quinta-feira, 23 de maio de 2013

ESTÓRIA DE TRANCOSO



Com adaptação de A. J. de O. Monteiro
                Nos meus tempos de criança, as noites de Teresina não ofereciam muita diversão para nós. Uma alternativa era ouvir estórias de trancoso contadas pelos mais velhos. Tive uma tia que era exímia contadora dessas estórias e uma de minhas preferidas era:
DESOBRIGA
                Retornando à sede da paróquia, após cumprir sua primeira desobriga, o jovem padre se depara com um riacho desconhecido e fica receoso de atravessá-lo no lombo do burro, pois não conhecia a profundidade do seu leito. Ficou parado por algum tempo, olhando em volta para ver encontrava alguma maneira de fazer a travessia com segurança quando viu, à distância, um menino, que, de cócoras, a beira do riacho atirava seixos na lâmina d’água para vê-los resvalar uma, duas e até três vezes, formando círculos de pequenas ondas. O padre resolveu ir até onde estava o garoto para ver se conseguia ajuda. Chegando próximo cumprimentou:
                - Boa tarde, meu filho.
                - Boa tarde seu vigário.
            - Me diga pequenino, este riacho é raso? Posso atravessá-lo aqui sem perigo para mim e meu burro?
                - Pode seu padre!
                - Como você sabe?
              - Ora, seu padre, o gado de meu pai atravessa esse riachinho, todo santo dia, de ida e de volta, sem nenhum perigo!
                O padre agradeceu, deu bênção ao pequeno, fincou as esporas nos vazios do burro e caíram n’água. Foram ao fundo, voltaram à tona, foram ao fundo de novo, ambos se debatendo, o padre tendo a batina molhada pesando o triplo do normal e o burro com seus alforges com paramentos do padre e outros instrumentos da liturgia católica estavam quase sem forças, já entregando os pontos quando se agarrou a um cipó e rezando prá todos os santos reuniu suas últimas forças conseguiu chegar à terra firme e puxar o pobre animal que já estava com os olhos esbugalhados.

                Contendo a raiva, arfando, o vigário pediu um pouco d’água para beber. O moleque entrou na casa e voltou com uma cabaça quase transbordando. O padre bebeu sofregamente e pediu que lhe trouxesse um pouco mais se não fosse fazer falta, no que o menino respondeu: “faz falta não, seu padre, hoje pela manhã encontrei um rato morto no pote e eu já ia despejar a água dele no riacho...” O padre, com toda a ira que Deus condena sapecou a cabaça no chão partindo-a em mil pedaços. O menino então choramingou: “Ô, seu padre, era a cabaçinha de vovó mijar...” O padre já pronto para esganar o pequeno demônio quando um casal apareceu. Eram os pais do menino que voltavam da roça. Eles então perguntaram ao padre o que acontecera e o vigário contou, tintim por tintim. O pai, indignado, deu umas boas cipoadas no moleque, dizendo: “onde já se viu pregar uma peça dessas num homem de Deus. Desculpe seu padre o que eu crio aqui são patos. Vou até mandar a patroa matar e limpar um para o sinhô comer lá na paróquia.” O padre agradeceu, alegando o adiantado da hora, mas pediu para levar consigo o pequeno, pois, esperto como era, daria um ótimo coroinha, mais tarde um bom sacristão e, quem sabe, entraria para o seminário. Os pais concordaram, mostraram um lugar seguro para a travessia do riacho e lá se foram. O padre no burro, com sua tralha e o menino atrás, carregando uma trouxinha com seus poucos pertences.
                Chegando à paróquia, já escurecendo, o padre apeou do burro, pegou o moleque pela orelha e perguntou: “o que sou? E o moleque respondeu: “o sinhô é um padre.” O padre sapecou um tremendo cascudo na cabeça do moleque e ensinou: “eu sou um papi-a-santo.” * Apontou para uma portentosa mulher que varria a nave da igreja e perguntou: “o que é aquela ali.?*” “Uma mulher,” respondeu o pequeno. O padre sapecou-lhe outro cascudo e disse: “mulher não, é uma folgazona.” Apontou então para um gato que dormia no adro da igreja e berrou: “que animal é aquele?”Já aos prantos o menino respondeu: “é um gato.” Gato coisa nenhuma, seu capeta, aquilo é um papi-a-rato. ”* E tome cascudo no cocuruto do miserável.
                A essa altura, já aos berros, o moleque tentava se desvencilhar do padre, clamando por todos os santos que já tinha ouvido falar. O padre lhe disse: “calma ainda faltam alguns pontos para concluir seu aprendizado para tornar-se um bom sacristão.” Encostou a mão do indigitado na chama de uma vela e perguntou: “o que é isso?” Todo mijado, o infeliz respondeu: “ É fogo!”  “É clarismundo.” Respondeu o padre. O menino implorou ao padre que enfiasse sua mão numa vasilha com água para aliviar a dor. O padre aplicou-lhe um tabefe na orelha, gritando: “não é água, ignorante, é abundância.”
                Após o jantar o padre passou uma pesada penitência para o garoto, chamou a mulher e foi com ela deitar-se. O moleque então resolveu se vingar. Pegou uma vassoura, untou-a com óleo, amarrou-a ao rabo do gato e ateou-lhe fogo. Soltou o bichano que começou a correr desesperado pela capela e o fogo pegando em tudo: cortinas, toalhas do altar, mantos dos santos, etc...  O vigário acordou com os gritos do menino: Acuda papi-a-santo, com folgazona nos braços, venha ver papi-a-rato, com clarismundo no rabo, acuda com , senão vai tudo pros diabos... Passou sebo nas canelas, e pernas pra que lhes quero...

*Era assim que ela falava. Não sei se a grafia é essa mas achei melhor colocar assim.
                

Um comentário:

Manoel Andante disse...

Monteirim, eu tenho o livro de Trancoso e não encontrei a que vc. contou. Antigamente, contar história de Trancoso era mentir... Pode até não ser o caso desta, já que quem a contou, vc. a conhecia... Mas, aceite minhas desconfianças... Coitado do Trancoso!