Poncion Rodrigues
Um domingo.
Por volta das duas horas da tarde o menino magro descia a Rua Elizeu Martins,
sobrecarregado pela pilha de revistas em quadrinhos, no passo rápido de quem
precisa chegar logo ao destino. Os domingos de então eram mais preguiçosos,
pois em suas tarde não proliferavam grupos de pagodes e bandas de forró. As
pessoas que haviam lotado as manhãs de sol, àquela hora já se refugiavam em
suas casas para depois do almoço se entregarem à sagrada soneca na tarde morna de
Teresina.
Cruzando com
poucas pessoas o menino magro já atravessava a Praça da Liberdade, tendo olhado
furtiva e contritamente em direção à igreja de São Benedito, enquanto se benzia
balbuciando num sussurro: “em nome do pai, do filho e do espírito santo amém”.
Mais a frente o sentinela do Palácio de Karnak bocejava sonolento,
milagrosamente escorado num velho fuzil, ambos virgens de guerra e de
escaramuças com bandidos.
Alcançando a
calçada dos Correios, o menino magro encontrava a primeira banca de revistas,
além de grupos de vendedores de pastéis, empadas, refrescos e outros saudáveis
difusores de parasitoses intestinais.
Estava quase
chegando. Hollywood era logo ali. Praça Pedro II, a verdadeira Meca do cinema;
a fábrica de emoções que lotava seu espírito ainda puro. Com jeito de mercado
persa, calçada longa e comum ao Cine Rex, “bomboniere” e Theatro 4 de Setembro,
abrigava muitas pessoas de uma sequência de bancas de revistas, onde o menino
magro se deleitava comprando com o dinheiro da mesada “Tarzan”, “Fantasma”,
“Pato Donald”, “Búfalo Bill” etc. Seguia-se o ritual da troca de revistas
antigas com outros meninos, motivo da volumosa bagagem que ele carregava. De
vez em quando consultava seu novíssimo relógio Mido de dezessete rubis; duas
horas mais quarenta e cinco minutos.
Agora lá
estava nosso pequeno herói, um dos primeiros da fila, esperando as portas do
cine theatro engolirem a pequena indócil que disputaria lugar perto de um dos
gigantescos ventiladores na sala de projeção. Correndo como um apache, o menino
magro já ocupara dois lugares na terceira fila. Um para si próprio e o outro
para acomodar sua pilha revistas. A real intenção concretizada em poucos
minutos, era vender as duas poltronas para qualquer casal de namorados retardatário,
garantindo a grana do lanche do “Carnaúba” após o cinema.
Há pouco
passara pelo drama cruel de escolher entre o Cine Rex, onde Tony Curtis, na
pelo do “Cavaleiro Negro” arrasava no tempo das Cruzadas, ou o Theatro, onde
Burt Lancaster eletrizava a tela encarnando um destemido pirata. Sua decisão
foi induzida pela ardente paixão que nutria pela belíssima Cláudia Cardinalle,
companheira de aventura do sortudo Lancaster.
Três da tarde
mais quinze minutos; as luzes piscavam antes de serem apagadas e ao som de
gritos frenéticos, assobios e batidas selvagens com os solados dos sapatos da
plateia começava a projeção dos trailers que
antecediam o filme. O menino magro, ansioso, a essa altura sentado sobre sua
valiosa pilha de revistas, disparava o coração e abrigava as mãos suadas sob as
axilas, abraçando a si mesmo. Na boca o chiclete Adams era cruelmente
dilacerados pelos maxilares tensos. E ele viajava...
Tomava de
assalto galeões espanhóis repletos de tesouros, espetava com sua espada as
barrigas dos inimigos e beijava com paixão aquela boca gostosa da Cláudia
Cardinalle.
Cinco e trinta
da tarde; Depois de muito gritar, se emocionar, assobiar e bater palmas, aquela
plateia suada era, enfim regurgitada pelos portões laterais do velho 4 de
Setembro.
Bem mais
tarde, deitado no seu quarto e já vencido pelo sono, adormeceria roído de
ciúmes do perigosíssimo Burt Lancaster – o verdadeiro proprietário da sua
amada. Mas a vingança viria em forma de sonho, onde o menino magro se
transformava no “terror dos mares caribenhos”, navegado sob a inconfundível
bandeira e tendo nos braços, agora musculosos, sua desejadíssima Cláudia
Cardinalle.
THE END
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