sexta-feira, 1 de julho de 2022

A SUCESSÃO



A. J. de O. Monteiro

            Durante o período de isolamento causado pela pandemia do COVID-19, a comunicação entre eu e meu velho de grande amigo Mago Manu tem se dado por via telepática, quero dizer ele, pois não domino a técnica – recebo, mas não envio. Quando o contato exige resposta, uso o velho e arcaico – segundo ele, celular. Neste último final de semana, logo cedo, o “zunido” característico pôs meu cérebro em alerta e a ordem foi peremptória: “venha a minha casa”!

            Com a pressa que meios humanos me permitem fui ter com o grande Guru. Seria o primeiro encontro presencial em dois anos. Claro que fiquei ansioso e preocupado.

            Sempre que convocado, ao chegar, já encontrava o Mago a me esperar no “alpendre”, cercado pelos pássaros livres que ele alimenta fartamente com rações apropriadas para cada espécie que frequenta diariamente o jardim da casa: rolinhas, bem-te-vis, canários da terra e, ultimamente, até uma pipira, espécie que rareia no meio urbano. Desta vez fui conduzido ao seu escritório onde passa a maior parte do dia e o encontrei entre os seus preciosos livros de filosofia, ciências políticas, histórias da humanidade e outros de temas diversificados.  No escritório há um armário fechado a chave, da qual não desgruda e ao qual não permite o acesso a ninguém, nem a mim que ele diz ser a pessoa em quem mais confia. No móvel, diz, encontram-se os registros dos dois mil anos de sua estirpe; as fórmulas de cura que usa e os segredos da Bengala de Bambu Vietnamita, que é, em síntese, a fonte de seus poderes sobre-humanos.

            O Mago que vi, ali, sentado à escrivaninha e com quem estivera antes das restrições impostas pela pandemia, em nada lembra aquele de então. Achei-o bastante debilitado, gesticulando lentamente e com voz quase inaudível. Quanta diferença do ágil – quase serelepe – Mago que desafiava quaisquer dificuldades e enfrentava outros quaisquer perigos que se lhe apresentassem, com a força de sua mente e a magia de sua poderosa Bengala. Ao pressentir minha presença, com o queixo indicou uma cadeira e falou com firmeza: Sente-se! Obedeci e antes que tivesse totalmente acomodado falou:

— Tenho muito a falar. Tens tempo para ouvir-me?

— Claro Mago, todo o tempo que for preciso.

— Como vês, estou bastante debilitado... Teu semblante denuncia que que estás chocado ante esta figura que se te apresenta...

— Não meu caro amigo, não te vejo assim...

            Antes que concluísse esbravejou como nos velhos tempos: “Não queiras negar o que teus olhos afirmam...”

            Calei e ele prosseguiu:

— Já te falei sobre a origem da minha estirpe e da lenda – porque é lenda – da imortalidade do mago, lembras?

— Sim, meu caríssimo, foi quando você me comunicou que seria homenageado, no carnaval de 2015, por uma Escola de Samba com o enredo “Mago Manu, Dois Mil Anos de Sabedoria”*.

— Certo. Ali expliquei tudo e és, até agora, a única pessoa com quem compartilhei esse segredo...

            Baixou os olhos, pigarreou – também como nos velhos tempos – e continuou solene:

— Sinto que chegou a hora de passar o bastão, digo, a Bengala a um sucessor... A tradição é que o processo ocorra entre os membros varões da estirpe, tendo o primogênito do atual depositário dos segredos da Bengala, como primeiro pretendente e, sucessivamente, em linha cronológica, os demais filhos, netos, bisnetos, etc. Não são pretendentes, os parentes colaterais...

            Pedi vênia para uma observação:

— Só os descendentes varões Mago, isso não é preconceito de gênero? Veja o exemplo da Inglaterra onde mulheres assumem o trono e empunham o cetro...

            Ele respondeu como o velho Mago:

— À favas com a Inglaterra! As regras da nossa sucessão são essas... Milenares e imutáveis... E, por favor, não me interrompa mais com observações descabidas... Mas, veja o impasse em que me encontro: Já preparava a iniciação do primogênito quando este, justo no dia do meu aniversário afrontou minha dignidade patriarcal...

            Timidamente perguntei:

— Como assim Mago?

