terça-feira, 2 de maio de 2017

O CANÁRIO E OS PRÉ


A.J. de O. Monteiro
                Era então um jovem, fogoso e inexperiente canário da terra. Há pouco tempo dera meu primeiro Voo e ensaiava os primeiros trinados necessários à conquista de uma companheira. Passava meu tempo voando pela imensidão, parando apenas para alimentar-me com o que a natureza me oferecia à sobeja: sementes e pequenos insetos; parava também para ouvir o canto dos adultos, aprendendo com isso todas as notas que tornam nossa espécie tão admirada.
                Certo dia, esvoaçando a esmo, avistei, no chão, o que me pareceu um lauto banquete. Uma pilha de sementes, ali, a minha disposição... Inexperiente, não titubeei, desci em voo picado, aproximei-me saltitante e comecei a comer avidamente. De repente – vupt – tudo escureceu. Aturdido tentei alçar voo, mas esbarrava em barreiras sólidas. Uma pequena réstia de luz surgiu para minha animação, mas, juntamente com a luz, surgiu uma enorme mão que me agarrou firmemente, a ponto de quase sufocar-me. De nada adiantaram meus guinchados nem as bicadas que desferia naqueles dedos que me pareceram insensíveis à dor.
                Trancado em pequena caixa, percebi estar em deslocamento sem saber para onde, e nem por que razão era submetido à tão cruel tratamento. Mesmo, até então, conhecendo apenas o lado bom da vida, pressenti que o pior estava por vir.
                Cheguei a um lugar onde reinava o caos: pregões aos berros, guinchados desesperados e cantos indistintos de diversas espécies engaioladas. Eram cantos tristes, dolentes... A mesma mão que me prendera agarrou-me novamente e soltou-me numa enorme gaiola atulhada de pássaros, alguns mortos e outros em agonia. Se existe um inferno, pensei, aqui é a antessala: Suja, mal cheirosa... A comida, de péssimo aspecto era jogada no “chão”, misturada às fezes e aos pássaros mortos. Passado algum tempo me dei conta de que aquilo não era a antessala, era o próprio inferno. A comida, como disse, imprópria para o consumo e a água, insuficientes, eram disputada à bicadas, pernada e asadas, tornando o ambiente ainda mais caótico... Insuportável! Sem fome – pois me alimentara bem antes de cair na armadilha – empoleirei-me o mais alto que pude para observar melhor o ambiente exterior. A balbúrdia era ainda maior que aqui dentro. Pessoas caminhando de um lado a outro, gesticulando e falando alto. Ora paravam para observar os pássaros; compravam ou seguiam em frente em suas avaliações. Pareciam todos entendidos do assunto. Pilhas e pilhas de gaiolas expostas à venda, das mais simples as mais sofisticada. Havia gaiolas para todos o gostos e bolsos. Distraído, não vi aquela mão entrar na gaiola e novamente subjugar-me, agora para ser entregue ao comprador. Este me colocou em uma caixinha de transporte mais confortável, asseada e melhor arejada que a que me trouxe. Novamente em movimento, afastando-me do barulho e mau cheiro da feira. Não demorou, chegamos ao que imaginei ser o ponto final da jornada. Fui então transferido para uma gaiola grande – daquelas mais sofisticadas que vira na feira – e sem nenhum outro pássaro além de mim. Em que pese certo alívio, não me alegrei. Ainda era uma prisão; bonita, mas uma prisão. Indaguei-me: estarei para sempre afastado do meu espaço natural? Das árvores e do convívio com meus semelhantes em liberdade? Era o que me parecia...

