A. J. de O. Monteiro
Nestes últimos dias o mundo inteiro acompanhou emocionado o drama de uma pequena baleia (um filhote de jubarte) que, tendo se perdido da manada e, consequentemente da mãe, confundiu-a com um iate ancorado em uma marina na costa australiana e do qual tentava desesperadamente obter leite, o sagrado leite materno. O indigitado animal, levado pelo mais primitivo dos instintos, o da sobrevivência, fora enganado por um objeto estranho ao seu “habitat” e lá ficou, ao lado da máquina que nada lhe podia dar a não ser resíduos do venenoso óleo derramado de suas entranhas.
Muitos técnicos em vida marinha, ecologistas e populares envolveram-se em tentativas de salvar o pequeno cetáceo que, cada dia mais desnutrido e em lenta agonia recusava-se afastar-se do barco. Diante disso, para evitar que o animal tivesse uma morte lenta e sofrida, todos os envolvidos, após muita discussão resolveram abreviar-lhe o sofrimento através da eutanásia. Segundo eles o animal morreu sem dor.
Tal
drama, embora vivido por um animal, fez-me recordar uma passagem
semelhante ocorrida nesta nossa cálida Teresina de tantas
curiosidades.
Um
amigo, um bom amigo, cujo nome não citarei para não expô-lo
novamente e já na idade madura à curiosidade pública, foi
personagem de uma situação no mínimo kafkiana. O fato me foi
contado por um irmão seu de quem também não citarei o nome pois
implicaria na mesma inconveniência que quero contornar.
Em uma
determinada noite de nosso escaldante verão o então pré
adolescente, durante o tradicional convescote familiar daqueles tempo
sem telenovelas, adormeceu no sofá da sala e assim ficou até a
hora que seu pai julgou conveniente que ele se recolhesse ao quarto a
fim de não motivar qualquer atraso para o colégio no dia seguinte.
Acordou e, não se sabe por qual razão, atordoado, dirigiu-se à
geladeira e disse: “SUA BÊNÇÃO, MAMÃE!” Era uma robusta
gelomatic que há anos servia fielmente à família.
Os
familiares que ainda permaneciam na sala observaram mas não deram
nenhuma importância pois sabiam que o menino era brincalhão e vivia
aprontando pegadinhas com todos. Os dias se passavam e o ritual se
repetia. Pela manhã ao acordar e à noite: “SUA BÊNÇÃO, MAMÃE!”
Inicialmente, pela repetitividade da coisa, os familiares foram se
aborrecendo e diziam: “Para com isso fulano, já está sem graça”.
No que ele retrucava: “Agora estou proibido de pedir a bênção à
minha mãe? Só faltava essa!” A família então passou a se
preocupar pois o ritual não cessava e, paralelamente a isso
observaram que ele dispensava um tratamento frio e distante a sua mão
biológica. A estóica senhora por seu lado sofria calada, apenas
esperando que aquilo passasse e sempre repetia: “calma gente, logo,
logo ele esquece isso. Não se irritem com nosso menino. É apenas
esquisitisse de adolescente”. Um dia, já com saudades dos carinhos
e afagos que sempre recebera de seu filhinho entrou em seu quarto,
afagou-lhe o rosto e beijou-lhe a testa dizendo baixinho: “boa
noite querido, durma com os anjos”, no que ele acordou, saltou da
cama e, de dedo em riste gritou: “NÃO É A MAMÃE, NÃO É A
MAMÃE!” A bondosa senhora, chocada e abatida retirou-se para o
quarto do casal onde o marido a esperava repetindo sempre: “Calma
querida, vai passar”.
A cada
dia novos elos se formavam naquela relação espúria. O menino não
gostava do chapéu que a mãe-geladeira usava e insistia: “mamãe,
joga fora este chapéu ridículo, ele não combina com sua elegância
e altivez, joga, mamãe, que eu lhe dou um outro mais novo e mais
bonito”.
Mas a mãe não lhe dava ouvidos e continuava usando o chapéu que o
menino abominava.Um dia, sem nada falar resolveu dar fim naquele
tormento, foi ao seu quarto, pegou sua espingarda de ar-comprimido
e..., CATAPIMBA! reduziu a cacos o prosaico pinguim de porcelana
chinesa que o pai comprara em viagem que fizera com a esposa ao
Paraguai e presenteou sua mãe-geladeira com um brilhante e vistoso
chapéu que até então compunha a fantasia de guarda da rainha com a
qual se esbaldara no último carnaval. Essa foi a gota d'água. A
família criou um gabinete de crise e resolveu procurar auxílio
médico. Levaram-no primeiro ao melhor psicanalista da cidade o qual
ouviu atentamente a estória e disse: “vou tratá-lo, não se
preocupem não é nada sério é apenas um desvio de foco emocional
ocasionado por uma vontade contrariada. Na próxima semana
iniciaremos as sessões psicoterapêuticas”. E assim foi. Duas
semanas depois o psicológo chamou os pais para comunicar-lhes que
não mais iria continuar com o tratamento pois o garoto era muito
dissimulado, desviava as questões com muita habilidade não o
deixando prescutar-lhe o inconsciente onde, acreditava ele, o
problema residia. Os pais se desesperaram e resolveram levá-lo a um
psiquiatra. O resultado foi o mesmo. Levaram-no a terreiros de
macumba, chamaram rezadeiras, benzedeiras, padres e pastores
exorcistas e nada, a fixação do garoto na geladeira era a cada dia
mais intensa.
