sábado, 15 de setembro de 2018

VIAGEM A MACONDO*

Gabriel Garcia Márquez




A. J. de O. Monteiro
               Estava concluindo a releitura o livro CEM ANOS DE SOLIDÃO, de Garcia Márquez, quando, a sua maneira, meu amigo e conselheiro, o Mago Manu materializou-se. Também a sua maneira  me arrancou o livro das mãos e com aquele olhar indescritível e determinado, disse:
               — Vamos a Macondo!
               — Mago – retruquei – Macondo não existe. É apenas uma idealização do autor...
               — É o que pensas... A verdade é que o real e o imaginário caminham paralelamente e a fronteira entre essas duas dimensões da mente humana é estabelecida por cada um nós, de pendendo do estado e da disposição da alma. Se quisermos – prosseguiu – Podemos também eliminar as barreiras temporais e viajar pelos cem anos de solidão da família Buendia que é tão real quanto a tua e a minha...
               Sem mais delongas o Mago tomou-me pelo braço, girou sua bengala de bambu vietnamita sobre nossas cabeças, produzindo um redemoinho, no qual embarcamos e desembarcamos num lugar estranho, diante de uma enorme e estranha casa, de onde, naquele momento saia um cortejo fúnebre – “pelo tamanho do caixão – imaginei – deve ser criança”. O Mago aproximou-se do caixãozinho e a defunta, reconhecendo-o pelo olfato, ordenou que retirassem a tampa. O Mago reconheceu sua valha amiga Úrsula que abriu os olhos e, em questão de segundos – pois os mortos têm pressa – narrou toda a miséria que se abateu sobre Macondo e sobre os Buendia desde a chegada da companhia bananeira. A defunta ordenou que fechassem o caixão e prosseguissem com o ritual da morte.
               O Mago olhou pra mim com um olhar de possuído, agarrou meu braço com tanta força que chegou a machucar-me, girou sua bengala no sentido anti-horário, com tanto ímpeto que ao invés de um redemoinho provocou um tornado que, sob seu comando, foi destruindo tudo que restava de Macondo: Derrubou as ruínas estação ferroviária onde ocorrera o massacre dos trabalhadores da companhia bananeira, retorcendo trilhos e desencavando dormentes. Jogou no chão os escombros da vila vila de bangalôs do Sr. Jack Brawn e lançou pelos ares as carcaças enferrujadas dos cadillacs e máquinas agrícolas, varreu o campo em que outrora se plantara bananeiras e tombou todos os apodrecidos postes da linha telegráfica. Deixou de pé apenas a castanheira onde José Arcádio Buendia recebia a visita dos seus mortos, mas arrancou pela raiz a paineira gigante de neerlândia, onde os conservadores impuseram ao Cel. Aureliano Buendia o humilhante armistício.
               Aquilo para mim foi um pesadelo, mas o Mago, aos poucos, foi diminuindo a velocidade do tornado até torna-lo redemoinho, do qual desembarcamos em frente a uma casa de barro e taquara, numa aldeiazinha de poucas casas construídas do mesmo material – era Macondo nos seus primórdios, disse-me o Mago. A aldeia era alegre e embalada pelos cantos dos pássaros e o badalar dos relógios de parede, tão sincronizados que reproduziam a melodia de uma valsa. Ouvi tropel de cavalos e tilintar de sinetas e o céu da cidade tomado por tapetes voadores carregando crianças em algazarra fazendo rasantes sobre nossas cabeças tentando arrancar o barrete do Mago que se esquivava de todas as formas até perder a paciência e, irritado, brandir a bengala fazendo parar os tapetes e virá-los jogando todos por terra. Então, com alegria, ele disse:
               — Os ciganos estão na cidade e, com eles, certamente Melquíades, o segundo homem mais sábio e inventivo do mundo.
               A modéstia, com certeza, não é a maior virtude do Mago...
               Da casa saiu uma mulher jovial e com ar determinado que ao Vê-lo correu em nossa direção rindo e dizendo de sua surpresa e grande alegria que sua visita trazia para sua família.
               — É Úrsula – disse o mago – a matriarca dos Buendia.
               Ela aproximou-se, abraçou efusivamente o Mago, me ignorando completamente. Convidou-o a entrar e ele entrou puxando-me pelo braço e fui, constrangido, mas fui.
