Com adaptação de A. J. de O. Monteiro
Nos
meus tempos de criança, as noites de Teresina não ofereciam muita diversão para
nós. Uma alternativa era ouvir estórias de trancoso contadas pelos mais velhos.
Tive uma tia que era exímia contadora dessas estórias e uma de minhas
preferidas era:
DESOBRIGA
Retornando
à sede da paróquia, após cumprir sua primeira desobriga, o jovem padre se
depara com um riacho desconhecido e fica receoso de atravessá-lo no lombo do
burro, pois não conhecia a profundidade do seu leito. Ficou parado por algum
tempo, olhando em volta para ver encontrava alguma maneira de fazer a travessia
com segurança quando viu, à distância, um menino, que, de cócoras, a beira do
riacho atirava seixos na lâmina d’água para vê-los resvalar uma, duas e até
três vezes, formando círculos de pequenas ondas. O padre resolveu ir até onde
estava o garoto para ver se conseguia ajuda. Chegando próximo cumprimentou:
-
Boa tarde, meu filho.
-
Boa tarde seu vigário.
-
Me diga pequenino, este riacho é raso? Posso atravessá-lo aqui sem perigo para
mim e meu burro?
-
Pode seu padre!
-
Como você sabe?
-
Ora, seu padre, o gado de meu pai atravessa esse riachinho, todo santo dia, de
ida e de volta, sem nenhum perigo!
O
padre agradeceu, deu bênção ao pequeno, fincou as esporas nos vazios do burro e
caíram n’água. Foram ao fundo, voltaram à tona, foram ao fundo de novo, ambos
se debatendo, o padre tendo a batina molhada pesando o triplo do normal e o
burro com seus alforges com paramentos do padre e outros instrumentos da
liturgia católica estavam quase sem forças, já entregando os pontos quando se
agarrou a um cipó e rezando prá todos os santos reuniu suas últimas forças
conseguiu chegar à terra firme e puxar o pobre animal que já estava com os
olhos esbugalhados.
Contendo
a raiva, arfando, o vigário pediu um pouco d’água para beber. O moleque entrou
na casa e voltou com uma cabaça quase transbordando. O padre bebeu sofregamente
e pediu que lhe trouxesse um pouco mais se não fosse fazer falta, no que o menino
respondeu: “faz falta não, seu padre, hoje pela manhã encontrei um rato morto
no pote e eu já ia despejar a água dele no riacho...” O padre, com toda a ira
que Deus condena sapecou a cabaça no chão partindo-a em mil pedaços. O menino
então choramingou: “Ô, seu padre, era a cabaçinha de vovó mijar...” O padre já
pronto para esganar o pequeno demônio quando um casal apareceu. Eram os pais do
menino que voltavam da roça. Eles então perguntaram ao padre o que acontecera e
o vigário contou, tintim por tintim. O pai, indignado, deu umas boas cipoadas
no moleque, dizendo: “onde já se viu pregar uma peça dessas num homem de Deus. Desculpe
seu padre o que eu crio aqui são patos. Vou até mandar a patroa matar e limpar
um para o sinhô comer lá na paróquia.” O padre agradeceu, alegando o adiantado
da hora, mas pediu para levar consigo o pequeno, pois, esperto como era, daria
um ótimo coroinha, mais tarde um bom sacristão e, quem sabe, entraria para o
seminário. Os pais concordaram, mostraram um lugar seguro para a travessia do
riacho e lá se foram. O padre no burro, com sua tralha e o menino atrás,
carregando uma trouxinha com seus poucos pertences.
Chegando
à paróquia, já escurecendo, o padre apeou do burro, pegou o moleque pela orelha
e perguntou: “o que sou? E o moleque respondeu: “o sinhô é um padre.” O padre
sapecou um tremendo cascudo na cabeça do moleque e ensinou: “eu sou um papi-a-santo.” * Apontou para uma
portentosa mulher que varria a nave da igreja e perguntou: “o que é aquela
ali.?*” “Uma mulher,” respondeu o pequeno. O padre sapecou-lhe outro cascudo e
disse: “mulher não, é uma folgazona.”
Apontou então para um gato que dormia no adro da igreja e berrou: “que animal é
aquele?”Já aos prantos o menino respondeu: “é um gato.” Gato coisa nenhuma, seu
capeta, aquilo é um papi-a-rato. ”* E
tome cascudo no cocuruto do miserável.
A
essa altura, já aos berros, o moleque tentava se desvencilhar do padre, clamando
por todos os santos que já tinha ouvido falar. O padre lhe disse: “calma ainda
faltam alguns pontos para concluir seu aprendizado para tornar-se um bom
sacristão.” Encostou a mão do indigitado na chama de uma vela e perguntou: “o
que é isso?” Todo mijado, o infeliz respondeu: “ É fogo!” “É clarismundo.”
Respondeu o padre. O menino implorou ao padre que enfiasse sua mão numa vasilha
com água para aliviar a dor. O padre aplicou-lhe um tabefe na orelha, gritando:
“não é água, ignorante, é abundância.”
Após
o jantar o padre passou uma pesada penitência para o garoto, chamou a mulher e
foi com ela deitar-se. O moleque então resolveu se vingar. Pegou uma vassoura,
untou-a com óleo, amarrou-a ao rabo do gato e ateou-lhe fogo. Soltou o bichano
que começou a correr desesperado pela capela e o fogo pegando em tudo:
cortinas, toalhas do altar, mantos dos santos, etc... O vigário acordou com os gritos do menino:
Acuda papi-a-santo, com folgazona nos braços, venha ver papi-a-rato, com clarismundo no rabo, acuda com , senão vai tudo pros diabos...
Passou sebo nas canelas, e pernas pra que lhes quero...
*Era assim que ela falava. Não
sei se a grafia é essa mas achei melhor colocar assim.
Um comentário:
Monteirim, eu tenho o livro de Trancoso e não encontrei a que vc. contou. Antigamente, contar história de Trancoso era mentir... Pode até não ser o caso desta, já que quem a contou, vc. a conhecia... Mas, aceite minhas desconfianças... Coitado do Trancoso!
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