Diante
de todos esses insucessos, o gabinete da crise familiar deliberou
então que o melhor a fazer seria proteger o garoto da curiosidade
popular pois, como pré-adolescente, era ainda muito suscetível e
poderia ficar marcado para o resto da vida. Já pensaram se quando
ele se tornar rapaz resolve namorar com uma frigobar? - Perguntou o
pai. Todos aquiesceram. A partir dali só sairia acompanhado,
contratariam professores particulares para não prejudicar a formação
escolar. Enfim, fizeram o possível para preservá-lo. De nada
adiantou. O próprio menino se encarregava vazar o caso. Quando
recebiam as então frequentes visitas sociais ele pegava o(a)
visitante pelo braço e o(a) conduzia até a sala das refeições
para lhes apresentar a mãe geladeira, exaltando-lhe as virtudes de
mãe extremosa. “Vejam, dizia ele, esta é minha mãe, ela cuida de
mim com um zelo exemplar, me alimento na hora que quero, matar minha
sede quando estou sedento, me dá refrigerantes na hora que preciso,
não me impõe limites exagerados, ela é, simplesmente uma super-mãe
e tem uma belíssima luz interior...” O resultado disso é que a
estória caiu na boca do povo para maior desespero da família. Foi
um pandemônio. A rua se transformou num verdadeiro mercado persa.
Vinha gente dos quatro cantos da cidade para ver o filho da
geladeira. Com essa gente vieram também ambulantes de toda ordem
vender tudo quanto era de produto: bancas de cachorro quente, gelado,
pasteis, churrasquinho de gato e até bonequinhos do menino chegaram
a fazer. Era uma algazarra infernal, carros passavam buzinando... A multidão postada à porta da casa griva incessantemente: QUEREMOS VER
O FILHO DA GELADEIRA! e ele, inocente e encantado com aquilo tudo ia
até a sacada do andar superior do sobrada e saudava solene a turba
que delirava, principalmente quando tal qual um jogador de futebol ele
desenhava no ar um imaginário coração e simulava atirá-lo para a
platéia. Um show! A rua e a casa simplesmente entraram para o
roteiro turístico de uma cidade que era e é carente de atrações.
Os jovens quando combinavam seus programas de finais de semana
(filmes no cine Royal, praça PII, tertúlia no clube dos diários,
etc.) já incluíam antes uma passadinha pela rua da casa do filho da
geladeira.
Os
mistérios da vida são insondáveis. Eis que, àquela época,
peregrinava por Teresina um andarilho paraibano que tomando
conhecimento do caso resolveu passar pela tal rua e tentar conhecer o
tal menino. Lá chegando ficou a observar o tumulto e percebeu a
aflição da família ante a confusão formada e deliberou ajudar.
Não se sabe como conseguiu entrar na casa e, com seu jeitão
confiável obteve a atenção da família. Objetivo como um
economista disse: “não pude deixar de me comover com a situação
de vocês. Não tenho o remédio para curar a pobre criança mas
conheço quem o tem. Ao entrar em Teresina pelos lados da Mata do
Soim, conheci um ermitão, um santo Homem que resolveu isolar-se do
mundo em busca de purificação após uma frustração política.
Esse Homem conhece a mente humana como ninguém e tenho certeza que
ele encontrará a cura para o garoto mas, de antemão advirto, é um
homem furioso, irascível mesmo, será preciso muito, muito tato ao
abordá-lo, qualquer ato falho poderá despertar-lhe a fúria e aí
então ele se transforma de santo num verdadeiro monstro”. Dito
isto levantou-se e falou: “tenho que ir, uma farinhada me espera”.
E se foi tão misteriosamente como chegara.
