terça-feira, 12 de junho de 2012

MAMÃE GELADEIRA

A. J. de O. Monteiro


Nestes últimos dias o mundo inteiro acompanhou emocionado o drama de uma pequena baleia (um filhote de jubarte) que, tendo se perdido da manada e, consequentemente da mãe, confundiu-a com um iate ancorado em uma marina na costa australiana e do qual tentava desesperadamente obter leite, o sagrado leite materno. O indigitado animal, levado pelo mais primitivo dos instintos, o da sobrevivência, fora enganado por um objeto estranho ao seu “habitat” e lá ficou, ao lado da máquina que nada lhe podia dar a não ser resíduos do venenoso óleo derramado de suas entranhas.


Muitos técnicos em vida marinha, ecologistas e populares envolveram-se em tentativas de salvar o pequeno cetáceo que, cada dia mais desnutrido e em lenta agonia recusava-se afastar-se do barco. Diante disso, para evitar que o animal tivesse uma morte lenta e sofrida, todos os envolvidos, após muita discussão resolveram abreviar-lhe o sofrimento através da eutanásia. Segundo eles o animal morreu sem dor.

Tal drama, embora vivido por um animal, fez-me recordar uma passagem semelhante ocorrida nesta nossa cálida Teresina de tantas curiosidades.

Um amigo, um bom amigo, cujo nome não citarei para não expô-lo novamente e já na idade madura à curiosidade pública, foi personagem de uma situação no mínimo kafkiana. O fato me foi contado por um irmão seu de quem também não citarei o nome pois implicaria na mesma inconveniência que quero contornar.

Assim aconteceu:


Em uma determinada noite de nosso escaldante verão o então pré adolescente, durante o tradicional convescote familiar daqueles tempo sem telenovelas, adormeceu no sofá da sala e assim ficou até a hora que seu pai julgou conveniente que ele se recolhesse ao quarto a fim de não motivar qualquer atraso para o colégio no dia seguinte. Acordou e, não se sabe por qual razão, atordoado, dirigiu-se à geladeira e disse: “SUA BÊNÇÃO, MAMÃE!” Era uma robusta gelomatic que há anos servia fielmente à família.

Os familiares que ainda permaneciam na sala observaram mas não deram nenhuma importância pois sabiam que o menino era brincalhão e vivia aprontando pegadinhas com todos. Os dias se passavam e o ritual se repetia. Pela manhã ao acordar e à noite: “SUA BÊNÇÃO, MAMÃE!” Inicialmente, pela repetitividade da coisa, os familiares foram se aborrecendo e diziam: “Para com isso fulano, já está sem graça”. No que ele retrucava: “Agora estou proibido de pedir a bênção à minha mãe? Só faltava essa!” A família então passou a se preocupar pois o ritual não cessava e, paralelamente a isso observaram que ele dispensava um tratamento frio e distante a sua mão biológica. A estóica senhora por seu lado sofria calada, apenas esperando que aquilo passasse e sempre repetia: “calma gente, logo, logo ele esquece isso. Não se irritem com nosso menino. É apenas esquisitisse de adolescente”. Um dia, já com saudades dos carinhos e afagos que sempre recebera de seu filhinho entrou em seu quarto, afagou-lhe o rosto e beijou-lhe a testa dizendo baixinho: “boa noite querido, durma com os anjos”, no que ele acordou, saltou da cama e, de dedo em riste gritou: “NÃO É A MAMÃE, NÃO É A MAMÃE!” A bondosa senhora, chocada e abatida retirou-se para o quarto do casal onde o marido a esperava repetindo sempre: “Calma querida, vai passar”.

A cada dia novos elos se formavam naquela relação espúria. O menino não gostava do chapéu que a mãe-geladeira usava e insistia: “mamãe, joga fora este chapéu ridículo, ele não combina com sua elegância e altivez, joga, mamãe, que eu lhe dou um outro mais novo e mais
bonito”. Mas a mãe não lhe dava ouvidos e continuava usando o chapéu que o menino abominava.Um dia, sem nada falar resolveu dar fim naquele tormento, foi ao seu quarto, pegou sua espingarda de ar-comprimido e..., CATAPIMBA! reduziu a cacos o prosaico pinguim de porcelana chinesa que o pai comprara em viagem que fizera com a esposa ao Paraguai e presenteou sua mãe-geladeira com um brilhante e vistoso chapéu que até então compunha a fantasia de guarda da rainha com a qual se esbaldara no último carnaval. Essa foi a gota d'água. A família criou um gabinete de crise e resolveu procurar auxílio médico. Levaram-no primeiro ao melhor psicanalista da cidade o qual ouviu atentamente a estória e disse: “vou tratá-lo, não se preocupem não é nada sério é apenas um desvio de foco emocional ocasionado por uma vontade contrariada. Na próxima semana iniciaremos as sessões psicoterapêuticas”. E assim foi. Duas semanas depois o psicológo chamou os pais para comunicar-lhes que não mais iria continuar com o tratamento pois o garoto era muito dissimulado, desviava as questões com muita habilidade não o deixando prescutar-lhe o inconsciente onde, acreditava ele, o problema residia. Os pais se desesperaram e resolveram levá-lo a um psiquiatra. O resultado foi o mesmo. Levaram-no a terreiros de macumba, chamaram rezadeiras, benzedeiras, padres e pastores exorcistas e nada, a fixação do garoto na geladeira era a cada dia mais intensa.

