quarta-feira, 30 de julho de 2014

AMOR CAPITAL*



Daniel Cariello**

Dois jovens namorados se escondem em um pilotis, debaixo do bloco. Ele tenta avançar nas carícias. Ela procura freá-las.
— Aí, não. Não pode atravessar fora da faixa.
— Mas não tem ninguém olhando!
— Não pode.
— É que eu te acho, assim, tão monumental. Saio do eixo quando te vejo.
— Você sabe bem: aqui está cerrado.
— Não é justo.
— Sinto muito, mas é assim. E o porteiro está logo ali, com olhos de lobo-guará pra cima da gente. Qualquer deslize, ele conta pros meus pais.
— Vamos pro bloco G, então. Estaremos mais protegidos.
— Não adianta, eles conhecem todo mundo aqui. E você sabe como são bravos.
— Sempre seus pais. Parece que estão em todo lugar. Vivemos à sombra desses dois candangos.
— Você sabia que seria assim quando começamos
a namorar. Não reclama.
— Mas, Sara…
— Vamos parar logo com esta discussão. Vem aqui, juntinho de mim.
— Tá bom.
— Ei, de onde surgiu esta mão?
— É meu abraço grande circular. Tão apertado e dá tantas voltas que deixa até tonto.
— Pois você pode tirá-la daí e voltar agora mesmo ao ponto de partida, Renato.
— Ai, ai, ai. Deu zebrinha.

— Sabe o que é? Não sei se confio em você, com todas essas periguetes que ficam te rondando, como satélites.
— Esqueça delas! Já te disse, meu amor por você é de verdade, é concreto. Quero que a gente fique junto pra sempre.
— Jura?
— Juro.
— Por Dom Bosco?
— Sim, por todas as duplas que comi lá.
— Tô falando do santo, não da pizza.
— Ah, claro, eu sabia. Juro pelo que quiser. Meu plano é me casar com você.
— Você às vezes diz coisas tão lindas!
— Então não tem por que continuarmos nesta seca, né?
— Deixa de ser atirado, já disse! Olha aquela câmera ali.
Tá apontada pro nosso lado. Furou o sinal, o pardal pega.
— Tá bom, tá bom. Posso pelo menos te dar um beijo?
— Só beijo?
— Só. Vou até colocar as mãos pra trás, ó.
— Então, tá.
— Vem aqui...
— Ei, Renato. Mordida no pescoço, não.
— Você, hein? Que corta-clima! Verdadeira tesourinha.
— Melhor eu subir. A gente se fala mais tarde. Me liga.
— Mas, Sara, um telefone é muito pouco, véi.

*Publicado originalmente em Veja Brasília, de 30/07/14
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

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