sexta-feira, 4 de julho de 2014

DE COMO O SPICA SALVOU A COPA




A. J. de O. Monteiro

                A copa já passando das oitavas de final e nada, nenhuma ideiazinha para colocar no papel. Espremi o cérebro o quanto pude e nada saia, até que numa de minhas incursões diárias pela internet deparo com uma crônica do Ruy Castro, com o título “Em torno do Spica” (Folha de S. Paulo). Pronto, eis o mote: O nome Spica desencadeou uma enxurrada de lembranças já quase esmaecidas, pelos 44 anos passados. As lembranças da copa do mundo de 1970, disputada no México, a qual assisti do alto dos meus 19 anos.
                Havia um clima de ufanismo promovido pela ditadura militar, que no ritmo da providencial música “Prá Frente Brasil” de Miguel Gustavo, aproveitava a paixão brasileira pelo futebol para abafar os gritos de dor que vinham dos porões dos quartéis. Esses gritos não mais nos importunavam. “Éramos 90 milhões em ação... Todos juntos na mesma emoção” provocada pelos lançamentos de Gérson, pelos geniais toques de Rivelino, pelos deslocamentos de Tostão, pelos dribles de Pelé, pelas botinadas de Brito e pelo pesadelo de que, a qualquer momento o Félix engolisse um frango... Ninguém confiava no pobre goleiro.
                Mas, relembremos a Copa: No primeiro jogo da primeira fase saímos perdendo para a Tchecoslováquia (gol de Petrás, aquele do sinal da cruz), mas logo viramos para 4 x 1, com gols de Rivelino, Pelé e Jairzinho que fez dois. O segundo jogo foi contra a temida Inglaterra, então campeã mundial de 1966. Daquele jogo ficou indelevelmente marcado na minha memória, o lance do único gol da partida: Tostão tromba com um adversário, toma a bola, gira o corpo e, quase caindo, cruza para Pelé que mata no peito e rola para Jairzinho desferir o petardo para o fundo das redes do grande guarda metas inglês, Gordon Banks (desculpem o excesso de futebolês, inspirado no legendário Carlos Said, o magro de aço). Em seguida, vencemos a Romênia por 3 x 2 e, nas quartas de final, ganhamos do Peru por 4 x 2.
                Nas semifinais, o fantasma do “Maracanazo” veio nos assombrar. Teríamos pela frente o Uruguai, que em 1950, em pleno estádio do Maracanã, tomou do Brasil o título mundial que antecipadamente nos foi outorgado pela imprensa ufanista e pelo oportunismo dos políticos. Daquele jogo de 16 de julho de 1950, restou uma frustração que se sedimentou na mente de todos os brasileiros que vivenciaram a tragédia e que se transmitiu para as gerações posteriores como um gene maldito.

                Aquele 16 de junho de 1970 amanheceu diferente. Um misto de desconfiança e desejo de vingança tomava nossas mentes e corações. A imprensa queria, usando a metáfora de Nelson Rodrigues, ver “pátria de chuteiras”... O árbitro trila o apito e começa o espetáculo. Jogo duro, bola lá e cá. Nossos corações descompassados, unhas roídas até o sabugo e o jogo rolando. O silêncio reinava na sala, quebrado apenas por um “UUUUH” ante um ataque perdido pelo Brasil, ou por um “ai meu Deus” quando o ataque uruguaio rondava nossa área.  E veio o choque: aos 19 minutos do 1º tempo o Uruguai desempata o jogo com um gol de Cubillas... O silêncio tomou conta da sala, todos nós volvemos a 50. Todos nos sentimos derrotados até que o locutor gritou: “queque é isso, minha gente? Ainda tem muito jogo! Vamos pra frente Bra”... (faltou energia). Gritos, imprecações, lamentos e palavrões de toda ordem lançados contra a CEPISA (companhia distribuidora de energia no Estado). Até que alguém gritou acima da balbúrdia: “CADÊ O SPICA DO PAPAI”?... Sim, gritamos uníssono: Cadê o Spica? Neste ponto, abro um parêntesis para apresentar o Spica: Era um radinho a pilhas. Uma maravilha da eletrônica japonesa, em seu estojo de couro legítimo que nosso pai ganhara de um afilhado seu, funcionário da alfândega no Rio de Janeiro e que sempre que vinha a Teresina, brindava papai com uma dessas maravilhas produzidas no exterior. Nosso pai tratava o radinho como uma joia. Trazia-o trancado no armário - quase um cofre - do seu quarto junto com seus relógios de algibeira, seu revólver Smith & Wesson calibre 32 e suas canetas, dentre elas uma Park 51. Somente tínhamos acesso ao Spica, em sua presença... Aqui, fecho o parêntesis.
                Em dias de jogos papai recolhia-se ao quarto, pois não gostava de futebol (por ironia, todos os filhos eram fanáticos), e, muito menos da balbúrdia dos torcedores. E agora? Quem vai ter coragem de pedir o Spica ao Papai? Nossa mãe incumbiu-se da tarefa; foi e conseguiu. De posse do Spica fomos para a calçada e de repente a porta da nossa casa estava lotada com nossos vizinhos, dividindo conosco a estática e a chiadeira da retransmissão do Jogo. O Spica reinava absoluto. Um irmão com o braço erguido acima da multidão segurava o Spica para melhorar a audição. Em silêncio ouvimos o locutor narrar: “pega o rebote Clodoaldo, dribla um, dois, três e chuta para o Gooooooooool do Brasil” aos 45 minutos do 1º tempo imediatamente encerrado pelo juiz... Suspiros profundos e, para a alegria de todos e remissão da CEPISA, a energia é reestabelecida.
                Veio o 2º tempo, o time tranquilo, na cadência do Gérson (que sabia levar vantagem em tudo), chegamos aos 3 x 1, com a alma lavada. Como ao final de todos os jogos seguíamos para a Praça da Liberdade (quanta Ironia...) para a barulhenta e aliviada comemoração, indiferentes aos gritos que vinham dos porões.
                Na final contra a Itália, tendo ao nosso lado o Spica como precaução e talismã, ganhamos fácil (4 x1). Conquistamos o tri campeonato e trouxemos a “Jules Rimet” definitivamente para o Brasil, onde foi roubada e, dizem, derretida.
                No dia seguinte os jornais estampavam, nas primeiras páginas as fotos do capitão Carlos Alberto erguendo a taça e do ditador basco com um radinho colado ao ouvido (certamente não era um Spica) e a bandeira do Brasil sobre os ombros curvados pelo peso de tantas mortes...
                Terminando esta narrativa, me pego emocionado, quase às lágrimas, não pela copa conquistada, mas pela memória resgatada de meu pai. Obrigado, velho Álvaro Monteiro da Cunha, pelo legado virtuoso.

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