quarta-feira, 4 de junho de 2014

RÉGIO, PONTES E VERDADE EM VERSOS




(*) Ferrer Freitas

             José Régio é o pseudônimo literário do português José Maria dos Reis Pereira, que nasceu em 1901 em Vila do Conde, onde veio a falecer em 1969.  A cidade integra a grande região metropolitana do Porto. Licenciado em letras em Coimbra, lecionou por mais de 30 anos e foi um dos fundadores da revista de nome “Presença”, que, não sei se por coincidência ou homenagem, é o mesmo da editada pelo nosso Conselho Estadual de Cultura. Romancista, dramaturgo, ensaísta, foi no entanto como poeta que se notabilizou. Com o livro “Poemas de Deus e do Diabo”, editado em 1925, apresentou a maioria dos temas que viria desenvolver.
               Redescobri o poeta português pela lembrança que me veio, de inóspito, do belíssimo musical “Brasileiro, Profissão Esperança”, de Paulo Pontes (Vicente de Paula Holanda Pontes), paraibano de Campina Grande, nascido em 1940 e falecido no Rio em 1976, desaparecimento extremamente lamentado nos meios teatrais por se tratar de jovem dramaturgo de peças de enorme sucesso, como foi o caso de “Um edifício chamado 200”. Para a televisão escreveu a série “A grande família”, de não menos sucesso. Registre-se que tudo isso ocorreu de meados dos anos 60 até seu falecimento em 1976, com apenas 36 anos.
               “Brasileiro, Profissão Esperança” retrata as vidas atormentadas do pernambucano Antônio Maria, jornalista, radialista e letrista de memoráveis sambas-canções, entre os quais o belíssimo “Ninguém me Ama”, em parceria com Fernando Lobo, e da compositora e cantora Dolores Duran, autora de sucessos como “Estrada do Sol”, composto em parceria com Tom Jobim. A montagem no Canecão, em 1974, com Clara Nunes e Paulo Gracindo, sob a direção de Bibi Ferreira, foi de tal modo festejada, que virou disco “long-play” e, posteriormente, CD. De texto antológico, permito-me transcrever aqui o poema “Cântico Negro”, de José Régio, magistralmente recitado no show por Paulo Gracindo.  E o faço por que contém verdades incontestáveis que merecem reflexões de muitas pessoas:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu os olho com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre da minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se o que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
(*) Ferrer Freitas é do Instituto Histórico de Oeiras


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