A. J. de O. Monteiro
Era
julho de um ano qualquer no início da década de sessenta. A cidade esvaziada.
Grande parte dos nossos colegas era do interior e iam para suas cidades.
Outros, os mais abastados, iam para o litoral. Quem, como nós, Pingo, Perna
Fina, Sete Cabeças e eu, sem essas regalias, ficávamos por aqui mesmo na
modorrenta rotina de praças, banhos de rio (escondido dos pais), manhãs de sol
em clubes, futebol e cinema, invariavelmente. Mas, naquele ano um fato novo
veio quebrar essa rotina. Grandes cartazes foram espalhados pelos quatro cantos
da cidade anunciando a breve chegada do famoso Circo Mágico Tihany. Era um
circo diferente dos que até então conhecíamos. Não apresentava “shows” com
animais como o Circo Garcia ou o Grande Circo Americano, os maiores que já andaram
por aqui e muito diferente daqueles mambembes que, para compensar o pequeno
número de atrações circenses, apresentavam cantores desconhecidos e encenavam pequenas
peças tendo como atores os próprios artistas do circo. Dessas peças, me lembro,
a mais encenada era “O Ébrio”, uma adaptação da famosa música de Vicente
Celestino. A carga dramática do tema costumava levar o distinto público às
lágrimas.
O
Tihany, anunciavam os cartazes, apresentaria coisas novas, diferentes, como o carnaval
no gelo - Na verdade, um “show” de patinação com artistas bem treinados,
verdadeiros dançarinos sobre patins. Trazia também o balé das águas – jatos de
água coloridos, que se moviam ao som de belas valsas. Mas maior atração
anunciada era o espetáculo de mágicas apresentado pelo dono do circo, um
húngaro de nome impronunciável que, em razão disso, ficou conhecido mesmo com
Tihany. O circo também apresentava números tradicionais, como trapézios,
malabares e dança na corda entre outros. Só que com uma roupagem nova e mais
sofisticada, diziam os cartazes.
A
chegada foi anunciada com um foguetório e nós acompanhamos o desfile do comboio,
tendo à frente o próprio Tihany (o mágico) dirigindo um chevrolet impala –
nunca um desses tinha rodado em Teresina.
Nos dias seguintes, a montagem do circo na Praça da Bandeira, foi o
grande acontecimento da cidade. Ao fim, ficou imponente.
Desde
que tomamos conhecimento da vinda do circo, tratamos de juntar dinheiro para os
ingressos, pois falavam que não eram muito baratos. Todo trocado que nos caía às
mãos, ia para o fundo circense. Nesse período, sacrificamos picolés, sorvetes,
doces e bolos. Até o cinema dominical, trocamos pelas peladas de futebol e
banhos de rio nas coroas do Parnaíba.
Por
fim, o grande dia chegou. A “avant-première” foi à noite, aberta apenas para
adultos e menores entre 11 e 17 anos, se acompanhados dos pais ou responsáveis.
Não ligamos, queríamos mesmo era irmos sozinhos, curtir o espetáculo
livremente. Afinal já não éramos mais criancinhas – assim pensávamos.
A
noite foi longa, a ansiedade quase não me deixa dormir. Na manhã seguinte, logo
após o desjejum, já fui para a praça me juntar à turma e combinar a ida para a
matinée, com início às 16 horas. Marcamos o encontro para 13 horas, ali mesmo
na Praça do Liceu para, dali, seguirmos para a Praça da Bandeira e realizar o
sonho daquelas férias. Em casa, tomei banho, engoli o almoço, vesti roupa de
“ver Deus” e segui para a Praça. Lá já me esperavam o Pingo, o Perna e o Sete,
no ponto. Seguimos. Podíamos ouvir as batida aceleradas dos nossos corações...
De longe se avistava o imponente cartaz, com o nome: “GRANDE CIRCO MÁGICO
TIHANY”, rodeado de luzes “piscantes” que davam impressão de movimento. Mais
próximos, avistamos a tabela de preços dos ingressos e tivemos a sensação de um
balde de água gelada na cara. Somadas, todas nossas economias não davam pra
comprar o ingresso mais barato disponível, aqueles situados na curva da
arquibancada, também conhecida como “poleiro”. Sentamos ao pé de uma árvore e
ali ficamos por não sei quanto tempo, sem dizer qualquer palavra, até que o
Pingo falou: - “Não adianta ficarmos aqui com cara de cachorro que caiu do
caminhão de mudança. Vamos primeiro tentar arranjar o que falta com nossos
pais, se não der certo vamos pensar em outras soluções”. Assim fizemos e nada
conseguimos. Os pais, parece, haviam combinado, pois argumentaram nos mesmos
termos: - “Não dá meu filho, o ingresso está muito caro e se eu comprar para um,
tenho que comprar para todos... Sinto muito”...