Diante de todos esses insucessos, o gabinete da crise familiar deliberou então que o melhor a fazer seria proteger o garoto da curiosidade popular pois, como pré-adolescente, era ainda muito suscetível e poderia ficar marcado para o resto da vida. Já pensaram se quando ele se tornar rapaz resolve namorar com uma frigobar? - Perguntou o pai. Todos aquiesceram. A partir dali só sairia acompanhado, contratariam professores particulares para não prejudicar a formação escolar. Enfim, fizeram o possível para preservá-lo. De nada adiantou. O próprio menino se encarregava vazar o caso. Quando recebiam as então frequentes visitas sociais ele pegava o(a) visitante pelo braço e o(a) conduzia até a sala das refeições para lhes apresentar a mãe geladeira, exaltando-lhe as virtudes de mãe extremosa. “Vejam, dizia ele, esta é minha mãe, ela cuida de mim com um zelo exemplar, me alimento na hora que quero, matar minha sede quando estou sedento, me dá refrigerantes na hora que preciso, não me impõe limites exagerados, ela é, simplesmente uma super-mãe e tem uma belíssima luz interior...” O resultado disso é que a estória caiu na boca do povo para maior desespero da família. Foi um pandemônio. A rua se transformou num verdadeiro mercado persa. Vinha gente dos quatro cantos da cidade para ver o filho da geladeira. Com essa gente vieram também ambulantes de toda ordem vender tudo quanto era de produto: bancas de cachorro quente, gelado, pasteis, churrasquinho de gato e até bonequinhos do menino chegaram a fazer. Era uma algazarra infernal, carros passavam buzinando... A multidão postada à porta da casa griva incessantemente: QUEREMOS VER O FILHO DA GELADEIRA! e ele, inocente e encantado com aquilo tudo ia até a sacada do andar superior do sobrada e saudava solene a turba que delirava, principalmente quando tal qual um jogador de futebol ele desenhava no ar um imaginário coração e simulava atirá-lo para a platéia. Um show! A rua e a casa simplesmente entraram para o roteiro turístico de uma cidade que era e é carente de atrações. Os jovens quando combinavam seus programas de finais de semana (filmes no cine Royal, praça PII, tertúlia no clube dos diários, etc.) já incluíam antes uma passadinha pela rua da casa do filho da geladeira.

Os mistérios da vida são insondáveis. Eis que, àquela época, peregrinava por Teresina um andarilho paraibano que tomando conhecimento do caso resolveu passar pela tal rua e tentar conhecer o tal menino. Lá chegando ficou a observar o tumulto e percebeu a aflição da família ante a confusão formada e deliberou ajudar. Não se sabe como conseguiu entrar na casa e, com seu jeitão confiável obteve a atenção da família. Objetivo como um economista disse: “não pude deixar de me comover com a situação de vocês. Não tenho o remédio para curar a pobre criança mas conheço quem o tem. Ao entrar em Teresina pelos lados da Mata do Soim, conheci um ermitão, um santo Homem que resolveu isolar-se do mundo em busca de purificação após uma frustração política. Esse Homem conhece a mente humana como ninguém e tenho certeza que ele encontrará a cura para o garoto mas, de antemão advirto, é um homem furioso, irascível mesmo, será preciso muito, muito tato ao abordá-lo, qualquer ato falho poderá despertar-lhe a fúria e aí então ele se transforma de santo num verdadeiro monstro”. Dito isto levantou-se e falou: “tenho que ir, uma farinhada me espera”. E se foi tão misteriosamente como chegara.