À
noite, com a rua já retomando o seu tradicional sossego, o pai
convocou o gabinete da crise para avaliar os acontecimentos do dia,
principalmente a aparição do misterioso andarilho e seus
conselhos. Eles já estavam cansados de tentativas frustantes e
temiam fosse esta mais uma. Apenas a mãe biológica mostrou-se
disposta a tentar e tanto insistiu que os demais, até por compaixão, concordaram. Resolveram então que o pai iria acompanhado de dois
amigos da maior confiança pois sendo o local indicado uma mata
virgem e habitada por animais selvagens não se iria colocar a vida
dos demais – a mulher e as crianças, em risco. Organizaram a
expedição em segredo para não despertar a atenção do povo que
poderia querer acompanhá-los e com isso abortar um possível sucesso
da empreitada.
È bom
esclarecer de logo que o tal mago, conhecido como Mago MANU,
tornou-se um misantropo após uma incursão mal sucedida pela
política e, zangado, resolveu internar-se na Mata do Soim em busca
de paz e conhecimentos. Protegia-o das intempéries uma pequena lapa
escavada na rocha. Com o passar do tempo, começou a desenvolver
habilidades pisicossomáticas incríveis: Comunicava-se com os
animais silvestres por um método telepático que só ele conhecia e
com os quais em perfeita simbiose ele os protegia e era protegido por
eles. Alimentava-se apenas de raízes e frutos típicos da região.
Água ali era abundante, bastava o mago apontar o dedo amarelo de
nicotina (herança dos tempos de tabagista) que o líquido puro e
cristalino brotava, fosse do barro, fosse da rocha. À noite os
animais se afastavam por ordem do Mago que então se voltava à
meditação e ao contato com os seres encantados da mata. Recebia
elfos, duendes, o saci pererê, a mula-sem-cabeça, o lobisomem, o
cabeça-de-cuia e outros tantos menos cotados e em volta da fogueira
que o Mago acendia apenas com a força do olhar, passavam a noite
falando mal dos políticos e inventando aventuras sexuais.
Os
expedicionários saíram antes do cantar dos galos para não despertar
curiosidades e com os primeiros raios do sol já avistavam a Mata do
Soim que não era muito distante. Estavam apropriadamente vestidos,
inclusive usando perneiras para se protegerem de picadas de cobras,
chapéus estilo safari e levavam mantimentos e uma caixa de primeiros
socorros, para qualquer eventualidade e, ainda, um tosco mapa que o
peregrino paraibano rabiscara indicando a localização da gruta do
Mago.
Na
borda da mata pararam, persignaram-se e seguiram. O pai apenas
pensou: “Ah, moleque!” Eram acompanhados pela algazarra matinal
dos animais da mata e pelo medo que cada um sentia mas não ousava
falar. Caminhavam em silêncio, apenas se olhavam e gesticulavam
timidamente apontando o rumo traçado no mapa. De repente o silêncio
absoluto e em seguida um estrondo. Um denso nevoeiro repentinamente
os envolveu impedindo-os de enxergar um palmo diante dos narizes.
Mais estrondos. Os expedicionários paralisados pelo medo, de olhos
fechados esperaram o fim. De repente, novamente o silêncio e eles,
mesmo de olhos fechados perceberam a luz..., lentamente abriram os
olhos e viram: Era indescritível o que estava diante deles. Trajando
um camisolão e na cabeça um gorro vermelho ornado na ponta caída
para o lado por um pom-pom branco e, na frente, por uma estrela
amarela: O MAGO MANU, em carne, ossos e pigarro.
- O que vocês vieram fazer aqui, cambada de f. d. p.? Vieram caçar meus animaizinhos, seus capitalistas selvagens? Ou serão candidatos a vereador em busca de apoio?
- Não, Mestre...
- Não me chamem de mestre, não tolero puxassaquimo.
- Mestre, digo, Mago, por favor ouça-nos.
- Desembucha!
O
pai narrou ao Mago toda a desventura ocasionada pelas alucinações
do filho e implorou ajuda. O Mago cofiou o cavanhaque e disse: “
Isso tá me cheirando a calundu..., mas como vocês me disseram que
foram encaminhados a minha presença pelo andarilho – gostei
daquele zoiudo – vou analisar o caso. Consultarei meus guias,
pesquisarei meus alfarrábios e assim que tiver a solução para o
caso do filho da geladeira – me aparece cada uma! – você pai do
filho da geladeira receberá um sinal. Fique atento pois manifesto-me
das maneiras mais inusitadas: pode ser um cocô de pássaro na
cabeça, uma topada no batente da porta, uma persistente coceira num
ponto inatingível do corpo ou qualquer coisa que me der na telha.
Fique atento!”
Um
relâmpago cortou o céu sem nuvens e o mago foi envolvido por um
redemoinho e desapareceu. O pai do menino julgou ter visto na boca do
funil de vento uma carapuça vermelha.
O
silêncio voltou a envolver a mata e os expedicionários resolveram
voltar, pois o tempo prenunciava chuva e chuva na mata dificulta a
caminhada.