— Naquele dia, justo naquele dia de regozijo e celebração, ele me aparece com uma enorme caixa embrulhada em vistoso papel colorido. Até me animei: “Puxa, que presentão”! Com um amplo sorriso anunciou: “aqui está seu presente” e, em atos contínuos, começou a desfazer o embrulho, abrir a caixa e montar uma geringonça sob meu atento e curioso olhar. Sem conseguir identificar a “coisa”, perguntei:

— Mas o que é isso, meu filho?

— Um andador...

— E para que serve?

— Para lhe proporcionar mais segurança ao caminhar... Vou demonstrar...

            Percebi que a fisionomia do velho amigo transmutava. A ira dos velhos tempos transparecia por inteiro em seus olhos e com voz alterada prosseguiu:

— Com a maior desfaçatez postou-se diante de mim e começou a demonstração: -“É assim: o Sr. segura nas barras laterais, adianta o aparelho – para mim geringonça – da dois passinhos e para; adianta novamente, dá dois passinhos e para. Quer experimentar? Quero, respondi. Postei-me, adiantei a “coisa”, dei dois passinhos e parei. E assim, adiantando e dando dois passinhos segui até o terraço onde, reunindo as forças que me restam, desferi golpes de Bengala na geringonça até reduzi-la a um monte de alumínio retorcido ante o olhar atordoado de todos os presentes... -“Mas pai – balbuciou ele – esse andador custou caro e minha intenção foi apenas protegê-lo”...      “Proteger-me de quê?   Para isso tenho minha Bengala e é o que me basta”! Dito isso fui para meu quarto, tranquei-me e de lá gritei com toda a força pulmonar que resta após mais de trinta anos de cigarro “racha peito”: FIM DE FESTA!

            Ofegante, como se ainda vivesse o momento, continuou:

— Resolvi então sustar o processo sucessório nos modos regrados pela tradição e buscar uma alternativa que permita dar prosseguimento a linhagem, por isso o convoquei.

            Gelei, mas procurei argumentar:

— Mas Mago, e os demais membros da linha sucessória?

— Nenhum tem o perfil adequado a assumir as tão nobres missões que são acometidas a um Mago: Uns são ineptos, outros desinteressados e outros mais são pândegos. Nenhum tem pulso para empunhar a Bengala e com ela distribuir justiça àqueles que necessitam. Na verdade iriam desconstruir uma história milenar, escrita por homens de alto valor moral e reputação ilibada. Ante esse impasse resolvi passar-te a incumbência de levar adiante essa nobre missão. Aceite! Você tem todas as virtudes necessárias para empunhar a Bengala.

— Mas Mago, e as regras milenares e imutáveis?

— Às favas com as regras milenares e imutáveis. Assim como neste País se muda a Constituição, vou mudar as regras pelo bem da humanidade.

— Mago, apesar da lisonja do convite, não posso aceitar, não tenho todas essas virtudes que você enxerga através da lente da amizade que mascara os defeitos que possuo.... Não Mago, infelizmente pela primeira vez vou contrariá-lo. Não tenho a dimensão que me permita assumir tão nobre, mas excessivamente pesada missão para meus frágeis ombros. Lamento decepcioná-lo...

            Ele fechou os olhos, suspirou profundamente e apenas sussurrou: “É o fim da linha. Pode ir, mas volte quando quiser. Não vou mais te convocar” ...

*Deu Escocês No Samba

3 comentários:

Anônimo disse...

Maravilhosa história

Simone LM disse...

Bonita e triste 😔

Brogue da Tia corina disse...

Seu Zé, há tempos que leio contos, histórias, poemas, versos, assisto o jornal, e atualmente pantanal; hoje entretanto, já no final do jornal e início da novela, resolvi abrir o Brogue da Tia Corina, e de pronto iniciei a leitura que me fez ficar completamente ausente do que assistia, atentamente fui percorrendo as linhas tão bem escritas, de A Sucessão, de um contágio embriagador nunca sentido, percebendo a cada palavra uma enorme amizade entre dois seres humanos, uma confiança absolutamente descomunal na visão de qualquer leitor. Joguei até os chinelos fora dos pés para sentir o chão no sentido de firmar a emoção que me veio a continuar a leitura de ato tão sublime, sim, tão sublime a primeira confiança ao indicar um novo sucessor, e não tão menos sublime a posição de não aceitar a missão. De verdade nunca vi nada igual , porém bem antes dessa pandemia lembro-me bem de um encontro em que voçês dois estavam presentes, e a conversa fluiu eloquente e elegante, de uma cultura a toda prova, diria aqui ao terminar, com uma emoção tão boa ao ter tido a oportunidade de fazer uma doce leitura. Obrigado.