sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O MISTÉRIO



Ananda Sampaio
                Vivemos em um mundo de cada vez menos acasos. Antes de conhecermos alguém, provavelmente já conhecemos sua rede social. E assim já temos um manancial de rótulos e análises precipitadas acerca do possível desconhecido. Assim, evitamos assuntos, cortamos ou alongamos o papo. E assim, vamos tecendo nossa rede de relacionamentos permeada pela pré-informação sobre o outro.
                Anteriormente, em um tempo não muito distante. As pessoas chegavam quase sempre como folhas de papel em branco. Certo que possivelmente houvesse algum conhecido em comum, ou algum conhecido do conhecido. Mas nada que pudesse oferecer um relatório sobre a biografia dos indivíduos. Tinha que haver conversa, contato visual, sonoro e gestos faciais — uma gama de caracteres que nos ajudariam a compor aquela pessoa ou o retrato particular que faríamos dela. Conhecíamos assim, um gesto estranho, uma voz dissonante daquele que imaginamos para ela, o modo de se vestir, o jeito de empostar a voz, o formato dos dedos. Sim, adoro observar o formato dos dedos das pessoas.
                E, aos poucos, na nossa balança íamos pondo os prós e os contras e decidíamos, por fim, se a relação estagnaria ali ou se perpetuaria até tempos distantes. Com isso, aprendi a gostar dos acasos. E tenho tentado lê-los, sempre que minha sensibilidade se diz disponível em meu agoniado espírito. Quando falta luz. Aprendi a gostar de quando a luz elétrica some. O que ela deixa é um silêncio, ao qual poucos estamos habituados, cessam, então, as tarefas que estavam sendo postas em andamento. Procura-se uma vela, deita-se no sofá. E o sussurrar do tique-taque do relógio é amplificado, e o céu mais estrelado, e o bichos que têm ouvidos mais aguçados que os humanos descansam e se refestelam com o engrandecimento do silêncio. E a lua aparece e a luz prata chega, finalmente até nós.
                Ouço, e como ouço a minha voz interior crescendo. O alívio das janelas abertas. Não só as da casa, mas as minhas próprias. As pessoas e suas silhuetas — que mais se parecem com almas vagantes. O contorno das coisas que se parecem menos com coisas e mais com projeções orgânicas, se permitem ser o que minha mente, equivocada pela ausência de iluminação, quiser. Nessa brincadeira de perceber o mundo pouco clarificado vejo o mundo mais sincero. No peito a voz, a voz. Eu existo, derradeiramente diante das coisas e suas sombras. Do silêncio e do delírio. Eu estou mais no mundo agora do que dantes quando aceito a impossibilidade de visualizar a aparência definida ao meu redor. A falsa definição das coisas, a inútil definição visível das coisas. É no mistério que mora a incerteza e, por isso, a verdade.

Um comentário:

manoel andante disse...

Minha querida, na minha idade, e depois de tanto viver, terminei por não acreditar em "acasos"...Deixa eu substuí-los por "imprevistos?" (não é correção, é coisa de velho e é só pra mim...beijo)