A. J. de O. Monteiro
Sobreira
era um sujeito estranho, retraído – tomavam-no por tímido. Sua postura
tornava-o mais estranho ainda: magro, estatura mediana, corpo encurvado para frente,
rosto encovado e com marcas de acne, talvez. Não se integrava plenamente ao
ambiente de trabalho. Não participava das manifestações sociais do grupo
(festinhas de aniversários ou as indefectíveis confraternizações de final de
ano, etc.) – amigos? Nem ocultos nem declarados. Por várias vezes tentaram
fazê-lo participar de tais reuniões, sem sucesso. Nunca faltava ao serviço,
exceto por razões médicas e em raras ocasiões, é que o diziam. Assinava o ponto
de entrada e saída nas horas exatas, cumpria sua carga horária com rigor. Não
cumprimentava ninguém e se alguém o cumprimentava, respondia com um murmúrio ininteligível
e rumava para sua sala, de onde pouco saia – era responsável pelo “arquivo
morto”. Era o último “ao” dos processos que chegavam a termo: “Ao Sr. Sobreira
para registro e arquivamento” – era o despacho. Recebia os processos,
conferia-os meticulosamente até a última folha, assinava e carimbava a guia de
protocolo a qual devolvia ao funcionário que levara os processos. No carimbo
constava: Antônio N. Sobreira – Responsável
pelo Arquivo/RH. Esse era o Sobreira e isso é o que o Sobreira fazia todos
os dias.
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De
tempos em tempos, no serviço público, algum desocupado de dentro da cúpula
administrativa inventa de realizar um recadastramento de pessoal argumentando
necessidade de corrigir distorções e estabelecer o perfil da “força de
trabalho”. Cabia, como sempre, ao Departamento de Recursos Humanos – DRH,
proceder com os trabalhos, seguindo orientações da ETAN – Equipe Técnica de
Alto Nível, instalada nos andares de cima. O trabalho consistia em fazer chegar
aos doze mil servidores ativos do órgão, um formulário elaborado pela tal ETAN,
composto de três campos: Campo 1 – Dados Pessoais; Campo 2 – Dados funcionais
e, Campo 3 – Outras Informações Pertinentes. Com os formulários seguia ofício
com orientações básicas de preenchimento e o aviso da obrigação de devolver o
formulário preenchido em prazo “X”, sob pena de exclusão da folha de pagamento
(ameaça maior que essa, não podia haver).
Em
tempo hábil o DRH já criara um grupo de trabalho para o recebimento e análise
dos formulários – e nesse grupo lá estava o afortunado aqui. A análise se
resumia em confrontar os dados fornecidos pelos servidores com aqueles já
constantes nos seus assentamentos funcionais. Em caso de conflito entre o
formulário e o assentamento entra-se em contato com o servidor, para dirimir o
conflito. Beleza, né?
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De
centenas de formulários por mim analisados nenhum trazia preenchido o campo 3,
com qualquer “informação pertinente”, até chegar às minhas mãos o formulário
referente ao servidor Antônio Nicolau Sobreira, onde constava, no referido
campo 3, a seguinte observação em letras de forma bem desenhadas: “PRETENDO
EXTIRPAR DO MEU NOME, ESSE ABOMINÁVEL NICOLAU”. Sorri, é claro, com a cômica
gravidade da frase, mas não dei maior importância e passei adiante o papel, sem
comentar com ninguém. Ao final do expediente saí e, antes do lar, havia o
boteco de desintoxicação com duas ou três cervejinhas.
Naquele
dia os companheiros de “repiau” demoraram a chegar e, esperando, me lembrei da
frase do Sobreira no campo das informações pertinentes: “PRETENDO EXTIRPAR DO
MEU NOME, ESSE ABOMINÁVEL NICOLAU”. Passei então a conjecturar: O que teria acontecido
com o Sobreira para que ele manifestasse tanta raiva do nome que, afinal, nem
era tão estranho assim? Imaginei-o então na escola tendo que ouvir seus
coleguinhas cantando insistentemente versinhos do tipo: “Ah, seu Nicolau, você
quer mingau, na colher de Pau”? Ou, talvez, um professor de matemática
frustrado fazendo a chamada da classe e, ao chegar ao seu nome – um dos
primeiros da lista – sadicamente chamasse Antônio N-I-C-O-L-A-U, provocando a
risada geral e o sofrimento dele? E no serviço militar? Tendo que aguentar as
rimas esdrúxulas que o nome permite? É possível que piadinhas infames o tenham
perseguido ao longo de seu 55 anos (vi sua idade no formulário), e o
transformado no sujeito amargo de agora, fazendo-o criar barreiras às amizades
para evitar gozações dessa natureza na idade adulta. Deve ser um tormento
cotidiano.
Como
disse, não comentei com ninguém sobre a observação do Sobreira, no campo 3 do
formulário, mas alguém comentou e o assunto no dia seguinte era só esse. O
Sobreira passava e os risinhos marotos surgiam; olhares maliciosos eram
trocados e ele percebeu, pois, alguém que tenha esse tipo de trauma sempre fica
atento aos outros, como que em defesa, chegando ao ponto de chamar para si
gestos, palavras e risos que não lhe dizem respeito.
Daquele
dia em diante, o Sobreira fechou-se mais ainda. Não respondia cumprimentos e
falava apenas quando lhe era levado algum assunto de serviço, assim mesmo sem
levantar os olhos para o interlocutor, talvez com medo de vislumbrar nos olhos
do outro, alguma zombaria. Passou a chegar antes da abertura do expediente –
confinando-se em sua sala – e a sair depois do encerramento para não ter que
enfrentar os tormentos das galhofas reais e imaginárias.
Mas,
a vida continua e o funcionário encarregado levou os processos finalizados para
registro arquivamento. Segundo seu relato, Sobreira conferiu o primeiro
processo e, contrariando sua dinâmica, fixou demoradamente o olhar no despacho
da última folha que um chefe pouco cioso e sem noção fizera: “Ao Sr. Antônio
Nicolau Sobreira, para registro e arquivamento”. O colega percebeu uma lágrima
cair sobre a folha aberta e perguntou: — “Algum problema, Sobreira”? Ele não
respondeu. Assinou a guia de encaminhamento, colocando o carimbo: Antônio N. Sobreira – Responsável Pelo
arquivo/RH. Devolveu a guia ao colega e, com um gesto de mão, pediu que ele
saísse.
No
dia seguinte, com o início do expediente, chegou a notícia: O Sobreira cometera
suicídio. Sobreira levou para o túmulo o peso daquele abominável Nicolau que
não conseguiu extirpar!
Ainda
hoje penso que, tivesse conhecido a família do Sobreira lhes recomendaria
colocar sobre a laje de sua sepultura, o dístico: DESCANSE EM PAZ ANTONIO
SOBREIRA...NOTA: Os fatos aqui narrados e o nome do personagem são fictícios, quaisquer semelhanças com sistuações reais ou pessoas vivas ou mortas, são meras coincidências.
Um comentário:
Essa foi uma crônica pesada, com um triste final... muito bem escrita, como o autor sempre faz, mas fiquei sentindo a dor do Sobreira!
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