segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

IGNORÂNCIA E CULTURA





Manoel Emílio Burlamarqui de Oliveira
Quando cheguei a ZÉ DOCA - Ma. sede do Projeto de Colonização do Alto Turí, iniciado pela SUDENE, antes do Golpe Militar de 64, paralisado por esse Golpe, e reiniciado em 1972/73, participei, como Coordenador daquele Projeto, já então, a ser executado pela recém-criada Companhia de Colonização do Nordeste (COLONE), do processo seletivo dos futuros colonos, que, entre outras benesses, receberiam um lote de terras, com 50 hectares, assistência técnica, educação, saúde, e financiamento para suas atividades econômicas, via Cooperativa, já criada, quando da época da SUDENE, e posta em funcionamento com a criação da Colone.
Pequenos lavradores chegavam de quase todo o nordeste, advindos, a maioria, dos latifúndios, onde eram "moradores", "agregados" ou outro nome que se lhes davam, verdadeiros servos de patrões que eram como imagens dos senhores feudais da época do Descobrimento e continuístas dos donatários das Capitanias Hereditárias, que, vez por outra, ainda se encontram por este Brasil afora, principalmente, na nossa Amazônia, e alguns resquícios aqui, no nordeste.
Na esperança de serem donos de sua própria terra, de sua lavoura, de seus criatórios, ou seja, de, para ele, serem "libertos", faziam qualquer cousa para serem selecionados, agindo de acordo com sua "ignorância", ou sua "cultura", no exame médico, obrigatório, para evitar doenças contagiosas ou incapacidade para o trabalho.
Pais chegavam a bater nos filhos, para recolher fezes e urina, para os exames laboratoriais, como se não pudessem esperar a hora normal de suas "evacuações", com medo de perderem aquela oportunidade...


Também vi, o conceito de honra e de respeito do caboclo nordestino, que preferia perder o lote da esperança a deixar o médico "apalpar" sua mulher, já vestida naquela bata enorme e acompanhada de uma enfermeira. "Se tocar na mia muié vai morrer na ponta de minha faca!" Era um "Deus nos acuda" para convencer o pobre marido a deixar que os exames fossem feitos. Revoltados e "desmoralizados" passavam a ser confortados por suas esposas, "deixa disso, homi, os doutor só fizeram-me "escutar", pois elas sabiam de como precisavam taquela terra!
Ignorância ou cultura? Afinal, o que é uma e o que é outra? Ou é a mesma cousa, em momentos ou estágios diferentes?

