quarta-feira, 16 de maio de 2018

PERNAS TORTAS*




*No dia da convocação pra Copa, minha crônica sobre a última partida de um dos maiores jogadores de todos os tempos e protagonista máximo do mundial de 62: Mané Garrincha.

Daniel Cariello – Escritor**
14 de maio às 14:25

— Querem ver o Mané Garrincha jogar? - Perguntou meu avô. - Queremos! – Respondemos quase em uníssono meu pai, meu irmão e eu.
A proposta nos pegou de surpresa em meio a um almoço de Natal. Era uma chance imperdível de ver ao vivo o jogador sobre quem já havia escutado inúmeras histórias, trazidas pela memória infalível de meu pai e pelo lirismo de meu avô.
— Ele tem as pernas tortas, por isso mesmo ninguém conseguia pará-lo. Foi o grande craque da Copa de 62. – Dizia um.
— E chama todos os seus marcadores de João. Era comum deixá-los tão perdidos que acabavam caindo no campo, desconcertados. – Completava o outro.
— Uau – Espantávamos meu irmão e eu, garotos que sonhávamos jogar na seleção.
                A partida ocorreria em Planaltina, naquele 25 de dezembro de 1982. Era uma das exibições que Mané passou a fazer depois de pendurar as chuteiras, para descolar alguns trocados. Compramos os ingressos sem dificuldades, não estava cheio, e tratamos de escolher um bom lugar, do lado pelo qual ele atacava.
                Já com quase 50 anos, Garrincha não tinha mais o mesmo fôlego e nem a mesma saúde de seus anos de ouro, mas ainda era capaz de levantar as arquibancadas. Como ocorreu no momento em que dominou a bola no lado direito do campo e parou diante de um João, exatamente em frente onde estávamos. Ficaram, Mané e João, um encarando o outro, estáticos, a pelota entre eles, naquela calmaria que antecede a tempestade. O público prendeu o fôlego.
— Olha lá, Pedro, as pernas dele são tortas de verdade! – Sussurrei.
— E o que ele vai fazer agora? – Quis saber meu irmão.
— Não sei...

                Provavelmente nós dois éramos os únicos ali a não conhecer o roteiro que se seguiria, repetido inúmeras vezes ao longo da carreira do gênio da bola.
                Como se o tempo não tivesse passado, naquele momento o pequeno estádio Adonir Guimarães era o Maracanã e aquele João era Jordan, considerado o melhor marcador do gênio, Mané jogou o corpo pro lado. O João foi junto. Depois, balançou para o outro. O João bailou com ele. Em seguida, sacudiu novamente para a direita e, quando parecia que voltaria à posição inicial, deu um leve toque na redonda, levando-a consigo rumo à linha de fundo, de onde cruzou para um felizardo atacante. O João ficou para trás, sem saber o que havia acontecido.
                Não me lembro se o lance resultou em gol ou não. E isso não tem nenhuma importância. A sorte do dianteiro sobre quem me refiro era que, naquele momento, ele estava recebendo o último cruzamento de Garrincha, que saiu do jogo em seguida e da vida menos de um mês depois, em 20 de janeiro de 1983. A pequena torcida, encantada, aplaudiu pela derradeira vez o maior mágico do futebol de todos os tempos.
                Mais tarde, em uma justa homenagem, Mané Garrincha virou nome de estádio em Brasília. Depois desvirou, virou de novo e quase desvirou novamente, numa récita que parece a narração de seus dribles. Felizmente, depois de tantas reviravoltas, o episódio do nome terminou como as fintas do craque, deixando todos os joões para trás.

**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br

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