terça-feira, 26 de maio de 2015

PRAZER OUTONAL*



João José de Andrade Ferraz
               
De boa e tradicional cepa, culta, requintada; à boa vida de pensionista, viajada. Residente em endereço nobre, com batalhão de empregados folgados e roliços – que à noite, em invasões, se espicham e procriam patotas de deserdados. Frequentadora de videoteca, vidrada num bom filme, toda semana aluga pacote de fitas.
               Pois isso. Num sábado que precedeu o Dia (do comércio) das Mães, por volta das onze horas, meia noite, o alto volume do áudio ameaçava sono de amiga e vizinha de andar. Esta, incomodada, tocou a campainha e... Nada; insistiu, mas não obteve resposta. Preocupada, foi acordar o marido que roncava sob efeito de uísque paraguaio bebido em boca livre.
               - Que é?... Que diabo é que tu quer, mulher? Tá maluca?! Não fuça...
               - Levanta, biriteiro de meia tigela! Não tá ouvindo a zoada da tevê da Maricota, não? Já fui lá, toquei a cigarra e ninguém atendeu. Tô com mau pressentimento...
               - Tu acha que ela morreu, foi? Ô beleza... Peraí, deixa eu vestir a calça do pijama. Puta merda!, ir pro beleléu numa hora dessa?! Vai sobrar pra mim...
               Tocaram uma, duas, várias vezes; e bateram na porta. Nenhum sinal de vida; altíssimo, o som. Ainda zonzo, sem saber direito o que fazer, ao segurar a maçaneta notou que a porta estava encostada. “Um perigo! Isso de deixar porta aberta”...
               Com a confiança da amizade antiga, o casal entrou no apartamento. Surpresa! A Maricota – de calcinhas e sutiã sustentando pelancas – dormia a sono solto, fio de baba escorrendo pelo canto da boca entreaberta; espandongada, derreada no sofá da sala...
               Horror e indignação: imagens nítidas de tórrido filme pornô na enorme tela plana. A corroa enrubesceu, mas o velhote vibrou:
               - Oba! Oba!!
               - Desliga essa joça, sem-vergonha!
               Tendo acordada disposta e fagueira, nem agradeceu o favor: aprontou-se, e ganhou a rua – deixando os vizinhos mais uma vez com cara de basbaques.
               Libertina crepuscular, carente de experiências quiçá não vividas no devido tempo? Nem por e outras: não perde nenhum serviço católico, carola de lamber santo de pau oco, lixar rosário, terço...

*Do livro Apanhados Do Cotidiano.

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