Gabriel Garcia Márquez |
A. J. de O. Monteiro
Estava concluindo a releitura o
livro CEM ANOS DE SOLIDÃO, de Garcia Márquez, quando, a sua maneira, meu amigo
e conselheiro, o Mago Manu materializou-se. Também a sua maneira me arrancou o livro das mãos e com aquele
olhar indescritível e determinado, disse:
— Vamos a Macondo!
— Mago – retruquei – Macondo não
existe. É apenas uma idealização do autor...
— É o que pensas... A verdade é
que o real e o imaginário caminham paralelamente e a fronteira entre essas duas
dimensões da mente humana é estabelecida por cada um nós, de pendendo do estado
e da disposição da alma. Se quisermos – prosseguiu – Podemos também eliminar as
barreiras temporais e viajar pelos cem anos de solidão da família Buendia que é
tão real quanto a tua e a minha...
Sem mais delongas o Mago
tomou-me pelo braço, girou sua bengala de bambu vietnamita sobre nossas
cabeças, produzindo um redemoinho, no qual embarcamos e desembarcamos num lugar
estranho, diante de uma enorme e estranha casa, de onde, naquele momento saia
um cortejo fúnebre – “pelo tamanho do caixão – imaginei – deve ser criança”. O
Mago aproximou-se do caixãozinho e a defunta, reconhecendo-o pelo olfato,
ordenou que retirassem a tampa. O Mago reconheceu sua valha amiga Úrsula que
abriu os olhos e, em questão de segundos – pois os mortos têm pressa – narrou
toda a miséria que se abateu sobre Macondo e sobre os Buendia desde a chegada
da companhia bananeira. A defunta ordenou que fechassem o caixão e
prosseguissem com o ritual da morte.
O Mago olhou pra mim com um
olhar de possuído, agarrou meu braço com tanta força que chegou a machucar-me,
girou sua bengala no sentido anti-horário, com tanto ímpeto que ao invés de um
redemoinho provocou um tornado que, sob seu comando, foi destruindo tudo que
restava de Macondo: Derrubou as ruínas estação ferroviária onde ocorrera o
massacre dos trabalhadores da companhia bananeira, retorcendo trilhos e
desencavando dormentes. Jogou no chão os escombros da vila vila de bangalôs do
Sr. Jack Brawn e lançou pelos ares as carcaças enferrujadas dos cadillacs e
máquinas agrícolas, varreu o campo em que outrora se plantara bananeiras e
tombou todos os apodrecidos postes da linha telegráfica. Deixou de pé apenas a
castanheira onde José Arcádio Buendia recebia a visita dos seus mortos, mas
arrancou pela raiz a paineira gigante de neerlândia, onde os conservadores
impuseram ao Cel. Aureliano Buendia o humilhante armistício.
Aquilo para mim foi um pesadelo, mas o
Mago, aos poucos, foi diminuindo a velocidade do tornado até torna-lo
redemoinho, do qual desembarcamos em frente a uma casa de barro e taquara, numa
aldeiazinha de poucas casas construídas do mesmo material – era Macondo nos
seus primórdios, disse-me o Mago. A aldeia era alegre e embalada pelos cantos
dos pássaros e o badalar dos relógios de parede, tão sincronizados que
reproduziam a melodia de uma valsa. Ouvi tropel de cavalos e tilintar de
sinetas e o céu da cidade tomado por tapetes voadores carregando crianças em
algazarra fazendo rasantes sobre nossas cabeças tentando arrancar o barrete do
Mago que se esquivava de todas as formas até perder a paciência e, irritado,
brandir a bengala fazendo parar os tapetes e virá-los jogando todos por terra.
Então, com alegria, ele disse:
— Os ciganos estão na cidade e,
com eles, certamente Melquíades, o segundo homem mais sábio e inventivo do
mundo.
A modéstia, com certeza, não é a
maior virtude do Mago...
Da casa saiu uma mulher jovial e
com ar determinado que ao Vê-lo correu em nossa direção rindo e dizendo de sua
surpresa e grande alegria que sua visita trazia para sua família.
— É Úrsula – disse o mago – a
matriarca dos Buendia.
Ela aproximou-se, abraçou
efusivamente o Mago, me ignorando completamente. Convidou-o a entrar e ele
entrou puxando-me pelo braço e fui, constrangido, mas fui.
