segunda-feira, 16 de março de 2015

DEU ESCOCÊS NO SAMBA



A. J. de O. Monteiro

                Era um sábado despretensioso como todos os sábados antecedentes ao carnaval 2015. Lá estava eu sob a sombra de um frondoso oitizeiro do bar de D. Mariquinha – lugar aprazível, garanto – quando uma forte lufada, vindo pelo lado sul, quando o normal ali é o contrário. O vendaval repentino derrubou cadeiras e fez voar as toalhas das mesas. Incontinente um arrepio tomou meu corpo e pensei: - “O Mago está por perto”. Não deu outra. Logo ouvi o ronco do “rocinante”, apelido que ele mesmo deu ao seu querido fusquinha... Estacionou e veio até a mesa em que me encontrava, enquanto os funcionários do bar tratavam de recompor o ambiente desarrumado pela ventania, estranhando o despropósito da mesma, mas sem desconfiarem, ao menos, da sua causa que estava ali presente. O Mago chamava aquele vento de “vento precursor”. Cumprimentou-me, tomou assento e acomodou sua inseparável bengala de bambu vietnamita. Nessas ocasiões – em bares, principalmente, Ele usava roupas comuns para evitar chacotas e suas próprias reações.
                Esperei o fim de seu ritual de acomodação, para então perguntar: - “Então Mago, por onde andou essa sumidade (sem trocadilho)? Há quanto tempo não o via”. Ele pigarreou e disse que andara recolhido trabalhando em novas poções para a cura da chicungunya. Doença que vem apavorando a população, principalmente aqueles que, como ele, já andam curvados pelos anos... – “Mas - disse ele abruptamente e no seu estilo – deixemos de prolegômenos e vamos ao que interessa”: “Vim comunicar-lhe que neste carnaval serei homenageado pelo Grêmio Recreativo Escola de samba Pau da Paciência”. “Serei o tema da Escola no desfile deste ano, com todas as alegorias fazendo alusão à minha estória e às coisas correlatas a ela. O samba enredo, composto pelos velhos sambistas da Escola tem com título ‘Mago Manu, Dois Mil Anos de Sabedoria e Benemerência’. (depois fiquei sabendo que o título fora sugestão d’Ele mesmo).
                Meio aparvalhado pelo inusitado da notícia, perguntei tentando disfarçar o riso: - “Mas, Mago... dois mil anos”? No que Ele, com certo ar de indignação respondeu professoralmente: - “É que vocês não entendem. Essa sabedoria de dois mil anos é o conhecimento acumulado desde o mais antigo de nossa linhagem de magos. Talvez você entenda melhor se associar à história em quadrinhos o ‘Fantasma Que Anda’. O super herói tido como imortal, na verdade era uma linhagem onde os filhos sucediam os pais quando este morriam ou envelheciam, sem que ninguém percebesse o fato e a aura de imortalidade era preservada”. “O conhecimento que tenho, prosseguiu Ele, é transmitido em minha linhagem, de geração para geração. Entendeu”?! “No entanto, caro amigo, como você sabe, a GRESPP é carente de recursos fiduciários para fazer frente ás despesas de um desfile dessa magnitude (Mago não é nada modesto). O dinheiro disponível, do auxílio da prefeitura, não da para confeccionar as fantasias, carros alegóricos e alegorias de mãos. Sei que você não dispõe de grana e por isso gostaria que intercedesse junto aos nossos amigos mais abastados para angariar o necessário”. “Fale, pois, com Jaconias Bardo, com Erosdito Pau D’Arco e com o Esculápio Rodrigues”. “Eles têm ‘bala na agulha’.”

                Assim fiz. Procurei os amigos recomendados e lhes expus a pretensão do Mago. No início não acreditaram, pensaram tratar-se de um chiste. Mas, tanto insisti que eles ficaram convencidos e contribuíram generosamente com quantia bastante para atender as perspectivas do Mago. Todos o admiravam e também temiam o velho Mago. O Mago, agradecido, disse-me que recompensaria aos três com votos de bonanças eternas.
                Passaram-se os dias e chegou o carnaval. Fui ao sambódromo de Cajuína entre ansioso e preocupado pois temia que as emoções da festa e o esforço físico viessem abalar a saúde do meu amigo. De repente o sistema de som anunciou o início do desfile do GRESPP. O puxador de samba, o Branquinha da Paciência, com os chavões de praxe fez a escola se mover. O público foi ao delírio e o samba enredo passou a ser cantado por um coro de não sei quantas mil vozes. Aquilo me emocionou sobremaneira.
                O percurso do sambódromo de Cajuína é pequeno, cerca de 500 metros, da área de concentração até a praça da apoteose. Logo avistei o Mago. Vinha ele apoiado em sua vistosa bengala e trajando o seu roupão branco que o cobre do pescoço aos pés e com mangas “boca de sino” que chegam as suas mãos (Ele diz que a veste é feita com linho indiano e que foi um presente de Mahatma Gandhi ao seu antecessor na linhagem). Na cabeça o indefectível barrete com pompom, caído para o lado esquerdo. Num determinado momento, tocado pela emoção, Ele começou a saracotear e voltear, girando a bengala como um bastão de baliza, levando a multidão ao desvario. E saracoteava e volteava com empolgação jamais vista no sambódromo. De repente sai da multidão um brutamontes ruivo e vermelhão, trajando um kilt, se lança sobre o Mago, cingindo-o por completo. Tira-lhe o barrete e tasca-lhe beijos e mais beijos sobre a calva. O pobre esperneia, tenta erguer a bengala para atingir o miserável, mas, franzino que é, nada conseguia. Em seu socorro acorreram os seguranças da escola que, a muito custo conseguiram dominar o monstro que, enquanto era arrastado para longe do Mago, berrava: - “Venha Mago, venha comigo para a Inglaterra, o Rei Artur precisa de nós para enfrentar os saxões. Você é e sempre será o nosso mago Merlin”.

                Nisso o Mago, o nosso, bufando e soltando faíscas pelos olhos abria caminho na multidão distribuindo bengaladas em que ousasse aproximar-se. Saindo do estupor corri em busca do Mago e na passagem avistei seu barrete caído no chão e o recolhi. Voltei a correr na direção que Ele havia tomado e metros à frente o encontrei sentado em uma coisa que me pareceu uma égua de gesso – alegoria que alguma outra escola de samba abandonara por ali. Aproxime-me cautelosamente ouvindo sua respiração ofegante. Estendi-lhe o barrete que Ele recebeu e só então ergueu a cabeça e, horrorizado, pude ver o fenômeno: Seu olho direito expressava fúria, enquanto o esquerdo expressava ternura e gratidão. Nunca esquecerei aquilo. Com um gesto fez-me entender que queria ficar só e obedeci. Tomei o rumo de casa, pensando na surpresa que ele preparara. Segredo que confiara somente a mim e que o maldito escocês atrapalhara. Como “gran finale” o Mago daria uma volta completa na praça da apoteose levitando a 15 centímetros do solo. Escocês FDP! 

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