João José de Andrade Ferraz
De
boa e tradicional cepa, culta, requintada; à boa vida de pensionista, viajada.
Residente em endereço nobre, com batalhão de empregados folgados e roliços –
que à noite, em invasões, se espicham e procriam patotas de deserdados.
Frequentadora de videoteca, vidrada num bom filme, toda semana aluga pacote de
fitas.
Pois
isso. Num sábado que precedeu o Dia
(do comércio) das Mães, por volta das
onze horas, meia noite, o alto volume do áudio ameaçava sono de amiga e vizinha
de andar. Esta, incomodada, tocou a campainha e... Nada; insistiu, mas não
obteve resposta. Preocupada, foi acordar o marido que roncava sob efeito de
uísque paraguaio bebido em boca livre.
-
Que é?... Que diabo é que tu quer, mulher? Tá maluca?! Não fuça...
-
Levanta, biriteiro de meia tigela! Não tá ouvindo a zoada da tevê da Maricota, não? Já fui lá, toquei a
cigarra e ninguém atendeu. Tô com mau pressentimento...
-
Tu acha que ela morreu, foi? Ô beleza... Peraí,
deixa eu vestir a calça do pijama. Puta merda!, ir pro beleléu numa hora
dessa?! Vai sobrar pra mim...
Tocaram
uma, duas, várias vezes; e bateram na porta. Nenhum sinal de vida; altíssimo, o
som. Ainda zonzo, sem saber direito o que fazer, ao segurar a maçaneta notou
que a porta estava encostada. “Um perigo! Isso de deixar porta aberta”...
Com
a confiança da amizade antiga, o casal entrou no apartamento. Surpresa! A Maricota – de calcinhas e sutiã
sustentando pelancas – dormia a sono solto, fio de baba escorrendo pelo canto
da boca entreaberta; espandongada, derreada no sofá da sala...
Horror
e indignação: imagens nítidas de tórrido filme pornô na enorme tela plana. A
corroa enrubesceu, mas o velhote vibrou:
-
Oba! Oba!!
-
Desliga essa joça, sem-vergonha!
Tendo
acordada disposta e fagueira, nem agradeceu o favor: aprontou-se, e ganhou a
rua – deixando os vizinhos mais uma vez com cara de basbaques.
Libertina
crepuscular, carente de experiências quiçá não vividas no devido tempo? Nem por
e outras: não perde nenhum serviço católico, carola de lamber santo de pau oco,
lixar rosário, terço...
*Do livro Apanhados Do Cotidiano.
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