Chegando
em casa, já tarde da noite, encontraram todos acordados e ansiosos
por boas notícias, exceto o menino que, deixado alheio de toda a
expedição, fora dormir após cumprir o ritual de todas as noites:
“SUA BENÇÃO MAMÃE.” O pai então sentou-se (não lhe deixaram
nem tomar um bom banho) e narrou-lhes tudo que ouvira do Mago Manu.
Reagiram com ceticismo, mas, enfim, se não der certo terá sido
apenas mais uma tentativa e continuaremos tentando. Decidiram.
Naquela
noite como em quase todas as noites daquela casa, estavam todos
reunidos na sala ouvindo músicas e conversando amenidades tentando
ludibriar suas preocupações quando, de repente o pai, num salto
levantou-se da poltrona, postou-se diante da janela e começou a
falar em uma língua desconhecida de todos (dizem que era mandarim),
gesticulando muito e com o olhar fixo em um ponto indistinto do
jardim. Todos ficaram assustados e se perguntaram: “Será...?” De
repente parou, retomou a serenidade de sempre, voltou ao sofá e
disse: “O mago esteve aqui e apontou a cura do nosso filhinho.
Bendito Mago, mas como fala palavrão”. Alguém fechou a porta da
sala de refeições para que a geladeira não ouvisse nada (a que
ponto chegaram), aproximaram-se do pai e ouviram atentamente as
instruções que o Mago passara a ele e, em ato contínuo, resolveram
preparar o “remédio” prescrito.
Pela
manhã, como rotineiramente fazia, o menino, de banho tomado descia
do seu quarto e vinha fazer a saudação matinal a sua
mamãe geladeira e refastelar-se com o sempre delicioso desejum que
ela preparava para ele. Abriu a porta e ficou estático, não havia
nada em seu interior, nada, nem frutas, nem pão, nem gelatina, nem
patê, nem manteiga, nada! Nem prateleiras, nem garrafas com água,
nada! “Monstros, gritou! O que fizeram com minha mamãe? Qual Nero
desalmado lhe arrancou as entranhas?” E ficou ali estático,
estupefato ante aquela visão dantesca, o útero exposto de sua
mamãe geladeira totalmente vazio. Caiu em convulsivo pranto. Num
átimo, o pai, com o coração partido aplicou-lhe, como receitara o
Mago, um tremendo ponta-pé na região glútea lançando-o no
interior da gelomatic e, no mesmo instante os demais parentes correram
até a geladeira, fecharam e amarraram fortemente a porta e o
deixaram lá dentro por duas horas conforme, mais uma vez, as
instruções do Mago. Decorrido esse tempo, desamarraram a porta da
geladeira e sua mãe biológica, ainda seguindo as orientações do
Mago, abriu a porta e..., lá estava ele, em posição fetal, com os
olhos esbugalhados e as extremidades já meio azuladas. Lançou-se aos
braços aberto de sua fiel mãe biológica gritando: “Mamãe,
mamãe, esta bruxa malvada me enfeitiçou, quis prender-me em seu
útero e negar-me ao mundo, a senhora, como sempre, me salvou e
salvou o mundo. A família exultou: “Até que enfim o pesadelo
acabou, ele voltou a ser o pentelho de sempre, o filhinho protegido
da mamãe, que merda.” Formaram então um trenzinho carnavalesco e
saíram coleando pelos cômodos da casa cantando: MA-MA-MA-MAMÃE EU
QUERO, MAMÃES EM QUERO, MAMÃE EM QUERO MAMAR, DÁ A CHUPETA, DA A
CHUPETA, DA A CHUPETA PRO BEBÊ NÃO CHORAR...
E a
gelomatic? bem, a gelomatic foi mandada em exílio para o litoral
para morrer lentamente devorada pela maresia, sem o belo chapéu de
guarda da rainha e em seu lugar brilha hoje, majestosamente, uma
duplex à qual a família afixou uma faixa onde se lê, em letras
graúdas, a frase: NÃO SOU A MAMÃE”! . Bem não é uma brastemp
mas...
O Mago
Manu, aproveitando a grande fama conseguida com a cura do filho da
geladeira mandou às favas a misantropia, os bichinhos da mata, os
ideais revolucionários e hoje ganha muito dinheiro dando consultas
esotéricas em uma tenda montada lá pras bandas do Ininga onde
atende políticos sequiosos por uma tetinha e outros bichos e bichas
da fauna urbana. Nas horas vagas escreve seu livro de memórias que é
aguardado ansiosamente por muitos e com certo temor por alguns.
O
andarilho tá na peneira, peneirando bondades.
O
menino é hoje apaixonado pela família, pela amizade e por Maria.
E LA
NAVE VÁ...!
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