A. J. de O. Monteiro
A
copa já passando das oitavas de final e nada, nenhuma ideiazinha para colocar
no papel. Espremi o cérebro o quanto pude e nada saia, até que numa de minhas
incursões diárias pela internet deparo com uma crônica do Ruy Castro, com o
título “Em torno do Spica” (Folha de S. Paulo). Pronto, eis o mote: O nome
Spica desencadeou uma enxurrada de lembranças já quase esmaecidas, pelos 44
anos passados. As lembranças da copa do mundo de 1970, disputada no México, a
qual assisti do alto dos meus 19 anos.
Havia
um clima de ufanismo promovido pela ditadura militar, que no ritmo da
providencial música “Prá Frente Brasil” de Miguel Gustavo, aproveitava a paixão
brasileira pelo futebol para abafar os gritos de dor que vinham dos porões dos
quartéis. Esses gritos não mais nos importunavam. “Éramos 90 milhões em ação...
Todos juntos na mesma emoção” provocada pelos lançamentos de Gérson, pelos
geniais toques de Rivelino, pelos deslocamentos de Tostão, pelos dribles de
Pelé, pelas botinadas de Brito e pelo pesadelo de que, a qualquer momento o
Félix engolisse um frango... Ninguém confiava no pobre goleiro.
Mas,
relembremos a Copa: No primeiro jogo da primeira fase saímos perdendo para a Tchecoslováquia
(gol de Petrás, aquele do sinal da cruz), mas logo viramos para 4 x 1, com gols
de Rivelino, Pelé e Jairzinho que fez dois. O segundo jogo foi contra a temida
Inglaterra, então campeã mundial de 1966. Daquele jogo ficou indelevelmente
marcado na minha memória, o lance do único gol da partida: Tostão tromba com um
adversário, toma a bola, gira o corpo e, quase caindo, cruza para Pelé que mata
no peito e rola para Jairzinho desferir o petardo para o fundo das redes do
grande guarda metas inglês, Gordon Banks (desculpem o excesso de futebolês,
inspirado no legendário Carlos Said, o magro de aço). Em seguida, vencemos a
Romênia por 3 x 2 e, nas quartas de final, ganhamos do Peru por 4 x 2.
Nas
semifinais, o fantasma do “Maracanazo” veio nos assombrar. Teríamos pela frente
o Uruguai, que em 1950, em pleno estádio do Maracanã, tomou do Brasil o título
mundial que antecipadamente nos foi outorgado pela imprensa ufanista e pelo
oportunismo dos políticos. Daquele jogo de 16 de julho de 1950, restou uma
frustração que se sedimentou na mente de todos os brasileiros que vivenciaram a
tragédia e que se transmitiu para as gerações posteriores como um gene maldito.
Aquele
16 de junho de 1970 amanheceu diferente. Um misto de desconfiança e desejo de
vingança tomava nossas mentes e corações. A imprensa queria, usando a metáfora
de Nelson Rodrigues, ver “pátria de chuteiras”... O árbitro trila o apito e
começa o espetáculo. Jogo duro, bola lá e cá. Nossos corações descompassados,
unhas roídas até o sabugo e o jogo rolando. O silêncio reinava na sala,
quebrado apenas por um “UUUUH” ante um ataque perdido pelo Brasil, ou por um “ai
meu Deus” quando o ataque uruguaio rondava nossa área. E veio o choque: aos 19 minutos do 1º tempo o
Uruguai desempata o jogo com um gol de Cubillas... O silêncio tomou conta da
sala, todos nós volvemos a 50. Todos nos sentimos derrotados até que o locutor
gritou: “queque é isso, minha gente? Ainda tem muito jogo! Vamos pra frente Bra”...
(faltou energia). Gritos, imprecações, lamentos e palavrões de toda ordem
lançados contra a CEPISA (companhia distribuidora de energia no Estado). Até
que alguém gritou acima da balbúrdia: “CADÊ O SPICA DO PAPAI”?... Sim, gritamos
uníssono: Cadê o Spica? Neste ponto, abro um parêntesis para apresentar o Spica:
Era um radinho a pilhas. Uma maravilha da eletrônica japonesa, em seu estojo de
couro legítimo que nosso pai ganhara de um afilhado seu, funcionário da
alfândega no Rio de Janeiro e que sempre que vinha a Teresina, brindava papai
com uma dessas maravilhas produzidas no exterior. Nosso pai tratava o radinho
como uma joia. Trazia-o trancado no armário - quase um cofre - do seu quarto
junto com seus relógios de algibeira, seu revólver Smith & Wesson calibre
32 e suas canetas, dentre elas uma Park 51. Somente tínhamos acesso ao Spica,
em sua presença... Aqui, fecho o parêntesis.
Em
dias de jogos papai recolhia-se ao quarto, pois não gostava de futebol (por
ironia, todos os filhos eram fanáticos), e, muito menos da balbúrdia dos
torcedores. E agora? Quem vai ter coragem de pedir o Spica ao Papai? Nossa mãe
incumbiu-se da tarefa; foi e conseguiu. De posse do Spica fomos para a calçada
e de repente a porta da nossa casa estava lotada com nossos vizinhos, dividindo
conosco a estática e a chiadeira da retransmissão do Jogo. O Spica reinava
absoluto. Um irmão com o braço erguido acima da multidão segurava o Spica para
melhorar a audição. Em silêncio ouvimos o locutor narrar: “pega o rebote
Clodoaldo, dribla um, dois, três e chuta para o Gooooooooool do Brasil” aos 45
minutos do 1º tempo imediatamente encerrado pelo juiz... Suspiros profundos e,
para a alegria de todos e remissão da CEPISA, a energia é reestabelecida.
Veio
o 2º tempo, o time tranquilo, na cadência do Gérson (que sabia levar vantagem
em tudo), chegamos aos 3 x 1, com a alma lavada. Como ao final de todos os
jogos seguíamos para a Praça da Liberdade (quanta Ironia...) para a barulhenta
e aliviada comemoração, indiferentes aos gritos que vinham dos porões.
Na
final contra a Itália, tendo ao nosso lado o Spica como precaução e talismã,
ganhamos fácil (4 x1). Conquistamos o tri campeonato e trouxemos a “Jules Rimet”
definitivamente para o Brasil, onde foi roubada e, dizem, derretida.
No
dia seguinte os jornais estampavam, nas primeiras páginas as fotos do capitão
Carlos Alberto erguendo a taça e do ditador basco com um radinho colado ao
ouvido (certamente não era um Spica) e a bandeira do Brasil sobre os ombros
curvados pelo peso de tantas mortes...
Terminando
esta narrativa, me pego emocionado, quase às lágrimas, não pela copa conquistada,
mas pela memória resgatada de meu pai. Obrigado, velho Álvaro Monteiro da Cunha,
pelo legado virtuoso.
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