quinta-feira, 18 de junho de 2015

ASSIM COMO PILATOS*


A. J. de O. Monteiro
             
               Minhas primeiras férias, após um ano de serviço e quase 18 meses desde que sai de Teresina rumo a Brasília.  Nesse tempo fui acumulando saudades... Da família, dos amigos... Da Cidade, dos seus sabores e odores. Nunca estive tão ansioso e 18 meses nunca levaram tanto tempo para passar, mas passaram.
               Horas antes do embarque, já estava no aeroporto, pois era minha primeira viagem aérea e não queria correr riscos de sobressaltos com a burocracia de viajar naqueles tempos bicudos. A toda hora conferia documentos e bilhete de embarque. Era a insegurança dos sem costume. Mas o aeroporto de Bsb era bem sinalizado e cheguei à sala de embarque sem dificuldades. Ali esperei pouco tempo, até um funcionário da companhia aérea aparecer para nos conduzir ao avião, no pátio, antes informando as prioridades de embarque: pessoas com problemas de locomoção; idosos; gestantes; e passageiros com crianças de colo. Justo, achei.
               No pátio, na fila, meu coração estava disparado. Devia estar tão pálido e assustado, que o funcionário que fazia a checagem ao pé da escada, perguntou: - “está tudo bem, senhor”?... Respondi que sim. Conferiu o bilhete, o RG e, protocolarmente, desejou-me boa viagem, liberando a escada com um gesto. Acomodei-me lá no fundão, naqueles acentos do “Electra II” em forma de “U” – quem viajou nesse tipo de aeronave conhece. Fiquei ali, sentado, com olhos e ouvidos atentos a todos os sons, barulhos e movimentos, quando uma voz metálica invadiu a cabine: - “Senhoras e senhores, boa tarde, aqui fala o Comandante Douglas (clássico, não?), a VARIG lhes dá boas vindas e lhes deseja boa viagem... Solicito observarem os avisos luminosos de afivelar os cintos de segurança e não fumar... Esta aeronave possui três saídas de emergência e em caso de despressurização súbita da cabine, máscaras de oxigênio cairão sobre os assentos”. Enquanto ele falava, as comissárias, com gestos robotizados, indicavam as saídas e o uso correto das máscaras. Em seguida o comando para a tripulação se preparar para a decolagem. Os motores a toda força, o avião sacolejando e estalando enquanto eu, de olhos cerrados, agarrado aos braços do assento, nem queria pensar. De repente tudo cessa: os estalos; o barulho dos motores suavizados e alguns suspiros profundos e aliviados... Arrisco abrir os olhos e vejo chão distante e tudo passando velozmente. Estava voando! Pouco depois comissários e aeromoças empurrando carrinhos começaram a servir bebidas e salgadinhos, abundantemente. Constatei o que muitos me falaram: o serviço de bordo da VARIG era excelente. As duas horas e meia de voo transcorram tranquilas, exceto pelo choro incessante de um bebê e a acirrada disputa pelo toalete (resultado de tanta bebida servida).
               Novamente a voz metálica do Comandante Douglas ecoou pelo recinto: “Senhoras e senhores estamos nos aproximando do aeroporto de Teresina, onde o tempo apresenta-se bom e a temperatura é 35 graus centígrados” (uuuuhhhh!). Essa exclamação me intrigou, pois a quase totalidade dos passageiros era de nordestinos, portanto acostumados às altas temperaturas.
               O pouso foi tranquilo, ao contrário do desembarque, pois todos que iriam descer em Teresina, queriam fazê-lo ao mesmo tempo, com bagagens de mãos enormes... Crianças choravam desesperadamente. A tripulação, à porta, assistia impassível, exibindo seus sorrisos de plástico, padrão VARIG. Após muitos pisões, empurrões e cotoveladas, consegui chegar á porta de saída, de onde vislumbrei a sacada da pequena estação de passageiros do aeroporto, totalmente tomada. Centenas de mãos acenavam freneticamente, mas era impossível distinguir feições, dada a distância. Deve ter vindo alguma celebridade no voo, pensei.