               Atravessamos o bem cuidado jardim da casa e, já no interior, ela conduziu o Mago – e ele a mim – a um quarto cheio de alambiques de alquimistas, serpentina e pipetas de todas as formas onde José Arcádio Buendia e Melquíades, o cigano, diante de um astrolábio, discutiam sobre a forma geométrica da Terra. Sem cumprimentar o Mago – tão pouco, a mim – José Arcádio Buendia foi logo dizendo:
               — Veja Mago, com o auxílio deste instrumento conseguimos provar que a terra é esférica como uma laranja e isso significa que podemos sair daqui e voltar ao mesmo ponto.
               — É verdade... Nós podemos sair daqui e retornar ao ponto de partida, mas a Terra não é esférica como uma laranja, tem a forma de pera.
               Enfiaram-se num interminável debate de laranja e pera que já tomava rumo de bate boca não fosse a intervenção de Úrsula que entrou com uma bandeja com uma chávena de chá de erva cidreira e pães lamego – três xícaras e três pães. De qualquer forma, serenou os ânimos e o assunto passou a ser as experiências de José Arcádio Buendia para produzir ouro e suas expedições para encontrar um caminho que ligasse Macondo ao mar.
               Um pouco mais tarde Úrsula retornou ao quarto trazendo consigo os dois filhos do casal e os apresentou ao Mago – novamente fui ignorado. Este é Aureliano Buendia, que se tornará Coronel, fará trinta e duas guerras e perderá todas; este é José Arcádio que viverá longe, vagando pelo mundo, embarcado, mas voltará, para nosso tormento.
               Úrsula retomou seus afazeres no jardim e os meninos suas brincadeiras de cumplicidade, enquanto o Mago, José Arcádio Buendia e Melquíades conversavam sobre os mais variados temas, em alto magistério.
               Ignorado por todos e incomodado pelo intenso vapor de mercúrio que tornava o ar quase irrespirável no recinto, sacudi a manga do roupão do Mago que me olhou com olhar de reprovação. Disse-lhe com determinação:
               — Mago, quero voltar! Isto tudo está me deixando aturdido. Cansei dessa invisibilidade!
               — Calma, ainda tenho uma última missão a cumprir!
               Despediu-se de todos e, sob protestos, tomou-me mais uma vez pelo braço e descemos a rua poeirenta entre cavalos de ciganos, bancas de bugigangas, agachando-nos aqui e ali, para escapar dos rasantes dos tapetes voadores.
               Aproximamo-nos de uma tenda cuja entrada era guardada por uma gigantesca matrona com cara de maus bofes. Sem mais nem menos o Mago bateu com a bengala no alto do seu cocuruto e a matrona começou a inflar e inflar ao ponto de sair rodopiando pelos ares, assobiando pelo fi-ó-fó, até sumir no infinito. Então ele me puxou para o interior da tenda onde se encontrava uma jovem despida e deita sobre uma esteira para receber tantos homens quanto aparecessem e pagar dívida contraída involuntariamente com sua desalmada avó. A jovem era Cândia Eréndira, a quem o Mago mandou levantar e com toques de sua bengala curou-lhe as escaras, vestindo-a com belas roupas, dizendo-lhe:
               — Vai, vai ser feliz na vida.
               Tão logo cruzou a porta da tenda, um garboso cigano que passava montado em cavalo ricamente arreado que se encantou com a beleza de Cândida Eréndira, pediu-a em casamento e ali mesmo se casaram sob as bênçãos do Mago Manu.
               — Pronto, missão cumprida! Vamos voltar!  
               Repetindo todo o ritual, embarcamos no redemoinho e deixamos Macondo.
               Já em casa, questionei-o:
               — Mago, você perverteu a história – àquela altura tudo aquilo me parecia real.
          — Não se preocupe, a história será refeita, pois é da natureza dos povos colonizados que habitam estes “Tristes Trópicos”¹, fazer e desfazer suas miseráveis histórias...
¹ Cloude Lévi-Straus
*Editada

Um comentário:

Anônimo disse...

Taí, uma viagem da qual eu devia ter participado, mas o traira do Ajom não permitiu