Atravessamos o bem cuidado
jardim da casa e, já no interior, ela conduziu o Mago – e ele a mim – a um
quarto cheio de alambiques de alquimistas, serpentina e pipetas de todas as
formas onde José Arcádio Buendia e Melquíades, o cigano, diante de um
astrolábio, discutiam sobre a forma geométrica da Terra. Sem cumprimentar o
Mago – tão pouco, a mim – José Arcádio Buendia foi logo dizendo:
— Veja Mago, com o auxílio deste
instrumento conseguimos provar que a terra é esférica como uma laranja e isso
significa que podemos sair daqui e voltar ao mesmo ponto.
— É verdade... Nós podemos sair
daqui e retornar ao ponto de partida, mas a Terra não é esférica como uma
laranja, tem a forma de pera.
Enfiaram-se num interminável
debate de laranja e pera que já tomava rumo de bate boca não fosse a
intervenção de Úrsula que entrou com uma bandeja com uma chávena de chá de erva
cidreira e pães lamego – três xícaras e três pães. De qualquer forma, serenou
os ânimos e o assunto passou a ser as experiências de José Arcádio Buendia para
produzir ouro e suas expedições para encontrar um caminho que ligasse Macondo
ao mar.
Um pouco mais tarde Úrsula
retornou ao quarto trazendo consigo os dois filhos do casal e os apresentou ao
Mago – novamente fui ignorado. Este é Aureliano Buendia, que se tornará
Coronel, fará trinta e duas guerras e perderá todas; este é José Arcádio que
viverá longe, vagando pelo mundo, embarcado, mas voltará, para nosso tormento.
Úrsula retomou seus afazeres no
jardim e os meninos suas brincadeiras de cumplicidade, enquanto o Mago, José
Arcádio Buendia e Melquíades conversavam sobre os mais variados temas, em alto
magistério.
Ignorado por todos e incomodado
pelo intenso vapor de mercúrio que tornava o ar quase irrespirável no recinto,
sacudi a manga do roupão do Mago que me olhou com olhar de reprovação.
Disse-lhe com determinação:
— Mago, quero voltar! Isto tudo
está me deixando aturdido. Cansei dessa invisibilidade!
— Calma, ainda tenho uma última
missão a cumprir!
Despediu-se de todos e, sob
protestos, tomou-me mais uma vez pelo braço e descemos a rua poeirenta entre
cavalos de ciganos, bancas de bugigangas, agachando-nos aqui e ali, para
escapar dos rasantes dos tapetes voadores.
Aproximamo-nos de uma tenda cuja
entrada era guardada por uma gigantesca matrona com cara de maus bofes. Sem
mais nem menos o Mago bateu com a bengala no alto do seu cocuruto e a matrona
começou a inflar e inflar ao ponto de sair rodopiando pelos ares, assobiando
pelo fi-ó-fó, até sumir no infinito. Então ele me puxou para o interior da
tenda onde se encontrava uma jovem despida e deita sobre uma esteira para
receber tantos homens quanto aparecessem e pagar dívida contraída involuntariamente
com sua desalmada avó. A jovem era Cândia Eréndira, a quem o Mago mandou
levantar e com toques de sua bengala curou-lhe as escaras, vestindo-a com belas
roupas, dizendo-lhe:
— Vai, vai ser feliz na vida.
Tão logo cruzou a porta da
tenda, um garboso cigano que passava montado em cavalo ricamente arreado que se
encantou com a beleza de Cândida Eréndira, pediu-a em casamento e ali mesmo se
casaram sob as bênçãos do Mago Manu.
— Pronto, missão cumprida! Vamos
voltar!
Repetindo todo o ritual,
embarcamos no redemoinho e deixamos Macondo.
Já em casa, questionei-o:
— Mago, você perverteu a
história – àquela altura tudo aquilo me parecia real.
— Não se preocupe, a história será
refeita, pois é da natureza dos povos colonizados que habitam estes “Tristes
Trópicos”¹, fazer e desfazer suas miseráveis histórias...
¹ Cloude Lévi-Straus
*Editada
Um comentário:
Taí, uma viagem da qual eu devia ter participado, mas o traira do Ajom não permitiu
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