               No salão da estação, me vi cercado por dezenas de parentes. Além de minha mãe, estavam ali quase todos os irmãos e irmãs, cunhados(as), sobrinhos(as) e, até, alguns amigos(as) que ficaram sabendo da minha chegada, ou que, por mero acaso, encontravam-se no aeroporto. Todos queriam me cumprimentar, abraçar ou dar um tapinha nas costas. Até estranhos, curiosos, se aproximaram para tentar ver o figurão que tanto tumulto e algazarra provocava. Uma senhora rechonchuda, de cabelos grisalhos conseguiu furar a barreira de parentes, puxou-me pelo braço e me estendeu um bloquinho de anotações e uma caneta, pedindo: - “moço, por favor, um autógrafo... é para meu neto, Telercinho, que coleciona autógrafos de celebridades, mas é muito tímido, sabe”? Por pura galhofa escrevi no bloquinho: “Para o Telercinho, com um abraço do – rabisquei qualquer coisa parecida com uma assinatura, como fazem os famosos nessas ocasiões e devolvi o bloquinho à simpática senhora, que se afastou com um largo sorriso e gritando: - “Consegui, Telercinho, consegui”!
               Depois de desembaraçar a bagagem, quando entrava num dos carros da comitiva, novamente a velhinha rechonchuda aproximou-se e perguntou: - “moço, por favor, o Telercinho... Ele é muito tímido, sabe?... Ele está querendo saber por qual time o senhor joga... Respondi com um sorriso: - “Pelo DRH do Ministério da Agricultura”... A velhota me olhou com raiva, arrancou a folha do bloco e rasgou, resmungando: - “Você é uma fraude! Uma fraude, isso sim! Não tem vergonha de iludir meu tímido Telercinho?! Uma vergonha”! E se afastou pisando nos calcanhares.
               Em casa encontrei, me esperando, alguns parentes que não puderam – ou não quiseram – ir ao aeroporto e jantar composto de maria izabel (para quem não conhece, uma espécie de risoto com carne de sol picada – bem apimentado), acompanhada de paçoca de carne seca, além de linguiça caseira. Comi à saciedade. Daí, até o último dia das férias, foi uma verdadeira maratona gastronômica. Sarapatel na casa de um, feijoada na de outro; mão de vaca na casa de uma, vatapá (aquele piauiense, feito com pão dormido no leite) na de outra; carneiro ao molho no sítio de um, cabrito ao leite de babaçu na fazendo de outro... Fora as idas à churrascarias e ao mercado da Piçarra, saborear um arroz com capote temperado com muita pimenta de cheiro.
               Dos vinte e dois anos que morei em Brasília, poucas foram as férias que não passei em Teresina, fora as viagens a serviço. Mas essa frequência de vindas provocou certo desinteresse dos parentes em recepcionar-me no aeroporto. A cada vinda, o número de “recepcionistas” diminuía, até reduzir-se a dois ou três. Mas, quem sempre estava lá era a vovó do Telercinho, aquele menino tímido, sabe? Invariavelmente a velhota se aproximava de mim e dizia entredentes: - “Fraude, você é uma fraude”! Em princípio não liguei; fingia não ouvir. Mas, um dia, nervoso com voo muito turbulento, segurei-a pelo braço e perguntei em tom ríspido: - “E o Telercinho, vovó, já saiu do armário, ou continua tímido”?  Ela nem olhou pra mim e saiu rapidamente, pisando nos calcanhares. Depois me arrependi, afinal o guri não tinha nada a ver com a impertinência da avó. Se é que Telercinho existia. Talvez fosse apenas um neto imaginário da velhinha, a quem nunca mais vi.
               Hoje, dezenove anos após meu retorno definitivo a Teresina, o encanto da chegada acabou. Se quiser aquelas iguarias, que eu mesmo as prepare ou vá a restaurante de comidas típicas. Virei arroz de festa.

*Assim como Pilatos entrou no credo, Telercinho entrou nesta história.

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