A.J. de O. Monteiro
Era
então um jovem, fogoso e inexperiente canário da terra. Há pouco tempo dera meu
primeiro Voo e ensaiava os primeiros trinados necessários à conquista de uma
companheira. Passava meu tempo voando pela imensidão, parando apenas para
alimentar-me com o que a natureza me oferecia à sobeja: sementes e pequenos
insetos; parava também para ouvir o canto dos adultos, aprendendo com isso
todas as notas que tornam nossa espécie tão admirada.
Certo
dia, esvoaçando a esmo, avistei, no chão, o que me pareceu um lauto banquete.
Uma pilha de sementes, ali, a minha disposição... Inexperiente, não titubeei,
desci em voo picado, aproximei-me saltitante e comecei a comer avidamente. De
repente – vupt – tudo escureceu. Aturdido tentei alçar voo, mas esbarrava em barreiras
sólidas. Uma pequena réstia de luz surgiu para minha animação, mas, juntamente
com a luz, surgiu uma enorme mão que me agarrou firmemente, a ponto de quase
sufocar-me. De nada adiantaram meus guinchados nem as bicadas que desferia
naqueles dedos que me pareceram insensíveis à dor.
Trancado
em pequena caixa, percebi estar em deslocamento sem saber para onde, e nem por
que razão era submetido à tão cruel tratamento. Mesmo, até então, conhecendo
apenas o lado bom da vida, pressenti que o pior estava por vir.
Cheguei
a um lugar onde reinava o caos: pregões aos berros, guinchados desesperados e
cantos indistintos de diversas espécies engaioladas. Eram cantos tristes,
dolentes... A mesma mão que me prendera agarrou-me novamente e soltou-me numa
enorme gaiola atulhada de pássaros, alguns mortos e outros em agonia. Se existe
um inferno, pensei, aqui é a antessala: Suja, mal cheirosa... A comida, de
péssimo aspecto era jogada no “chão”, misturada às fezes e aos pássaros mortos.
Passado algum tempo me dei conta de que aquilo não era a antessala, era o
próprio inferno. A comida, como disse, imprópria para o consumo e a água,
insuficientes, eram disputada à bicadas, pernada e asadas, tornando o ambiente
ainda mais caótico... Insuportável! Sem fome – pois me alimentara bem antes de
cair na armadilha – empoleirei-me o mais alto que pude para observar melhor o
ambiente exterior. A balbúrdia era ainda maior que aqui dentro. Pessoas
caminhando de um lado a outro, gesticulando e falando alto. Ora paravam para observar
os pássaros; compravam ou seguiam em frente em suas avaliações. Pareciam todos
entendidos do assunto. Pilhas e pilhas de gaiolas expostas à venda, das mais
simples as mais sofisticada. Havia gaiolas para todos o gostos e bolsos.
Distraído, não vi aquela mão entrar na gaiola e novamente subjugar-me, agora
para ser entregue ao comprador. Este me colocou em uma caixinha de transporte
mais confortável, asseada e melhor arejada que a que me trouxe. Novamente em
movimento, afastando-me do barulho e mau cheiro da feira. Não demorou, chegamos
ao que imaginei ser o ponto final da jornada. Fui então transferido para uma
gaiola grande – daquelas mais sofisticadas que vira na feira – e sem nenhum
outro pássaro além de mim. Em que pese certo alívio, não me alegrei. Ainda era
uma prisão; bonita, mas uma prisão. Indaguei-me: estarei para sempre afastado
do meu espaço natural? Das árvores e do convívio com meus semelhantes em
liberdade? Era o que me parecia...
Do
dia em que cai na armadilha ou, melhor dizendo, que ela caiu sobre mim, entrei
em processo autodestrutivo: parei de cantar, minhas penas caiam em quantidade
assustadora e quase não comia, embora a boa e limpa, servida em cocho
apropriado, não me apetecia. Era bem tratado, é certo, gaiola asseada
diariamente, era posto ao sol, pendurado em árvore – a gaiola, claro – e
passeava e contava com uma bacia pra banho. Todos esses mimos eram da
responsabilidade dos dois pré-adolescentes da casa que, ao tempo em cuidavam da
alimentação e asseio da gaiola, conversavam comigo como se um deles fosse. Deram-me
um nome, até: Spartacus, talvez por saberem o que o futuro me reservava. Gostei
do nome.
