terça-feira, 3 de março de 2015

A ARTE DA VENDA*



Daniel Cariello**

Um ônibus parte lotado da rodoviária do Plano Piloto em direção à saída Sul. O ambulante, então, começa a anunciar seu produto, sem imaginar que teria concorrência.
— Olha a arnica! Senhoras e senhores, a arnica é a cura pra tudo. Pra gripe, resfriado, mau-olhado, pereba, pedra nos rins, pedra na cabeça, bicho-de-pé, bicho que não fica de pé, piolho, pulga, carrapato, dor de ouvido, dor de barriga, dor de corno, nó nas tripas. Se pagar uma, leva duas. Se pagar duas, leva...
Subitamente, foi interrompido por um tostão na coxa, aplicado por um sujeito que estava ao lado e tomou a palavra antes de qualquer possibilidade de reação.
— Leva o diabo, ó, Senhor! Só você, Deus, pode levar o rei das trevas embora! (Cochichando: “Dá licença, seu Arnica, que o ônibus está cheio e também preciso fazer minha pregação. Ainda faltam duas para completar a meta de hoje”.) Com licença, senhoras e senhores. Meu nome é Jerônimo, sou ex-drogado, ex-alcoólatra, ex-ladrão, ex-infiel e ex-deputado. Eu sei, cometi muitos erros, mas agora estou aqui para trazer a palavra…
— Palavra que vou fatiar inteira, aqui mesmo, na frente de todos.
Quem disse isso (gritou, na verdade) foi um terceiro homem, do fundo do ônibus, para surpresa dos outros dois. E tirou de um grande saco um objeto branco, com uma lâmina no meio, passando-a inadvertidamente perto do nariz de uma velha que já cochilava e nem viu o que acontecia, ao contrário dos demais passageiros, espantados. Sacou uma maçã e a descascou ali mesmo.
— Vou fatiar todas as frutas e verduras com este prático e lindo multidescascador. Dou a minha palavra que ele funciona de verdade. Vejam como picota a maçã em cinco segundos. E essa cenoura? Parece papel! Este aparelho é tudo de que você precisa na sua casa, minha senhora. É tão fácil de usar que até seu marido vai poder ajudar na cozinha. Desculpem aí, maridos, mas agora vai acabar a moleza…
— Moleza terá quem se tratar com esta planta maravilhosa — interrompeu o seu Arnica. — É a cura pra todos os males...
— Os males só quem cura é o Senhor — interpelou o ex-tudo. — Um sujeito sem fé é um sujeito sem força…
— Sem força nenhuma, eu prometo, você vai descascar tudo sem fazer força — entrecortou o vendedor. — É só aqui na minha mão.
O jogral involuntário ainda continuou por alguns minutos e arrancou aplausos dos passageiros quando os três, sincronizados também na desistência, resolveram
descer do ônibus ao mesmo tempo.
Sem convencerem doentes, fiéis ou clientes, mas tendo arrebatado uma plateia entusiasmada, olharam-se e souberam que teriam mais sucesso se trocassem a arte da venda pela venda da arte. Mas deram as costas e seguiram seu caminho solitário.

Publicado originalmente em Veja Brasília de 25/02/2015
**Leia também as crônicas de Paris, escrita pelo mesmo autor, no livro Chéri à Pariswww.cheriaparis.com.br

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