No
dia seguinte, encontramo-nos na Praça para pensarmos uma solução. Sete, o mais
ingênuo de nós, sugeriu juntarmos jornais velhos e latas de óleo de cozinha
vazias para vendermos em feiras, os jornais, e em flanderias, as latas. Pingo
sorriu com desdém e falou: - “Quando juntarmos dinheiro suficiente, vendendo
essas coisas, o circo já vai estar de Belém pra diante”... Após um sem número
de ideias descartadas, por inaplicáveis, Pingo levantou-se, abriu os braços e
falou: - “Já sei como conseguir o restante do dinheiro”. Como? Perguntamos ao
mesmo tempo. Ele então explicou: - “Vamos raptar o sabiá do papai”... O espanto
foi geral. “O que é isso Pingo”? “Estás ficando maluco”? “Isso é crime... E não
é rapto, é sequestro e dá cadeia”. “Nada disso”, retrucou o Pingo. “Vamos
raptar a ave e pedir resgate no valor exato que precisamos”. “Ele vai pagar,
ele adora aquele sabiá”...
Logo
na manhã seguinte, partimos para a execução do plano elaborado pelo Pingo.
Esperamos a saída do Dr. W para o trabalho e de D. M para as compras do dia, no
mercado próximo. Entramos na casa – suas duas irmãs ainda dormiam – cobrimos a
gaiola do sabiá com uma toalha e a levamos para a casa do Perna, o local
escolhido para cativeiro, pois o pai dele criava muitos pássaros e uma gaiola a
mais, ali, não seria notada e se fosse, inventaríamos uma desculpa qualquer.
Passamos
em tão para a segunda etapa do plano – redigir o bilhete com o pedido de
resgate. Pingo tomou para si a tarefa e redigiu o bilhete, nos seguintes
termos:
-
“Prezado Dr. W,
O seu valioso sabiá encontra-se
em nosso poder, desde a manhã de hoje. A sobrevivência
do mesmo depende apenas do Senhor. Para tê-lo de volta, basta que o Senhor pague
o resgate no valor de NCR 100,00. Essa quantia deverá ser colocada até o final desta tarde, envolvida em plástico, sob uma tora de madeira jogada
há muito tempo no cruzamento das Ruas
Palmeirinha e Riachuelo (atrás do muro do estádio Lindolfo Monteiro). Não estamos brincando! A cada dia de atraso,
uma pena do rabo do sabiá lhe será
enviada. Em caso de não atendimento de nossas exigências, com muito pesar mataremos a ave”!
O
bilhete foi colocado sorrateiramente na caixa de correios, pois como explicou o
Pingo, Dr. W, todos os dias, antes de entrar em casa no retorno do trabalho,
verificava se há correspondência na caixa.
Pingo
já saíra do banho e se vestia para o almoço em companhia dos pais e irmãs,
quando ouviu o berro do Dr. W: - “JMGN – chamado pelo nome completo, ele nos
disse, tremeu nas bases – venha cá seu moleque safado! E segurando-o pela orelha
disse: - Então foi por isso que o sabiá não saudou minha chegada”. E
prosseguiu: - “Nem pra sequestrador você serve, idiota. Onde já se viu escrever
um bilhete de resgate com a própria letra”! Ainda com o Pingo pela orelha,
perguntou: - “onde está o sabiá”? Pingo, num fio de voz, respondeu: - “Na casa
do Perna”. –“Era de se esperar, disse Dr. W, outro da mesma laia para desgosto
dos pais, pessoas de bem”! – “Quem mais está envolvido nisso”? Pingo abriu o
bico e entregou todos nós. E com o pingo ainda pela orelha, Dr. W foi à casa do
Perna pegar o sabiá e contar aos pais deste, a façanha do grupo. Da casa do
Perna, foi à casa do Sete e, depois, à minha, sempre com a gaiola em uma das
mãos e a orelha do Pingo na outra. A cena provocava curiosidade, e a todos que
perguntavam – conhecidos ou não – Dr. W parava e contava a estória.
Levamos
nossas surras de cinturão e ficamos de castigo até o final das férias. Só
voltamos a nos encontrar no reinício do ano letivo, em agosto e, para desgraça
dos nossos males, o assunto entre a estudantada, era o mesmo: O RAPTO DO SABIÁ!
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