terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A VAN DO ZÉ*


Daniel Cariello**

                Começou a cair um toró daqueles que só tem em Brasília. Dez minutos antes, o sol ardia tanto que os raros passantes da superquadra eram obrigados a procurar uma sombra. Agora o mundo está desabando e os pedestres foram buscar abrigo sob o sempre acolhedor pilotis.
                A chuva chegou trazendo trovões ensurdecedores, seguidos de latidos desesperados de cachorros da redondeza e de gritos rascantes do meu vizinho, que não precisa de desculpa para dar um berro na janela, nem perde uma chance quando ela se apresenta.
— Chega de água! Valham-me, Jesus, Maria e José!
                Vou ao parapeito observar o dilúvio e o desempenho vocal do habitante ao lado e me espanto: parada, em frente ao prédio, está a van da Escola Moraes Rêgo, onde fiz meu 1º grau (crianças, 1º grau era como chamávamos o ensino fundamental em uma época antiga, entre a queda de Constantinopla e o surgimento do iPhone). Se a antiga Kombi foi trocada por essa moderna van em algum momento desse passado quase cenozoico, o piloto ainda é o mesmo Zé da minha infância. As únicas diferenças são o cabelo mais grisalho e o bigode, então ostentoso, agora ausente.
                Apesar da chuva, dá para vê-lo sentado atrás do volante, em seu posto de sempre, com o sorriso e a paciência habituais. Olhando para o nada, o bravo motorista tamborila uma percussão no painel do automóvel enquanto aguarda o fim do aguaceiro e o embarque de uma criança que mora no meu prédio. Pelo horário, meio da tarde, ela deve ir a uma aula de judô, de dança ou de futebol.
                Nesse instante, lembro dos meus colegas por ele transportados. Se eram desbravadores, os primeiros a chegar à escola de manhã cedinho, invariavelmente com cara de sono, tinham o privilégio de ser liberados quinze minutos antes do fim da última aula, pois o prudente chofer queria escapar do engarrafamento de meio-dia. Por engarrafamento de meio-dia, na Brasília dos anos 80, entenda-se um sinal de trânsito de uma via que atravessava a W3 Sul e, por isso, ficava mais tempo vermelho que verde, formando uma fila de uma ou duas dezenas de carros. E aí me recordo também que, ao mudar de colégio, no fim da década, nunca mais tive notícias do Zé. Para dizer a verdade, nem imaginava que ele continuava no seu heroico e nobre batente de carregar crianças pela cidade.
                Quando dou por mim, a chuva já havia parado e uma pontinha de céu azul surgia atrás das nuvens ainda cinzentas. Nesse exato instante, um novo berratório vindo do apartamento contíguo me arranca imediatamente do mergulho na infância e me puxa de volta à realidade.
— Finalmente! No more rain! Viva o sol! Viva o céu! Valeu, Jesus, Maria e José!
Vejo a van virando calmamente a curva e digo a mim mesmo, em voz baixa.
— Valeu, Zé!
*Publicado originalmente em Veja Brasília de 17.dez,2014
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br


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