À noite, com a rua já retomando o seu tradicional sossego, o pai convocou o gabinete da crise para avaliar os acontecimentos do dia, principalmente a aparição do misterioso andarilho e seus conselhos. Eles já estavam cansados de tentativas frustantes e temiam fosse esta mais uma. Apenas a mãe biológica mostrou-se disposta a tentar e tanto insistiu que os demais, até por compaixão, concordaram. Resolveram então que o pai iria acompanhado de dois amigos da maior confiança pois sendo o local indicado uma mata virgem e habitada por animais selvagens não se iria colocar a vida dos demais – a mulher e as crianças, em risco. Organizaram a expedição em segredo para não despertar a atenção do povo que poderia querer acompanhá-los e com isso abortar um possível sucesso da empreitada.

È bom esclarecer de logo que o tal mago, conhecido como Mago MANU, tornou-se um misantropo após uma incursão mal sucedida pela política e, zangado, resolveu internar-se na Mata do Soim em busca de paz e conhecimentos. Protegia-o das intempéries uma pequena lapa escavada na rocha. Com o passar do tempo, começou a desenvolver habilidades pisicossomáticas incríveis: Comunicava-se com os animais silvestres por um método telepático que só ele conhecia e com os quais em perfeita simbiose ele os protegia e era protegido por eles. Alimentava-se apenas de raízes e frutos típicos da região. Água ali era abundante, bastava o mago apontar o dedo amarelo de nicotina (herança dos tempos de tabagista) que o líquido puro e cristalino brotava, fosse do barro, fosse da rocha. À noite os animais se afastavam por ordem do Mago que então se voltava à meditação e ao contato com os seres encantados da mata. Recebia elfos, duendes, o saci pererê, a mula-sem-cabeça, o lobisomem, o cabeça-de-cuia e outros tantos menos cotados e em volta da fogueira que o Mago acendia apenas com a força do olhar, passavam a noite falando mal dos políticos e inventando aventuras sexuais.

Os expedicionários saíram antes do cantar dos galos para não despertar curiosidades e com os primeiros raios do sol já avistavam a Mata do Soim que não era muito distante. Estavam apropriadamente vestidos, inclusive usando perneiras para se protegerem de picadas de cobras, chapéus estilo safari e levavam mantimentos e uma caixa de primeiros socorros, para qualquer eventualidade e, ainda, um tosco mapa que o peregrino paraibano rabiscara indicando a localização da gruta do Mago.

Na borda da mata pararam, persignaram-se e seguiram. O pai apenas pensou: “Ah, moleque!” Eram acompanhados pela algazarra matinal dos animais da mata e pelo medo que cada um sentia mas não ousava falar. Caminhavam em silêncio, apenas se olhavam e gesticulavam timidamente apontando o rumo traçado no mapa. De repente o silêncio absoluto e em seguida um estrondo. Um denso nevoeiro repentinamente os envolveu impedindo-os de enxergar um palmo diante dos narizes. Mais estrondos. Os expedicionários paralisados pelo medo, de olhos fechados esperaram o fim. De repente, novamente o silêncio e eles, mesmo de olhos fechados perceberam a luz..., lentamente abriram os olhos e viram: Era indescritível o que estava diante deles. Trajando um camisolão e na cabeça um gorro vermelho ornado na ponta caída para o lado por um pom-pom branco e, na frente, por uma estrela amarela: O MAGO MANU, em carne, ossos e pigarro.

  • O que vocês vieram fazer aqui, cambada de f. d. p.? Vieram caçar meus animaizinhos, seus capitalistas selvagens? Ou serão candidatos a vereador em busca de apoio?
- Não, Mestre...
  • Não me chamem de mestre, não tolero puxassaquimo.
  • Mestre, digo, Mago, por favor ouça-nos.
  • Desembucha!

O pai narrou ao Mago toda a desventura ocasionada pelas alucinações do filho e implorou ajuda. O Mago cofiou o cavanhaque e disse: “ Isso tá me cheirando a calundu..., mas como vocês me disseram que foram encaminhados a minha presença pelo andarilho – gostei daquele zoiudo – vou analisar o caso. Consultarei meus guias, pesquisarei meus alfarrábios e assim que tiver a solução para o caso do filho da geladeira – me aparece cada uma! – você pai do filho da geladeira receberá um sinal. Fique atento pois manifesto-me das maneiras mais inusitadas: pode ser um cocô de pássaro na cabeça, uma topada no batente da porta, uma persistente coceira num ponto inatingível do corpo ou qualquer coisa que me der na telha. Fique atento!”

Um relâmpago cortou o céu sem nuvens e o mago foi envolvido por um redemoinho e desapareceu. O pai do menino julgou ter visto na boca do funil de vento uma carapuça vermelha.
O silêncio voltou a envolver a mata e os expedicionários resolveram voltar, pois o tempo prenunciava chuva e chuva na mata dificulta a caminhada.