O
convívio com os pré me deu novo ânimo até que um dia me peguei trinando como se
livre estivesse. Minhas penas se recompunham e me alimentava normalmente.
Quando me ouviram cantando, os dois entraram em êxtase... Pulavam e gritavam
chamando os demais da casa para me ouvirem. Fiquei feliz com a felicidade
deles. Dai em diante cuidei de viver a vida –mesmo privado da liberdade – da
melhor maneira possível, grato àqueles dois.
Como
se não bastasse, um dia o “dono” encostou na gaiola, a caixinha de transporte e dela saiu uma
bela canarinha que ficou no compartimento contíguo, pois, para os criadores,
manter a separação por uns dias é parte do ritual de acasalamento além de
evitar qualquer atitude hostil do macho em defesa do território, no caso, até
então só meu. Mal sabia ele que de imediato ansiei Tê-la em meus braços, digo,
em minhas asas, garras e bico. Lembrei que antes de ser preso andava em busca
de uma companheira. Imaginava-a bela, recatada e do lar – se alguém não sabe
que fique sabendo: nós canários somos monogâmicos. Quando o dono achou ser
tempo de nos juntar, abriu a portinhola do compartimento e ela, talvez tímida,
hesitou um pouco até vir a mim, mas veio e, por pudor, não relatarei o que
aconteceu depois no ninheiro da gaiola – segredos de alcova. Que era bela já
sabia; descobri ser do lar, mas nem um pouco recatada. Estava bem próximo da
felicidade, tinha a amizade dos pré, casa, comida e uma companheira, faltava-me
apenas a liberdade... Mas nada é perfeito...
Com
o passar do empo, minha rotina começou a mudar: recebia mais atenção do “dono” que
colocava minha gaiola em frente a um espelho e como não reconhecia minha imagem
refletida reagia ferozmente pensando tratar-se de outro macho querendo invadir
meus domínios. O “dono” parecia gostar de minha reação, pois sorria e balançava
a cabeça positivamente. Depois passou a encostar minha gaiola em outra,
habitada por outro casal de canários e minha reação era a mesma, de defesa
territorial e da fêmea. Era um programa de treinamento e não percebera ainda. Em
iniciou treinamento real. O “dono” transferiu Frida – esse foi o nome que os
pré lhe deram – para o outro recinto e soltou na gaiola outro canário, sobre o
qual me lancei furiosamente, trucidando-o em questão de poucos minutos. Senti o gosto de
sangue de um semelhante e gostei!
Minha
dieta foi mudada, pois ao alpiste ele passou a adicionar uma sementinha
esférica e de cor escura cuja ingestão me deixava extremamente agressivo ao
ponto de, um dia, agredir minha fiel companheira o que fez o dono confina-la no
outro ambiente até que me acalmasse, passando a adotar esse procedimento toda
vez que adicionava tais sementinhas ao alpiste. Achei melhor assim, pois no
estado de excitação que ficava, poderia até matá-la (esconjuro!).
Começou
então minha história de lutador. Em intervalos regulares o “dono” iniciava o
ritual preparatório para os torneios: confinava Frida, introduzia as
sementinhas na minha dieta e passava aos treinamentos propriamente ditos com as
simulações no espelho e em outra gaiola. Não posso precisar de quantos torneios
participei ou quantos semelhantes matei... Só sei que virei celebridade. O nome
Spartacus era mencionado com respeito, admiração e temor. Não tenho orgulho
disso, mas era matar ou morrer e escolhi a primeira opção. Dos torneio locais
passei para os regionais e nacionais, sem jamais perder uma luta sequer.
