sexta-feira, 8 de julho de 2022

SONHO




Marcelo D'Alencourt*

Caminho pelas ruas desde cedo com balinhas pra vender. Não tenho a menor ideia de quando saí de casa hoje. Quatro ou cinco da manhã? Por aí. Trem lotado. Consigo entrar com o uniforme de um menino que estuda numa escola pública aqui perto. Deve ser legal, né? Nunca fui. Morro de curiosidade. Dizem que é importante. Acho que ainda não tenho idade. Oito anos já é hora? Bem, deixa isso pra lá. Continuo caminhando e oferecendo os doces. De vez em quando alguém compra e pergunta se estou estudando. Sempre minto respondendo que sim. Isso aumenta os trocados. Será que é pecado? Todo dia é a mesma coisa. Salto às 7h na Central e peregrino pelo Centro, Catete, Flamengo, Copacabana...Teve um dia que virei a madrugada e andei até a tal da Barra. Altos e maneiros prédios. Só bacana por lá. Deve ser legal ser assim, né? Roupa nova, bom perfume, carrões e meninas pra namorar. Procuro não pensar. Dói muito no peito. Sigo em frente e foco nas vendas. Preciso fazer cinquentinha por dia, senão nem em casa entro. É bom porque às vezes economizo energia dormindo na rua mesmo. A crise está terrível. Ganhava mais. Hoje apertou muito. Até que chega Jorjão. Um cara mal encarado que me dá logo um soco no ouvido. Isso zune horrores. Me acalmo e me restabeleço. Quando dou conta já estou sem a grana. Ele joga minha caixa de balas no chão, pisa e ainda diz que é legal porque não as levará. Que ódio. Minha vontade era trazer o oitão que tenho escondido e detonar esse fdp. Por enquanto, não. Mas no futuro com certeza! O desânimo misturado ao suor e cansaço me tomam por completo. Sento na calçada quente. O sol está de matar. 50 graus na sombra. Pqp! Desculpem o palavrão. Feio. Vamos adelante! Ouvi isso de um argentino uma vez. Bonito, né?!? Ando treinando. Queria mesmo era falar o tal do "english". Chego lá! Sigo em frente. Paro num sinal, finjo que manco e defendo uns trocados. Pouco, mas já é algo. Fico muito triste porque ninguém me vê. Tanto os que dão quanto os que não molham a minha mão. Tudo igual. Peço uma água no bar. O garçom a entrega quente e diz pra eu vazar senão o segurança me mata. E é pra não voltar mais! Deus, onde você está? Dizem que você é tão bom. Me ajuda! Paro pro almoço. Um pão com manteiga passado que uma alma caridosa me deu quando saí daquela espelunca. Continuo depois a minha jornada sem saber ao certo onde estou e pra onde vou. Perdido e sem rumo. Dizem que é bom. Não importa. Já anoitece. Pergunto a um rapaz que lugar é aquele e ele rosna "Leblon!". Só e segue adiante. Simpático. A maioria sequer me olha. A fome aperta. Paro pra ver um treino de futebol na praia. Como gosto e faço bem aquilo quando dá. Uniforme, bola, técnico, rede e até juiz! Chique! Fico ali observando e me vem uma enorme felicidade misturada ao cansaço. Meto a mão no bolso e tiro duas balas que sobraram do ataque. Eu as devoro rapidamente. Meu jantar! Não devia fazer isso porque com elas faço o dinheiro pra poder voltar pra casa e dormir um pouco. Isso quando consigo. Odeio ver aquele bêbado batendo e maltratando minha mãe com aquelas crianças todas berrando ao mesmo tempo. Arghhhh! Que inferno.

Se pudesse tocava fogo naquele barraco. De repente, a bola bate em mim. Todos me olham e esperam que a entregue de volta. Levanto calmamente, puxo a pelota com os dois pés, um por cima e outro por baixo, a domino e começo a fazer embaixadinhas. Trinta, quarenta, ombro, outro ombro, peito, volto pro joelho, faço uma sequência e, pra finalizar, jogo ela pra cima e paro na cabeça igual a um tal de Pelé que uma vez vi fazer numa tevê de loja. Dizem que ele jogava muito mas prefiro o Messi. Não sei quanto tempo levei pra fazer tudo aquilo. Todos param e me olham. Aplausos. Deve ser pra outro. O técnico vem e me pergunta se não quero treinar com eles. Por um momento tive o prazer de sentir alegria, a possibilidade de uma vida e de ser alguém. De poder ajudar a minha família. Logo volto a mim e, bastante assustado, corro pra fugir dali. Isso tudo não combina comigo. O técnico vem atrás. Me assusto e corro mais ainda. Algumas pessoas começam a gritar "pega ladrão". O técnico para e diz que não. Que sou jogador do time e fica pra trás paralisado. Eu continuo em disparada. Não paro. Vou assim até onde minhas pernas aguentam. Na última vez que me prenderam eu apanhei tanto, mas tanto, que quase fui dessa pra melhor. Dei sorte. Caio na areia da praia e choro. Fico ali durante algumas horas. As pessoas passeiam calma e tranquilamente sem me notar. Fica tarde. Tenho medo do escuro. Uma mulher ainda nova e muito bonita se aproxima e pergunta se está tudo bem comigo. Me assusto e não respondo. Ela mira meus olhos e diz que vê uma bola de futebol preto e branca em cada um deles. Diz ainda que me viu fazer o malabarismo e pergunta se meu sonho era ser jogador de futebol. Levanto devagar pra não assustá-la, agradeço a gentileza e vou embora sem responder, mesmo porque não sei o que quer dizer sonho. Gente estranha! Já é tarde quando avisto dois playboys se aproximarem com uns baseados. Peço um trago e eles correm assustados, largando tudo pra trás: celulares, carteiras, relógios e o principal, os backs! Pego o tóxico e o resto fica no chão. Não sou nem nunca fui ladrão. Isso minha mãezinha querida me ensinou. As lágrimas rolam no meu rosto quando lembro dela bem, sem as malditas drogas. Vou até o mar e sento na areia. Olho aquela imensidão negra e me pergunto onde aquilo tudo vai dar. Que loucura! Acendo o baseado e trago profundamente. O frio intenso vai sumindo. Deito. Imagino a areia como a barriga da Ritinha. Começo a desfalecer. A tranquilidade me invade. O mar bate mais forte e, quente, toca as minhas pernas. As ondas aumentam e começam a me levar. Ainda tenho consciência mas faço questão de ficar quietinho pra adormecer logo. Sinto em seguida a água entrar e encher meus pulmões. Faço uma última oração. Dizem que é bom pra proteger. Já não consigo respirar. Não reajo porque também não sei nadar. Que diferença faz? Meu corpo não toca mais o fundo. Estou em paz e tranquilo agora. Que bom. Amém!

*Marcelo é Cientista Político

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom texto