domingo, 22 de junho de 2014

HISTÓRIAS TRANCAFIADAS*




Daniel Cariello**
                Quando se fecha uma biblioteca, finda-se o acesso a novos universos, a outras culturas, a diferentes línguas, a desconhecidas linguagens. Ficamos mais burros e mais ignorantes sem nem mesmo perceber.
                Quando se fecha uma biblioteca, ausentam-se livros que ansiavam por redenção, à espera de que um estudante, um pesquisador ou um curioso desvende seus segredos, revelados lentamente no passar das palavras e das páginas.
                Quando se fecha uma biblioteca, veda-se às crianças aquele instante mágico e único da descoberta de uma obra que vai acompanhá-las a vida inteira. De uma aventura impossível ou de uma fantasia espetacular, que elas podem viver por alguns momentos graças às letras e aos desenhos impressos em folhas antes brancas, da qual se recordarão suspirando fundo, com uma mistura de nostalgia e felicidade, quando ficarem mais velhas e mais sérias.
                Quando se fecha uma biblioteca, sinaliza-se para o mundo que a praticidade deseja subjugar a fantasia, o desleixo pretende superar o cuidado, a barbárie tenciona sufocar a delicadeza.
                Quando se fecha uma biblioteca e se pendura na frente um pequeno papel escrito “interditada”, impede-se o nosso contato com uma parte de nós mesmos que talvez nem conheçamos ainda. Com um pedaço de nossa alma aguardando ser despertado por uma obra adormecida em uma estante, que pode nos tocar bela e profundamente, a ponto de nos mudar para sempre.
                Quando se fecha uma biblioteca, calam-se heróis e vilões, gentis e canalhas, campeões e derrotados. Findam-se récitas e aventuras, tragédias e farsas. Matam-se autores e leitores.
                Quando se fecha uma biblioteca, e não importam os motivos ou os culpados, trancamo-nos mais em nós mesmos, em nossa individualidade, em nosso egoísmo.
                No momento em que nos descuidamos e permitimos que uma biblioteca seja aferrolhada com todos os livros do lado de dentro e os leitores do lado de fora, ficamos em débito impagável com nosso próprio passado e nossos antecessores, mas, principalmente, com nossa continuidade e com aqueles que estarão por aí quando já tivermos partido.
                Quando se fecha uma biblioteca, principalmente se ela faz parte de nossa vida e da história do lugar em que moramos, é hora de abrirmos os olhos para ver bem o que estão fazendo de nossa cidade. E a boca para dizer que não aceitamos isso.
*Originalmente publicado em Veja Brasília de 04/06/2014.
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br


2 comentários:

Antonio José de Oliveira Monteiro disse...

Pior que em Brasília, caro Daniel, ocorre em Teresina. Aqui não se abrem bibliotecas.

Antonio José de Oliveira Monteiro disse...

Pior que em Brasília, Caro Daniel, ocorre aqui em Teresina. Aqui não se abrem bibliotecas