Daniel Cariello**
Naquele dia, acordei todo
embaralhado.
— Vó, vó, vó, vó, vó.
— O que foi, Daniel?
— A gente precisa sair para
comprar o baralho do Mickey. Eu quero, quero sim, quero muito, quero agora. É
lindo, cheio de cartas com números e figuras. Em algumas está o Mickey, em
outras o Pato Donald, a Margarida, o…
— Pateta!
— É você, vó!
— O quê?
— Pateta.
— Estou falando do baralho. Deve
ter até carta do Pateta, o meu personagem preferido. Vai ali colocar uma roupa,
vamos sair para comprar.
— Mas, vó, eu não trouxe nenhuma.
Só tenho este pijama de bolinhas.
— Bem, vamos assim mesmo. Veste
este casaco por cima.
— Vó, esse casaco é seu. Vai
ficar grandão e muito, muito feio.
— Prefere não ir?
Nesse momento, colocou-se diante
de mim a situação mais complicada dos meus incompletos 6 anos: para divertir-me
por toda a eternidade com o baralho do camundongo era preciso dar o vexame de
desfilar em roupas de dormir de bolinhas, com um casaco verde por cima.
Dificilmente poderia haver algo menos adequado para ir à rua.
Depois de breve ponderação,
suspirei e vesti o enorme paletó, já que não tinha mesmo escolha. Antes de sair
de casa, olhei para ambos os lados, para ver se havia algum vizinho. Ninguém.
Pelo menos ali o caminho estava livre. Paramos o primeiro táxi que passou.
— Para o Conjunto Nacional! —
disse, decidida, minha avó.
O taxista nem se mexeu. Pedi para
acelerar. Ele respondeu:
— Garoto, você se esqueceu de
vestir uma roupa. Vai lá se trocar, eu espero.
Não sei a cara que o motorista
fez, pois naquele momento eu tentava deslizar para baixo do
banco dele. Mas sei que logo chegamos ao centro comercial e começamos a
procurar o jogo de cartas. Tentei ficar escondido atrás da minha avó e pedi a
ela para me emprestar sua bolsa, para enfiá-la na cabeça. Mas ela, insensível
ao meu drama, negou. Rodamos o Conjunto inteiro, todas as lojas, do subsolo ao
último andar, e nem sinal da trilha do rato. Achava que nada poderia ser pior do
que aquela trágica notícia, quando escutei uma voz familiar.
— Eita, parece o Daniel, da minha
sala, de pijama de bolinhas e um casaco verde
muito do feio. Vamos ali ver se é ele mesmo!
Eu reconheceria aquele tom alto e
agudo em qualquer lugar do mundo. Era o Cristiano. E o Cristiano era o terror
da escola. Se ele confirmasse minha identidade, eu escutaria gozações pelo
menos até 2034. Por instinto de sobrevivência, tomei a única atitude possível
naquele momento: fechei o zíper do casaco e enfiei minha cabeça dentro. Do meu
casulo, decapitado aos olhos do mundo e do Cristiano, falei com minha avó.
— Vamos. Não quero mais o
baralho.
No fim do dia, sentindo-me
descartado, de mãos abanando, só sobrou aquela sensação de ter pago o maior
Mickey. Quer dizer, mico.
*Publicado originalmente em Veja
Brasília de 22.out.2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br
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