                Do dia em que cai na armadilha ou, melhor dizendo, que ela caiu sobre mim, entrei em processo autodestrutivo: parei de cantar, minhas penas caiam em quantidade assustadora e quase não comia, embora a boa e limpa, servida em cocho apropriado, não me apetecia. Era bem tratado, é certo, gaiola asseada diariamente, era posto ao sol, pendurado em árvore – a gaiola, claro – e passeava e contava com uma bacia pra banho. Todos esses mimos eram da responsabilidade dos dois pré-adolescentes da casa que, ao tempo em cuidavam da alimentação e asseio da gaiola, conversavam comigo como se um deles fosse. Deram-me um nome, até: Spartacus, talvez por saberem o que o futuro me reservava. Gostei do nome.
                O convívio com os pré me deu novo ânimo até que um dia me peguei trinando como se livre estivesse. Minhas penas se recompunham e me alimentava normalmente. Quando me ouviram cantando, os dois entraram em êxtase... Pulavam e gritavam chamando os demais da casa para me ouvirem. Fiquei feliz com a felicidade deles. Dai em diante cuidei de viver a vida –mesmo privado da liberdade – da melhor maneira possível, grato àqueles dois.
                Como se não bastasse, um dia o “dono” encostou na gaiola, a caixinha                de transporte e dela saiu uma bela canarinha que ficou no compartimento contíguo, pois, para os criadores, manter a separação por uns dias é parte do ritual de acasalamento além de evitar qualquer atitude hostil do macho em defesa do território, no caso, até então só meu. Mal sabia ele que de imediato ansiei Tê-la em meus braços, digo, em minhas asas, garras e bico. Lembrei que antes de ser preso andava em busca de uma companheira. Imaginava-a bela, recatada e do lar – se alguém não sabe que fique sabendo: nós canários somos monogâmicos. Quando o dono achou ser tempo de nos juntar, abriu a portinhola do compartimento e ela, talvez tímida, hesitou um pouco até vir a mim, mas veio e, por pudor, não relatarei o que aconteceu depois no ninheiro da gaiola – segredos de alcova. Que era bela já sabia; descobri ser do lar, mas nem um pouco recatada. Estava bem próximo da felicidade, tinha a amizade dos pré, casa, comida e uma companheira, faltava-me apenas a liberdade... Mas nada é perfeito...
                Com o passar do empo, minha rotina começou a mudar: recebia mais atenção do “dono” que colocava minha gaiola em frente a um espelho e como não reconhecia minha imagem refletida reagia ferozmente pensando tratar-se de outro macho querendo invadir meus domínios. O “dono” parecia gostar de minha reação, pois sorria e balançava a cabeça positivamente. Depois passou a encostar minha gaiola em outra, habitada por outro casal de canários e minha reação era a mesma, de defesa territorial e da fêmea. Era um programa de treinamento e não percebera ainda. Em iniciou treinamento real. O “dono” transferiu Frida – esse foi o nome que os pré lhe deram – para o outro recinto e soltou na gaiola outro canário, sobre o qual me lancei furiosamente, trucidando-o  em questão de poucos minutos. Senti o gosto de sangue de um semelhante e gostei!
                Minha dieta foi mudada, pois ao alpiste ele passou a adicionar uma sementinha esférica e de cor escura cuja ingestão me deixava extremamente agressivo ao ponto de, um dia, agredir minha fiel companheira o que fez o dono confina-la no outro ambiente até que me acalmasse, passando a adotar esse procedimento toda vez que adicionava tais sementinhas ao alpiste. Achei melhor assim, pois no estado de excitação que ficava, poderia até matá-la (esconjuro!).
                Começou então minha história de lutador. Em intervalos regulares o “dono” iniciava o ritual preparatório para os torneios: confinava Frida, introduzia as sementinhas na minha dieta e passava aos treinamentos propriamente ditos com as simulações no espelho e em outra gaiola. Não posso precisar de quantos torneios participei ou quantos semelhantes matei... Só sei que virei celebridade. O nome Spartacus era mencionado com respeito, admiração e temor. Não tenho orgulho disso, mas era matar ou morrer e escolhi a primeira opção. Dos torneio locais passei para os regionais e nacionais, sem jamais perder uma luta sequer.
                Nesse meio tempo, muitas outras coisas aconteciam em paralelo aos treinamentos e lutas e algumas passagens eram até engraçadas como esta: - Os pré eram aficionados por cinema a que iam semanalmente - os vesperais domingueiros dos quais retornavam já no final do dia, quando se sentavam sob minha gaiola para resenhar o que tinham assistido na tela. E foi assim que conheci muitos dos personagens que povoavam o imaginário deles: Roy Rogers, Dale Evans, Rin-tin-tin, Tarzan, Búfalo Bill, os Zorros: o original mexicano e o genérico americano com seu inseparável amigo Tonto, um índio aculturado. Dizem as más línguas, que o relacionamento deles ia além da amizade... Bom, deixa isso pra lá e vamos ao fato. Os pré estavam de mal (coisas de irmãos, sabemos) e, no domingo, quando o mais velho foi pedir à mãe dinheiro e autorização para ir ao cinema, ela condicionou que só iriam juntos e assim teriam que voltar. Sem remédio ele veio até a gaiola e gritou: “Spartacus, pergunta ao outro se ele vai ao cinema”! Foi a vez do mais novo aproximar-se e também gritar: “Spartacus, avisa pra ele que vou”! E assim foram e voltaram, como sempre no fim do dia e, para minha alegria, de pazes feitas... Sentaram-se ao pé da gaiola e resenharam os seriados e filme vistos...
                A vida seguindo seu curso normal: treinamentos, alimentação e torneios. Os pré cresceram e seus interesses mudaram, mas mesmo assim me davam a mesma atenção e cuidados, só o teor das conversas mudou: Meninas!
              Mas minha maior surpresa não veio través dos pré, aliás, agora adolescentes e sim do “dono”. Aproximou-se um dia da gaiola trazendo na mão uma caixinha de transporte. Aproximou-se, abriu a portinhola e começou a passar o dedo pelas talas, incitando-nos a sair. Hesitamos, mas a insistência nos levou a decidir e saímos. Assustados – Frida e eu – não nos afastamos muito. Pousamos numa árvore próxima para observar suas intenções. Ele encostou a caixinha na gaiola, abriu-a e pudemos ver o portentoso espécime que, por vontade do “dono” ocupou nossa “casa”. Era um canário grande como nunca vira, mas dos quais já se falava em nosso meio. Era da linhagem peruano gigante que aos poucos vinha substituindo os nativos nas rinhas de brigas. Alegres pela liberdade reconquistada, mas triste pela sensação de desprezo e, principalmente, pelo afastamento dos dois amigos. Resolvemos bater asas e retomar a vida entre os nossos. Mas o carinho e a dedicação daqueles dois revelou-se uma prisão, uma deliciosa prisão que nos fazia retornar àquela árvore todas as manhãs para acordá-los com nossos mais belos gorjeios... Eles abriam a janela e podíamos ver o brilho de felicidade em seus olhos. Além disso, num recipiente preso ao tronco da árvore, havia sempre uma boas porção de alpiste - só alpiste - que comíamos sem medo de qualquer surpresa...

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