. Cumprida a obrigação
espiritual estava liberado para a manhã de sol na piscina do pequeno clube
local onde, cada centímetro cúbico d’água era disputado promiscuamente por
crianças, adolescentes e adultos. Na tarde havia a possibilidade de optar entre
a vesperal nos cinemas e o futebol, acompanhando pelo rádio os jogos do Rio e
S. Paulo, ou assistindo jogos do campeonato local no acanhado estádio da cidade.
A noite domingueira era animada, pois além da resenha sobre os filmes em
cartaz, rolava gozação das torcidas dos times vencedores em cima dos que
perderam. A maior zoeira que, não raro, terminava em discussão, rapidamente
contornada pela turma do deixa disso.
A primeira
semana foi suportável, até mesmo pelo sentimento de descompromisso com colégio,
aulas, deveres de casa e professores... Mas, na semana seguinte, na segunda
feira mesmo, o enfado de todos era aparente. A esquina da resenha noturna virou
um verdadeiro muro das lamentações, até que o Quincas levantou-se e propôs a
ideia mais idiota que já ouvira: — “Vamos montar um circo!”. A gargalhada foi geral.
— “O Quincas endoidou”, disse um. — “Que ideia maluca é essa, Quincas, fazer um
circo?... Como?”. O camarada, que provavelmente já trouxera o assunto pensado,
explicou: — “Ora, não é tão difícil assim, não... Compramos uns metros de
corda, pegamos uns cabos de vassoura e armamos dois pares de trapézio nas
galhas do umbuzeiro da casa do Manteiga... Serei o trapezista, obviamente, por
ser o mais atlético da turma...” Isso era verdade, o Quincas vivia marombando...
Alguém ainda questionou: — “Um circo só com número de trapézio... Vai mesmo ser
um sucesso...” Nisso Dofim, o engraçadinho da turma levantou a mão e disse: —
“Vou fazer o palhaço!”. Pingo, animado, complementou: — “Faço escada para o
palhaço!”. Suçuarana, que recentemente havia sido sorteado com o uniforme
completo de patrulheiro toddy (camisa, calça, botas, chapéu, estrela e um
cinturão com dois pares de coldres e revólveres de espoleta) – do qual só saia
para tomar banho – prontificou-se a treinar e apresentar números de habilidades
com revólveres e laço, tal qual nos filmes de “cowboy”. Até a Fatinha, que depois da premiação do
Suçuarana passou a frequentara as nossas resenhas, autoproclamou-se mocinha e
assistente dele, acrescentando que tinha uma fantasia de dançarina de “can-can”,
ideal para o Papel... Hora de ir pra casa, dormir... Acertamos reunião para a
manhã seguinte, bem cedo, no quintal da casa do Manteiga, a fim de discutirmos
a operacionalização da empreitada.
Logo cedo, lá
estávamos nós no local. O Quincas com as cordas e os cabos de vassoura; o Dofim
com um pijama, chapéu e um par de sapatos vários números acima dos seu. Tudo
surrupiado ao acervo de seu pai; Pingo apresentou sua caracterização com blusa,
saiote, peruca colorida (daquelas de carnaval) e um estojo de maquiagem – tudo
igualmente surrupiado de sua irmã mais velha. Ao Manteiga, o mais alto da
turma, mas sem nenhuma habilidade circense, caberia a tarefa de ajudar o
Quincas alcançar o trapézio base e impulsioná-lo rumo ao outro trapézio. A mim,
o menor da turma e, igualmente sem habilidade nenhuma, restou a função de
porteiro. Ficaria eu na porta lateral da casa, recebendo e conferindo a
integridade das revistas em quadrinho que seriam os ingressos para o circo. Seriam
revistas velhas, mas em bom estado a serem posteriormente vendidas para a
manutenção do circo. Isso tudo acertado e acordado, Quincas marcou a “avant
première” para Quarta feira, à tarde.
Tempo era
pouco, de forma que o líder Quincas determinou ao Manteiga e a mim, irmos às
ruas fazer a divulgação do evento e, aos demais, ensaiar “full time”.
Na manhã da
quarta feira, reunimo-nos o mais cedo possível para o ensaio final e outras
providências. Não houve exigência de caraterização dos artistas, mas o
Suçuarana apareceu uniformizado... Era de se esperar. Nada tendo a fazer,
sentei-me no chão para assistir os ensaios. Manteiga ajudou nosso trapezista
alcançar o trapézio base e lhe deu o impulso inicial. Quincas se lançava e se
agarrava ao outro trapézio. Virava-se, balançava-se e esperava o trapézio base
impulsionado pelo Manteiga e se lançava novamente... Era só isso e estava indo
muito bem até que, empolgado e autoconfiante, Quincas resolveu dar um giro no
ar antes de alcançar o segundo trapézio, não conseguiu e estabacou-se no chão.
O berro do Quincas deve ter sido ouvido em toda a cidade. Os pais do Manteiga
surgiram esbaforidos e vendo Quincas berrando e se contorcendo, ordenaram
fôssemos avisar aos pais dele, que chegaram rapidamente e o levaram ao pronto
socorro mais próximo. Fatinha e Suçuarana que haviam ido ensaiar na casa do
patrulheiro, logo souberam da fatalidade e vieram se juntar a nós... Ali
ficamos, tristes e ansiosos, aguardando notícias do indigitado trapezista, que
horas mais tarde voltou com o tronco todo engessado e o diagnóstico de
clavícula fraturada...
E assim, por decisão unânime dos pais dos
artistas, tivemos que desarmar o circo e retomar a entediante rotina daquelas
férias e, ainda por cima, sem o Quincas. Que férias!
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