quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O ABOMINÁVEL NICOLAU


A. J. de O. Monteiro

               Sobreira era um sujeito estranho, retraído – tomavam-no por tímido. Sua postura tornava-o mais estranho ainda: magro, estatura mediana, corpo encurvado para frente, rosto encovado e com marcas de acne, talvez. Não se integrava plenamente ao ambiente de trabalho. Não participava das manifestações sociais do grupo (festinhas de aniversários ou as indefectíveis confraternizações de final de ano, etc.) – amigos? Nem ocultos nem declarados. Por várias vezes tentaram fazê-lo participar de tais reuniões, sem sucesso. Nunca faltava ao serviço, exceto por razões médicas e em raras ocasiões, é que o diziam. Assinava o ponto de entrada e saída nas horas exatas, cumpria sua carga horária com rigor. Não cumprimentava ninguém e se alguém o cumprimentava, respondia com um murmúrio ininteligível e rumava para sua sala, de onde pouco saia – era responsável pelo “arquivo morto”. Era o último “ao” dos processos que chegavam a termo: “Ao Sr. Sobreira para registro e arquivamento” – era o despacho. Recebia os processos, conferia-os meticulosamente até a última folha, assinava e carimbava a guia de protocolo a qual devolvia ao funcionário que levara os processos. No carimbo constava: Antônio N. Sobreira – Responsável pelo Arquivo/RH. Esse era o Sobreira e isso é o que o Sobreira fazia todos os dias.
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               De tempos em tempos, no serviço público, algum desocupado de dentro da cúpula administrativa inventa de realizar um recadastramento de pessoal argumentando necessidade de corrigir distorções e estabelecer o perfil da “força de trabalho”. Cabia, como sempre, ao Departamento de Recursos Humanos – DRH, proceder com os trabalhos, seguindo orientações da ETAN – Equipe Técnica de Alto Nível, instalada nos andares de cima. O trabalho consistia em fazer chegar aos doze mil servidores ativos do órgão, um formulário elaborado pela tal ETAN, composto de três campos: Campo 1 – Dados Pessoais; Campo 2 – Dados funcionais e, Campo 3 – Outras Informações Pertinentes. Com os formulários seguia ofício com orientações básicas de preenchimento e o aviso da obrigação de devolver o formulário preenchido em prazo “X”, sob pena de exclusão da folha de pagamento (ameaça maior que essa, não podia haver).
               Em tempo hábil o DRH já criara um grupo de trabalho para o recebimento e análise dos formulários – e nesse grupo lá estava o afortunado aqui. A análise se resumia em confrontar os dados fornecidos pelos servidores com aqueles já constantes nos seus assentamentos funcionais. Em caso de conflito entre o formulário e o assentamento entra-se em contato com o servidor, para dirimir o conflito. Beleza, né?
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               De centenas de formulários por mim analisados nenhum trazia preenchido o campo 3, com qualquer “informação pertinente”, até chegar às minhas mãos o formulário referente ao servidor Antônio Nicolau Sobreira, onde constava, no referido campo 3, a seguinte observação em letras de forma bem desenhadas: “PRETENDO EXTIRPAR DO MEU NOME, ESSE ABOMINÁVEL NICOLAU”. Sorri, é claro, com a cômica gravidade da frase, mas não dei maior importância e passei adiante o papel, sem comentar com ninguém. Ao final do expediente saí e, antes do lar, havia o boteco de desintoxicação com duas ou três cervejinhas.
               Naquele dia os companheiros de “repiau” demoraram a chegar e, esperando, me lembrei da frase do Sobreira no campo das informações pertinentes: “PRETENDO EXTIRPAR DO MEU NOME, ESSE ABOMINÁVEL NICOLAU”. Passei então a conjecturar: O que teria acontecido com o Sobreira para que ele manifestasse tanta raiva do nome que, afinal, nem era tão estranho assim? Imaginei-o então na escola tendo que ouvir seus coleguinhas cantando insistentemente versinhos do tipo: “Ah, seu Nicolau, você quer mingau, na colher de Pau”? Ou, talvez, um professor de matemática frustrado fazendo a chamada da classe e, ao chegar ao seu nome – um dos primeiros da lista – sadicamente chamasse Antônio N-I-C-O-L-A-U, provocando a risada geral e o sofrimento dele? E no serviço militar? Tendo que aguentar as rimas esdrúxulas que o nome permite? É possível que piadinhas infames o tenham perseguido ao longo de seu 55 anos (vi sua idade no formulário), e o transformado no sujeito amargo de agora, fazendo-o criar barreiras às amizades para evitar gozações dessa natureza na idade adulta. Deve ser um tormento cotidiano.
               Como disse, não comentei com ninguém sobre a observação do Sobreira, no campo 3 do formulário, mas alguém comentou e o assunto no dia seguinte era só esse. O Sobreira passava e os risinhos marotos surgiam; olhares maliciosos eram trocados e ele percebeu, pois, alguém que tenha esse tipo de trauma sempre fica atento aos outros, como que em defesa, chegando ao ponto de chamar para si gestos, palavras e risos que não lhe dizem respeito.
               Daquele dia em diante, o Sobreira fechou-se mais ainda. Não respondia cumprimentos e falava apenas quando lhe era levado algum assunto de serviço, assim mesmo sem levantar os olhos para o interlocutor, talvez com medo de vislumbrar nos olhos do outro, alguma zombaria. Passou a chegar antes da abertura do expediente – confinando-se em sua sala – e a sair depois do encerramento para não ter que enfrentar os tormentos das galhofas reais e imaginárias.
             Mas, a vida continua e o funcionário encarregado levou os processos finalizados para registro arquivamento. Segundo seu relato, Sobreira conferiu o primeiro processo e, contrariando sua dinâmica, fixou demoradamente o olhar no despacho da última folha que um chefe pouco cioso e sem noção fizera: “Ao Sr. Antônio Nicolau Sobreira, para registro e arquivamento”. O colega percebeu uma lágrima cair sobre a folha aberta e perguntou: — “Algum problema, Sobreira”? Ele não respondeu. Assinou a guia de encaminhamento, colocando o carimbo: Antônio N. Sobreira – Responsável Pelo arquivo/RH. Devolveu a guia ao colega e, com um gesto de mão, pediu que ele saísse.
              No dia seguinte, com o início do expediente, chegou a notícia: O Sobreira cometera suicídio. Sobreira levou para o túmulo o peso daquele abominável Nicolau que não conseguiu extirpar!
               Ainda hoje penso que, tivesse conhecido a família do Sobreira lhes recomendaria colocar sobre a laje de sua sepultura, o dístico: DESCANSE EM PAZ ANTONIO SOBREIRA...

NOTA: Os fatos aqui narrados e o nome do personagem são fictícios, quaisquer semelhanças com sistuações reais ou pessoas vivas ou mortas, são meras coincidências. 

Um comentário:

Manoel Andante disse...

Essa foi uma crônica pesada, com um triste final... muito bem escrita, como o autor sempre faz, mas fiquei sentindo a dor do Sobreira!