Chegando em casa, já tarde da noite, encontraram todos acordados e ansiosos por boas notícias, exceto o menino que, deixado alheio de toda a expedição, fora dormir após cumprir o ritual de todas as noites: “SUA BENÇÃO MAMÃE.” O pai então sentou-se (não lhe deixaram nem tomar um bom banho) e narrou-lhes tudo que ouvira do Mago Manu. Reagiram com ceticismo, mas, enfim, se não der certo terá sido apenas mais uma tentativa e continuaremos tentando. Decidiram.

Naquela noite como em quase todas as noites daquela casa, estavam todos reunidos na sala ouvindo músicas e conversando amenidades tentando ludibriar suas preocupações quando, de repente o pai, num salto levantou-se da poltrona, postou-se diante da janela e começou a falar em uma língua desconhecida de todos (dizem que era mandarim), gesticulando muito e com o olhar fixo em um ponto indistinto do jardim. Todos ficaram assustados e se perguntaram: “Será...?” De repente parou, retomou a serenidade de sempre, voltou ao sofá e disse: “O mago esteve aqui e apontou a cura do nosso filhinho. Bendito Mago, mas como fala palavrão”. Alguém fechou a porta da sala de refeições para que a geladeira não ouvisse nada (a que ponto chegaram), aproximaram-se do pai e ouviram atentamente as instruções que o Mago passara a ele e, em ato contínuo, resolveram preparar o “remédio” prescrito.

Pela manhã, como rotineiramente fazia, o menino, de banho tomado descia do seu quarto e vinha fazer a saudação matinal a sua mamãe geladeira e refastelar-se com o sempre delicioso desejum que ela preparava para ele. Abriu a porta e ficou estático, não havia nada em seu interior, nada, nem frutas, nem pão, nem gelatina, nem patê, nem manteiga, nada! Nem prateleiras, nem garrafas com água, nada! “Monstros, gritou! O que fizeram com minha mamãe? Qual Nero desalmado lhe arrancou as entranhas?” E ficou ali estático, estupefato ante aquela visão dantesca, o útero exposto de sua mamãe geladeira totalmente vazio. Caiu em convulsivo pranto. Num átimo, o pai, com o coração partido aplicou-lhe, como receitara o Mago, um tremendo ponta-pé na região glútea lançando-o no interior da gelomatic e, no mesmo instante os demais parentes correram até a geladeira, fecharam e amarraram fortemente a porta e o deixaram lá dentro por duas horas conforme, mais uma vez, as instruções do Mago. Decorrido esse tempo, desamarraram a porta da geladeira e sua mãe biológica, ainda seguindo as orientações do Mago, abriu a porta e..., lá estava ele, em posição fetal, com os olhos esbugalhados e as extremidades já meio azuladas. Lançou-se aos braços aberto de sua fiel mãe biológica gritando: “Mamãe, mamãe, esta bruxa malvada me enfeitiçou, quis prender-me em seu útero e negar-me ao mundo, a senhora, como sempre, me salvou e salvou o mundo. A família exultou: “Até que enfim o pesadelo acabou, ele voltou a ser o pentelho de sempre, o filhinho protegido da mamãe, que merda.” Formaram então um trenzinho carnavalesco e saíram coleando pelos cômodos da casa cantando: MA-MA-MA-MAMÃE EU QUERO, MAMÃES EM QUERO, MAMÃE EM QUERO MAMAR, DÁ A CHUPETA, DA A CHUPETA, DA A CHUPETA PRO BEBÊ NÃO CHORAR...

E a gelomatic? bem, a gelomatic foi mandada em exílio para o litoral para morrer lentamente devorada pela maresia, sem o belo chapéu de guarda da rainha e em seu lugar brilha hoje, majestosamente, uma duplex à qual a família afixou uma faixa onde se lê, em letras graúdas, a frase: NÃO SOU A MAMÃE”! . Bem não é uma brastemp mas...

O Mago Manu, aproveitando a grande fama conseguida com a cura do filho da geladeira mandou às favas a misantropia, os bichinhos da mata, os ideais revolucionários e hoje ganha muito dinheiro dando consultas esotéricas em uma tenda montada lá pras bandas do Ininga onde atende políticos sequiosos por uma tetinha e outros bichos e bichas da fauna urbana. Nas horas vagas escreve seu livro de memórias que é aguardado ansiosamente por muitos e com certo temor por alguns.

O andarilho tá na peneira, peneirando bondades.

O menino é hoje apaixonado pela família, pela amizade e por Maria.

E LA NAVE VÁ...!




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