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A Colone, ao reiniciar o PCAT, encontrou cerca de 700 famílias, assentadas em 12 núcleos, que, a partir de 64, ali, mourejavam, livres do "cambão", mas carentes dos mais diversos tipos de assistência, principalmente, de assistência técnica e financeira, que lhes tornassem verdadeiros produtores agrícolas e lhes inserissem nos mercados regionais... Muitos deles, graças ao isolamento cultural, passaram a repetir o modelo que conheciam, de explorar a terra, utilizando pessoas que passavam a fazer roças em seus lotes e lhes pagavam "renda"
do que produziam, e se tornando pequenos "patrões", semelhantes àqueles latifundiários, a quem, antes, eram sujeitos.
Ignorância ou prática cultural do que conheciam, e incorporaram?
...Certa vez, recebi, como Coordenador Executivo, um pai aflito, colono antigo, que veio em busca de ajuda, pois seu filho encontrava-se ameaçado de morte por um vizinho e compadre seu... Perguntei-lhe o motivo de tal ameaça e ele confessou-me que seu filho havia "deflorado" a filha do compadre e que, se ele não tivesse escondido o sedutor, este já estaria morto. Entretanto, o rapaz estava pronto para reparar o "malfeito", casando com a "ofendida"!
Pensando, comigo mesmo, esse caso está fácil de resolver, mandei chamar o pai da moça, para conversar, comigo e com seu compadre. E, assim, foi feito. Expliquei o motivo do chamamento, evitar uma desgraça: morte de um jovem, prisão de um pai de família, que não restituiria a virgindade da moça e deixei que o pai do rapaz jurasse ao seu amigo e compadre, de tantos anos, (acho que vieram juntos, do Ceará) que seu filho iria casar com a mocinha, pois o casal "se gostava muito"!
A resposta foi em cima da bucha "não vou deixar minha fia casar com um cabra que faltou com respeito a ela, e à "famia" dela, honra suja se lava com sangue..."
Novas conversações, o pai do rapaz chorando ( "eu conheço o cumpadi e sei qui ele mata mermo!") e veio à minha cabeça o conhecimento que tinha do mundo rural (meu pai era do interior e foi pegador de boi, pra sobreviver em Teresina)... Renovei minhas considerações, mostrei que uma amizade antiga não podia acabar em morte, que, além de crime era, também, um pecado condenado por Deus, enfim, apelei para os valores daqueles homens rudes e pedi, ao pai ofendido que apresentasse uma outra solução para evitar uma tragédia daquele tamanho... E surgiu a proposta: "eu num mato ele se o cumpadi mandar ele imbora, pra nunca mais vortar, purquê, se eu vir ele de novo ele morre, e o sinhô, Coordenador, vai me defender da cadeia!" O coitado do pai do rapaz, não pensou duas vezes, aceitou a proposta de imediato e eu, do alto de minha "autoridade" selei o "acordo" e tudo foi cumprido, com a graça de Deus!
Ignorância ou cultura da "Civilização do Couro"?
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O Poder, e a mídia, dependente, atrelada, porta-voz desse Poder, nos faz acreditar que a "educação é a salvação da pátria" que a ignorância é inerente a quem não frequenta, ou , não frequentou a escola, que o desenvolvimento depende dessa "educação" que, cada vez mais, custa mais cara, cada vez mais é entregue à iniciativa privada, cada vez mais é excludente da população pobre... Puro ilusionismo, dos doutores que estão no poder, que, com toda a sua "sapiência", nos assaltam, diariamente, com sua corrupção, seus roubos, suas falcatruas, descaradamente, e se reelegem, sejam quais forem seus nomes, escolhidos candidatos por eles próprios, em partidos que eles mesmos comandam e dominam, por "afiliados" que nenhuma representatividade possuem do povo, dos "inocentes" e "ignorantes" eleitores... e, ainda, por cima de tudo, espalham que "o povo tem o governo que merece!", "a voz do povo é a voz de Deus!"... Chacota e cinismo juntos, para justificarem uma dominação que, parece, não ter fim! Paulo Freire e Darcy Ribeiro, dois luminares da cultura e do saber, nacional e internacional, respeitados em todo o mundo, foram estigmatizados e perseguidos neste país de samba e futebol, (pelo menos, enquanto a mídia poderosa não acaba com eles, o samba e o futebol) por mostrarem, que a ignorância não é privilégio dos analfabetos, mas fruto da consciência ingênua de nosso povo, da inexistência de uma consciência crítica, escamoteada pelos "políticos", estes, sim sem qualquer tipo de consciência... O Golpe Militar queimou a "Cartilha do Movimento de Educação de Base" editada e utilizada pele CNBB, em sua campanha educacional voltada para os excluídos. Quem estava por traz daqueles militares vesgos, quem falava que "consciência critica" era chavão subversivo, usado por comunistas comedores de criancinhas, quem inventou as passeatas com Deus e pela família, fazendo o povo acreditar que o Golpe foi uma exigência do povo brasileiro, quem criou toda essa melodia e nos envolveu num lamaçal, do qual, querem, agora, fugir, dizendo que é coisa do PT? Ah!, se fosse, somente, do PT! História do Brasil, onde estás que não respondes? Historiadores medrosos, ignorantes ou não, cresçam e apareçam...Está na hora de se ir acabando com essa farsa que se instalou no Brasil, de que a educação, (a deles) é a nossa salvação... Cultura não é leitura de livros famosos, não é conhecimento científico, não é ter mestrado e doutorado, sem qualquer compromisso com a nação e o povo, não é ter, é ser! Cultura é ter a sabedoria dos bons, dos que constroem, dos que enxergam os outros em seus espelhos, é possuir uma consciência crítica que nos permita usar o conhecimento para o bem de todos, e não, para o nosso próprio bem, é abjurar o pragmatismo, e aderir aos valores, um tanto esquecidos, da ética e da moral. Ignorância e Cultura, quão distantes e quão próximas! Só depende do nosso grau de consciência... (Do meu livro "De Corpo Inteiro", a ser publicado em março próximo)"

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