Nesse
meio tempo, muitas outras coisas aconteciam em paralelo aos treinamentos e
lutas e algumas passagens eram até engraçadas como esta: - Os pré eram
aficionados por cinema a que iam semanalmente - os vesperais domingueiros dos
quais retornavam já no final do dia, quando se sentavam sob minha gaiola para
resenhar o que tinham assistido na tela. E foi assim que conheci muitos dos
personagens que povoavam o imaginário deles: Roy Rogers, Dale Evans, Rin-tin-tin,
Tarzan, Búfalo Bill, os Zorros: o original mexicano e o genérico americano com
seu inseparável amigo Tonto, um índio aculturado. Dizem as más línguas, que o
relacionamento deles ia além da amizade... Bom, deixa isso pra lá e vamos ao
fato. Os pré estavam de mal (coisas de irmãos, sabemos) e, no domingo, quando o
mais velho foi pedir à mãe dinheiro e autorização para ir ao cinema, ela
condicionou que só iriam juntos e assim teriam que voltar. Sem remédio ele veio
até a gaiola e gritou: “Spartacus, pergunta ao outro se ele vai ao cinema”! Foi
a vez do mais novo aproximar-se e também gritar: “Spartacus, avisa pra ele que
vou”! E assim foram e voltaram, como sempre no fim do dia e, para minha
alegria, de pazes feitas... Sentaram-se ao pé da gaiola e resenharam os
seriados e filme vistos...
A
vida seguindo seu curso normal: treinamentos, alimentação e torneios. Os pré
cresceram e seus interesses mudaram, mas mesmo assim me davam a mesma atenção e
cuidados, só o teor das conversas mudou: Meninas!
Mas minha maior surpresa não veio través dos pré, aliás, agora adolescentes e sim do “dono”. Aproximou-se um dia da gaiola trazendo na mão uma caixinha de transporte. Aproximou-se, abriu a portinhola e começou a passar o dedo pelas talas, incitando-nos a sair. Hesitamos, mas a insistência nos levou a decidir e saímos. Assustados – Frida e eu – não nos afastamos muito. Pousamos numa árvore próxima para observar suas intenções. Ele encostou a caixinha na gaiola, abriu-a e pudemos ver o portentoso espécime que, por vontade do “dono” ocupou nossa “casa”. Era um canário grande como nunca vira, mas dos quais já se falava em nosso meio. Era da linhagem peruano gigante que aos poucos vinha substituindo os nativos nas rinhas de brigas. Alegres pela liberdade reconquistada, mas triste pela sensação de desprezo e, principalmente, pelo afastamento dos dois amigos. Resolvemos bater asas e retomar a vida entre os nossos. Mas o carinho e a dedicação daqueles dois revelou-se uma prisão, uma deliciosa prisão que nos fazia retornar àquela árvore todas as manhãs para acordá-los com nossos mais belos gorjeios... Eles abriam a janela e podíamos ver o brilho de felicidade em seus olhos. Além disso, num recipiente preso ao tronco da árvore, havia sempre uma boas porção de alpiste - só alpiste - que comíamos sem medo de qualquer surpresa...
Mas minha maior surpresa não veio través dos pré, aliás, agora adolescentes e sim do “dono”. Aproximou-se um dia da gaiola trazendo na mão uma caixinha de transporte. Aproximou-se, abriu a portinhola e começou a passar o dedo pelas talas, incitando-nos a sair. Hesitamos, mas a insistência nos levou a decidir e saímos. Assustados – Frida e eu – não nos afastamos muito. Pousamos numa árvore próxima para observar suas intenções. Ele encostou a caixinha na gaiola, abriu-a e pudemos ver o portentoso espécime que, por vontade do “dono” ocupou nossa “casa”. Era um canário grande como nunca vira, mas dos quais já se falava em nosso meio. Era da linhagem peruano gigante que aos poucos vinha substituindo os nativos nas rinhas de brigas. Alegres pela liberdade reconquistada, mas triste pela sensação de desprezo e, principalmente, pelo afastamento dos dois amigos. Resolvemos bater asas e retomar a vida entre os nossos. Mas o carinho e a dedicação daqueles dois revelou-se uma prisão, uma deliciosa prisão que nos fazia retornar àquela árvore todas as manhãs para acordá-los com nossos mais belos gorjeios... Eles abriam a janela e podíamos ver o brilho de felicidade em seus olhos. Além disso, num recipiente preso ao tronco da árvore, havia sempre uma boas porção de alpiste - só alpiste - que comíamos sem medo de qualquer surpresa...
Nenhum comentário:
Postar um comentário