terça-feira, 7 de agosto de 2012

O MENINO, A PRAÇA E A CARDINALLE



Poncion Rodrigues

Um domingo. Por volta das duas horas da tarde o menino magro descia a Rua Elizeu Martins, sobrecarregado pela pilha de revistas em quadrinhos, no passo rápido de quem precisa chegar logo ao destino. Os domingos de então eram mais preguiçosos, pois em suas tarde não proliferavam grupos de pagodes e bandas de forró. As pessoas que haviam lotado as manhãs de sol, àquela hora já se refugiavam em suas casas para depois do almoço se entregarem à sagrada soneca na tarde morna de Teresina.
Cruzando com poucas pessoas o menino magro já atravessava a Praça da Liberdade, tendo olhado furtiva e contritamente em direção à igreja de São Benedito, enquanto se benzia balbuciando num sussurro: “em nome do pai, do filho e do espírito santo amém”. Mais a frente o sentinela do Palácio de Karnak bocejava sonolento, milagrosamente escorado num velho fuzil, ambos virgens de guerra e de escaramuças com bandidos.
Alcançando a calçada dos Correios, o menino magro encontrava a primeira banca de revistas, além de grupos de vendedores de pastéis, empadas, refrescos e outros saudáveis difusores de parasitoses intestinais.
Estava quase chegando. Hollywood era logo ali. Praça Pedro II, a verdadeira Meca do cinema; a fábrica de emoções que lotava seu espírito ainda puro. Com jeito de mercado persa, calçada longa e comum ao Cine Rex, “bomboniere” e Theatro 4 de Setembro, abrigava muitas pessoas de uma sequência de bancas de revistas, onde o menino magro se deleitava comprando com o dinheiro da mesada “Tarzan”, “Fantasma”, “Pato Donald”, “Búfalo Bill” etc. Seguia-se o ritual da troca de revistas antigas com outros meninos, motivo da volumosa bagagem que ele carregava. De vez em quando consultava seu novíssimo relógio Mido de dezessete rubis; duas horas mais quarenta e cinco minutos.
Agora lá estava nosso pequeno herói, um dos primeiros da fila, esperando as portas do cine theatro engolirem a pequena indócil que disputaria lugar perto de um dos gigantescos ventiladores na sala de projeção. Correndo como um apache, o menino magro já ocupara dois lugares na terceira fila. Um para si próprio e o outro para acomodar sua pilha revistas. A real intenção concretizada em poucos minutos, era vender as duas poltronas para qualquer casal de namorados retardatário, garantindo a grana do lanche do “Carnaúba” após o cinema.
Há pouco passara pelo drama cruel de escolher entre o Cine Rex, onde Tony Curtis, na pelo do “Cavaleiro Negro” arrasava no tempo das Cruzadas, ou o Theatro, onde Burt Lancaster eletrizava a tela encarnando um destemido pirata. Sua decisão foi induzida pela ardente paixão que nutria pela belíssima Cláudia Cardinalle, companheira de aventura do sortudo Lancaster.
Três da tarde mais quinze minutos; as luzes piscavam antes de serem apagadas e ao som de gritos frenéticos, assobios e batidas selvagens com os solados dos sapatos da plateia começava a projeção dos trailers que antecediam o filme. O menino magro, ansioso, a essa altura sentado sobre sua valiosa pilha de revistas, disparava o coração e abrigava as mãos suadas sob as axilas, abraçando a si mesmo. Na boca o chiclete Adams era cruelmente dilacerados pelos maxilares tensos. E ele viajava...
Tomava de assalto galeões espanhóis repletos de tesouros, espetava com sua espada as barrigas dos inimigos e beijava com paixão aquela boca gostosa da Cláudia Cardinalle.
Cinco e trinta da tarde; Depois de muito gritar, se emocionar, assobiar e bater palmas, aquela plateia suada era, enfim regurgitada pelos portões laterais do velho 4 de Setembro.
Bem mais tarde, deitado no seu quarto e já vencido pelo sono, adormeceria roído de ciúmes do perigosíssimo Burt Lancaster – o verdadeiro proprietário da sua amada. Mas a vingança viria em forma de sonho, onde o menino magro se transformava no “terror dos mares caribenhos”, navegado sob a inconfundível bandeira e tendo nos braços, agora musculosos, sua desejadíssima Cláudia Cardinalle.
THE END              

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