Daniel Cariello*
Ontem,
o Joaquim Ferreira dos Santos decretou a morte da crônica de amenidades. O
motivo do falecimento, revelou o cronista, era a absoluta falta de amenidades
neste momento tão grave pelo qual passamos. A crônica de amenidades teria
vivido de 1910, com João do Rio celebrando a alma encantadora das ruas, a 2020,
ano onde não há encantamento possível.
Gostaria
de informar que o talentoso escritor é um péssimo necrologista. E ainda bem.
Seu anúncio foi feito em forma de crônica, vejam só, amena, apesar da gravidade
dos fatos narrados, os espetáculos macabros desse circo de horrores coletivo em
que vivemos.
O
texto de Joaquim Ferreira dos Santos é o grito dos que não gostam de gritar,
porque entendem que a força das palavras não vem do volume da voz. Nem sei se
ele fala baixo ou alto, na verdade, não o conheço e jamais o vi em vídeo. Mas
essa é a impressão que tenho ao ler seus textos semanais, de uma delicadeza
preservada até na hora de protestar.
Pensava
nisso quando topei com uma imagem que me trouxe imediatamente para uma
realidade dura e sem nenhuma possibilidade de poesia. A capa do jornal O Estado
de Minas dessa terça-feira, 2 de junho, trazia o título “2020 - O ano em que
não podemos respirar” e comparava os momentos atuais de Brasil e Estados Unidos,
países recordistas em número de vítimas na pandemia e palco de protestos
anti-racismo cada vez mais inflamados.
O
Estado de Minas tem feito capas fortes, críticas e impactantes quase
diariamente. Um belo e necessário trabalho capitaneado pelo editor-chefe Carlos
Marcelo Carvalho, colega de jornalismo e de rock brasilienses. Carlos Marcelo
comentava, no post de um amigo em comum: “mais do que reproduzir os fatos do
dia anterior, é preciso, de vez em quando, tentar capturar o ‘estado das
coisas’”.
E
o estado das coisas, nesse momento, é esse que todos vemos aí: uma distopia que
entristece, deprime, revolta, adoece e mata. Resultados que satisfazem os
governantes de ambos os países, contentes de utilizarem plenamente o poder de
destruição que têm em mãos.
Assim
como Joaquim e Carlos Marcelo, também sou jornalista e escritor. E também me
angustio em busca das palavras corretas para relatar esse momento.
De
dia, como jornalista, preciso explicar para estrangeiros o que acontece no
nosso país, tentando passar junto com os fatos um fio histórico para melhor
entenderem quem somos como povo e como chegamos até aqui. Não é tarefa fácil
para mim e menos ainda para eles, com essa nossa realidade superando qualquer
alucinação em grande velocidade.
De
noite, como escritor, não tenho vontade de transformar essas notícias em
crônicas e contos. Acho que não há nada que eu possa escrever ou mostrar que já
não esteja escrito ou mostrado em tantos outros lugares e melhor do que eu
faria.
Prefiro
comentar uma conversa com uma amiga amada. Refletir sobre o que tem mudado em
mim e no pequeno mundo ao meu redor. Inventar esquetes para amigos atores.
Falar de amenidades, baixinho, sem levantar a voz, porque resistir de pé e
jamais abaixar a cabeça também são atos políticos.
--
Esse texto faz parte da série
"Crônicas isoladas", que continuará durante a quarentena.
* Daniel Cariello é escritor. Foi cronista de veículos como Veja Brasília, Le Monde Diplomatique Online e Revista Pix. É autor de Chéri à Paris e Cidade dos Sonhos. Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Paris www.cheriaparis.com.br,
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